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dimensões variáveis
Instalação – 4 painéis luminosos
Foto Filipe BerndtGATO é uma das obras inéditas desta exposição, criada especificamente para o prédio do Sesc Pompeia. É a única obra que está na área externa.
A obra são grandes palavras escritas em caligrafia luminosa, uma em cada cor, uma em cada passarela. Carmela realiza um projeto, que era apenas um desenho de Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou o Sesc Pompeia, em que as passarelas aparecem representadas à mão livre. No desenho, a arquiteta pintou com caneta colorida uma das passarelas em amarelo, outra em vermelho, outra em azul e a outra em verde – anotando ao lado as palavras que designam essas cores em italiano: giallo, rosso, blu e verde.
Carmela, então, imaginou, tornar real aquilo que teria sido um esboço da arquiteta.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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dimensões variáveis
Instalação – 4 painéis luminosos
Foto Filipe BerndtGATO é uma das obras inéditas desta exposição, criada especificamente para o prédio do Sesc Pompeia. É a única obra que está na área externa.
A obra são grandes palavras escritas em caligrafia luminosa, uma em cada cor, uma em cada passarela. Carmela realiza um projeto, que era apenas um desenho de Lina Bo Bardi, arquiteta que projetou o Sesc Pompeia, em que as passarelas aparecem representadas à mão livre. No desenho, a arquiteta pintou com caneta colorida uma das passarelas em amarelo, outra em vermelho, outra em azul e a outra em verde – anotando ao lado as palavras que designam essas cores em italiano: giallo, rosso, blu e verde.
Carmela, então, imaginou, tornar real aquilo que teria sido um esboço da arquiteta.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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430 m² (aprox)
Objetos e cordas
Foto Filipe BerndtRODA GIGANTE é uma instalação em grande escala composta por um conjunto de aproximadamente 320 objetos no chão. Cada um dos objetos, fixos no solo, é amarrado com cordas que vão até o telhado. Assim, o todo do ambiente aparece permeado pelas múltiplas cordas entrecruzadas em várias direções, criando, visualmente, uma espécie de trama irregular de muitas cores e espessuras variadas.
A primeira criação desta obra foi em 2019 e é uma das obras reeditadas em 2024 para este espaço do Sesc Pompeia. Foram escolhidos objetos fora de uso ou obsoletos…, que podem ser reconhecidos como fragmentos do que já foram um dia…são utensílios banais: como baldes, tambores, fardos, peças mecânicas, pneus, contrapesos…em suma, uma monstruosa coleção de mercadorias.
Paulo Miyada, curador desta exposição, escreveu que Carmela Gross cria um ambiente que sugere movimento, tensão e suspensão. Ele pergunta: “É uma roda gigante que entretém com sua ilusão de mobilidade, girando e girando sem sair do lugar?”.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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430 m² (aprox)
Objetos e cordas
Foto Filipe BerndtRODA GIGANTE é uma instalação em grande escala composta por um conjunto de aproximadamente 320 objetos no chão. Cada um dos objetos, fixos no solo, é amarrado com cordas que vão até o telhado. Assim, o todo do ambiente aparece permeado pelas múltiplas cordas entrecruzadas em várias direções, criando, visualmente, uma espécie de trama irregular de muitas cores e espessuras variadas.
A primeira criação desta obra foi em 2019 e é uma das obras reeditadas em 2024 para este espaço do Sesc Pompeia. Foram escolhidos objetos fora de uso ou obsoletos…, que podem ser reconhecidos como fragmentos do que já foram um dia…são utensílios banais: como baldes, tambores, fardos, peças mecânicas, pneus, contrapesos…em suma, uma monstruosa coleção de mercadorias.
Paulo Miyada, curador desta exposição, escreveu que Carmela Gross cria um ambiente que sugere movimento, tensão e suspensão. Ele pergunta: “É uma roda gigante que entretém com sua ilusão de mobilidade, girando e girando sem sair do lugar?”.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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78 desenhos - dimensões variadas
Serigrafia sobre zinco
Foto Filipe BerndtBANDO são 78 desenhos de animais. Cada um deles sugere uma silhueta, um vulto sem detalhes. Na primeira versão deste trabalho, em 2016, o conjunto de 78 desenhos era feito com tinta verde e grafite sobre o papel. Os animais eram situados em meio a campos cinzas de rabiscos de grafite.
Para esta exposição, o Bando foi refeito, os mesmos desenhos foram impressos com tinta verde em cima de chapas metálicas. A diferença é que agora eles aparecem dispostos, lado a lado, num extenso corredor de madeira. São espectros de animais de todos os tipos que nos cercam, à espreita.
As placas de zinco e as pranchas rosa de madeirite, materiais que compõem o corredor, nos lembram dos tapumes e do arranjo precário de tantas construções, nos becos e terrenos baldios de nossas cidades.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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550 × 2150 × 370 cm
13 escadas e lâmpadas tubulares vermelhas
Foto Filipe BerndtESCADAS VERMELHAS é uma instalação que foi realizada pela primeira vez em 2012, no Sesc Belenzinho, em São Paulo. Fáceis de carregar e armar, escadas são máquinas simples. Diminui o esforço do corpo para atingir alturas desejadas pelo olhar. Hoje, as escadas viraram, para nós, utensílios corriqueiros e banais.
Porém, na memória esquecida, no avesso de tudo, são mais do que isso. Nasceram como armas de guerra. Foram da primeira geração de máquinas a levar a luta para além do solo, como as pedras e as flechas. Essa ambivalência era instigante: banalidade e potência a um só tempo – coisa do dia-a-dia e máquina de vida ou morte…
Para compor este trabalho, a artista escolheu 13 escadas industriais disponíveis no mercado, e imaginou lâmpadas fluorescentes brancas acopladas a cada um dos degraus e das traves verticais.
Nesta nova instalação em 2024, as lâmpadas brancas foram substituídas por lâmpadas vermelhas, fazendo reverberar no espaço e nos reflexos do espelho d’água a luminosidade de vermelho intenso.
– Trecho retirado do catálogo “QUASE CIRCO”, produzido pelo Sesc Pomepia, 2024
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![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2024/03/mg_4398_copy.jpg)
Tinta esmalte e primer sobre escada – site specific
Foto Filipe Berndt![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2023/08/mg_8024_copy.jpg)
Tinta esmalte e primer sobre escada — site specific
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74 x 138 cm
neon azul e estrutura metálica
Foto edson kumasakaOs neons são uma presença constante na obra de Carmela Gross. Seus textos e desenhos luminosos estabelecem vínculos com a comunicação visual das ruas: dos letreiros, anúncios e pixos que aparecem pelo espaço público.
NÓS, escrito em luz, nos convoca à coletividade.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/09/cg_nos_edson_kumasaka_2021.jpg)
dimensões variadas
grrafite, ecoline e fixador de desenho sobre papel Hahnemühle 80 gr
Foto Parque LageBando é um conjunto de desenhos, que compõem uma multidão de bichos, feitos de manchas verdes que evocam vultos de animais, situados em meio a campos acinzentados feitos de rabiscos de grafite – formam um ambiente propício a projeções imaginárias de várias ordens. Eles cercam, feito uma horda à espreita, quem está de passagem pela sala.
– Carmela Gross
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/06/sf1a0134.jpg)
Dimensões variáveis
corda e ferragem
Foto Filipe BerndtX (2021) afrontava quem pretendia adentrar a exposição de Gross.
Era um X de grandes proporções – incisivo –, tensionado com cordas de escalada a partir da parede e fixadas no chão, tomando conta do pátio da Vermelho. O visitante tinha que atravessar o X para entrar na exposição.
X é uma interdição e um sinal do incógnito, do desconhecido. Carmela tirou o símbolo do campo abstrato e traz à corporeidade.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/02/mg_0226_copy.jpg)
Dimensões variáveis
corda e ferragem
Foto Filipe Berndt![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/02/corda.jpg)
342 x 300 cm
neon laranja 12 mm, estrutura de ferro
Foto Filipe BerndtFONTE LUMINOSA nasceu de um desenho de um vulcão, uma erupção de lava, de massa informe que invade todos os campos visuais do espectador, vazando às adjacências. O fogo é força que queima e, tragicamente, sugere um espelhamento da situação atual do pais, onde o governo imprime um esforço suicida que transforma os alicerces e a memória coletiva do pais em cinzas.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/02/mg_0158_1_copy.jpg)
colagem, nanquim sobre papel
Foto Filipe BerndtA instalação CABEÇAS é composta por 226 desenhos negros – feitos com manchas de tinta e rasgos – que induzem o espectador a imaginar as cabeças “retratadas”.
Os “retratos” são resultados de um processo que conta com o acaso em sua feitura e, portanto, são faces imaginadas de figuras que não existem.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/02/mg_0175_copy.jpg)
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4,50 x 6,30 m
neon LED e estrutura metálica Foto MAM Rio![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/06/vulcao.jpg)
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![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/06/mg_1797-copy.jpg)
3 x 4 x 3 m
lona e estrutura de madeira Foto Filipe Berndt![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/06/mg_1789_1-copy.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2022/06/img_4788.jpg)
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60 x 12 x 10 cm
Oléo sobre madeira
Foto Filipe BerndtHélices mostram a dinâmica de relações de cor e forma no espaço, incluindo o espectador como participante. O toque manual propicia a dinâmica da obra: a forma se expande, a cor se desmaterializa e pulsa no ar.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2023/08/mg_7048_copy.jpg)
10 m x 370m2
Cerca de 300 objetos Foto Carmela Gross “RODA GIGANTE é uma instalação concebida especialmente para o espaço interno do Farol Santander de Porto Alegre. Trata-se de um conjunto de cerca de 300 objetos que serão dispostos no chão do saguão principal do edifício. Cada um dos objetos será amarrado por meio de cordas ao alto das colunas e dos balaústres do edifício. Assim, todo o vão livre será ocupado pelas cordas entrecruzadas em muitas direções, criando visualmente uma espécie de trama irregular de muitas cores e espessuras variáveis. RODA GIGANTE tem a ver com a precariedade da vida nas grandes cidades, seja de seus habitantes, seja daqueles que moram nas ruas. O morador de rua ou o vendedor ambulante, por exemplo, tem que improvisar jeitos de viver, inventar um habitar nômade e incerto a cada dia, entre coisas achadas, objetos e móveis descartados, e recombiná-los em um equilíbrio frágil num vão qualquer da rua, encostado a um muro ou embaixo de um viaduto.” (Carmela Gross em entrevista para a composição do material educativo da mostra)![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2019_-_roda_gigante_-_farol_santander_-_foto_carmela_gross.jpg)
2,4 x 16m e 2,4 x 21,5m
292 lâmpadas tubulares de LED e estrutura metálica Foto Carmela Gross “Esse trabalho foi concebido para ser construído em duas passarelas de pedestres, em ruas diferentes da cidade de Christchurch, na Nova Zelândia. Uma conteria a frase “REAL PEOPLE” e a outra, “ARE DANGEROUS”,* ambas construídas com tubos de luz fluorescente vermelha. A descontinuidade espacial entre as duas partes da frase buscava abrir o sentido e suscitar múltiplas leituras. Por outro lado, quando lidas juntas e reunidas numa afirmação, a junção passava a refletir a retórica do medo que domina e controla muitos aspectos da vida contemporânea. A segunda parte da frase foi interditada pelas autoridades locais, com o argumento de que a própria palavra “DANGEROUS” era perigosa.” Carmela Gross![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2019_-_real_people_are_dangerous_-_roda_gigante_-_farol_santander_-_foto_carmela_gross.jpg)
11’24’’
Vídeo. branco e preto, sem som
Foto ReproduçãoCarmela Gross colecionou, a partir de jornais, imagens de conflitos e confrontos de diversos países, além de imagens dos incêndios que consumiram, neste século, instituições culturais brasileiras, para compor o vídeo Luz del Fuego II. O título do trabalho vem do nome artístico de Dora Vivacqua, que foi uma dançarina, naturista, atriz e feminista brasileira que viveu entre 1917 e 1967.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2020/10/luz_del_fuego_ii.jpg)
66,5 x 52,5 cm
Neon 12mm vermelho flamingo com estrutura de alumínio composto
Foto Vermelho![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2019_-_sex_war_dance_-_vermelho_flamingo_-_foto_gabriel_z.jpg)
7 × 5,50 × 1,30 m
Lâmpadas fluorescentes e cavaletes metálicos Foto Kunsthalle Bratislava [...] Em O FOTÓGRAFO, ´[...] por um lado, as lâmpadas fluorescentes constituem a unidade básica do desenho, ancoram o trabalho todo à dimensão de um traço quase infantil, esquemático, elementar; por outro, como nos Carimbos, esse gesto singelo, mesmo mantendo sua espontaneidade, é transformado e subvertido ao tornar-se mecânico, neste caso até industrial, com sua proliferação de cabos, transformadores, reatores, energia… A profusão de cabos e outros elementos funcionais, aliás, é bastante relevante na economia do trabalho, porque permite situar O FOTÓGRAFO no conjunto de obras da Carmela que se colocam, direta ou indiretamente, numa relação osmótica com a cidade. [...] trecho de (Algumas coisas) de que falamos quando falamos de Carmela Gross Jacopo Crivelli Visconti LAB: 2014-2017. Bratislava: Slovenské centrum vizuálnych umení, Kunsthalle Bratislava, 2017, p. 219-220.![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2017_-_kunsthalle_bratslava_-_fotografo_khb_08.jpg)
Dimensões variáveis
Papel kraft - intervenção no Museu da Cidade – Chácara Lane Foto João Nitsche Em ESCUTA o trabalho também é pele e superfície, mas é também estratégia de visibilidade e ocultamento. O trabalho foi realizado pela primeira vez em 2001 para um projeto de televisão que revelava o ateliê do artista. Carmela propôs, então, que em vez de exibir seu ateliê, exibiria uma nova obra sendo realizada, e cobriu todo o ateliê com papel kraft. Nada mais podia ser visto, mas em compensação criou-se um novo ambiente, banhado de luz âmbar, novas texturas e com o cheiro característico do papel. Aquela pele de kraft que cobria a sala acabava convertendo-a em caverna, ou estômago, ocultava a arquitetura rígida, borrava as linhas e definições duras do espaço. Trecho de A GIGANTESCA CARTILHA DE CARMELA GROSS PARA ENFRENTAR O MUNDO Douglas de Freitas Carmela Gross: Arte à mão armada. Textos de Douglas de Freitas e Carmela Gross. São Paulo: Museu de Arte da Cidade – Chácara Lane, 2017 / Rio de Janeiro: Endora Arte Produções, 2017. Catálogo de exposição.![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2016_-_chacra_lane_-_escuta_2-_joao_nitsche.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/carmela_gross-18edouardfraipont.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/carmela_gross-5edouardfraipont.jpg)
114 x 233 x 9,5 cm
Painel de LED
Foto VermelhoO painel luminoso vermelho de LED, Figurantes (2016), de Carmela Gross, instalado na entrada da Galeria Vermelho, se assemelha aos tantos que se encontram usualmente em bares, lojas e postos de gasolina com anúncios. Só que aqui, ao invés de produtos e serviços, o painel apresenta um cortejo insólito de dúbias figuras. São aquelas listadas por Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852), como membros da Sociedade 10 de Dezembro, constituída de biscateiros, arrivistas, herdeiros arruinados, vagabundos e desocupados de toda ordem: batedores de carteira, ex-presidiários, vigaristas, rufiões decadentes e muitos outros… O resgate luminoso deste grupo peculiar de ativistas políticos, estampado no painel de LED montado pela artista, reatualiza outros grupos que vieram na esteira deste, e aponta para tantos mais em circulação nas cidades contemporâneas.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/figurantes_-_foto_vermelho.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/figurantes_montagem_-_vermelho.jpg)
Dimensões variáveis
2 cancelas de estacionamento e lona
Foto Edouard FraipontA sala 1 da galeria é ocupada pela instalação Darlenes (2014), constituída de duas cancelas de estacionamento. Usualmente a cancela sinaliza a passagem ou a interdição para os carros. Só que aqui, não. Estas são cancelas para pedestres que podem delas se aproximar e manejá-las, como quiserem, para outros significados.
As hastes mecânicas são comandadas a distância por um controle remoto à disposição de quem passa. O movimento de subir e descer das hastes desdobra e estende uma massa informe de tecido vermelho, desenhando no espaço um grande x. As hastes podem ser novamente acionadas e voltar à posição inicial, desfazendo o desenho em vermelho. Pode-se repetir este processo todas as vezes que se quiser.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/carmela_gross-8edouardfraipont.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/montagem_carmela_gross-6edouardfraipont.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/carmela_gross-14edouardfraipont.jpg)
29 x 21 cm
Grafite e aquarela líquida sobre papel
Foto Galeria Vermelho78 desenhos dispostos lado a lado formam um ambiente propício a projeções imaginárias de várias ordens. Os desenhos compõem uma multidão de bichos, feitos de manchas verdes que evocam vultos de animais, situados em meio a campos acinzentados feitos de rabiscos de grafite. Eles cercam, feito uma horda à espreita, quem está de passagem pela sala.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/bando_percevejob_reproducao.jpg)
32,5 x 50 cm
Grafite e aquarela líquida sobre papel
Foto Galeria Vermelho78 desenhos dispostos lado a lado formam um ambiente propício a projeções imaginárias de várias ordens. Os desenhos compõem uma multidão de bichos, feitos de manchas verdes que evocam vultos de animais, situados em meio a campos acinzentados feitos de rabiscos de grafite. Eles cercam, feito uma horda à espreita, quem está de passagem pela sala.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/bando_gralha_reproducao.jpg)
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/02/montagemcarmela_gross-3edouardfraipont.jpg)
Variable dimensions
Escadas e lâmpadas Foto Sergio Araújo “Antes de serem utensílio de trabalho, as escadas foram armas de guerra quando não se concebia outra forma de ataque ou defesa pelo ar. Frente aos muros e fossos, as escadas eram peças frágeis, mas de grande mobilidade como as pedras e as flechas, e foram da primeira geração de máquinas de guerra a levarem a luta para além do solo” Carmela Gross![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/2013_-_casa_franca_brasil.jpg)
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330 x 200 x 200 cm
Filó de nylon e estrutura de ferro sobre rodas
Duas mulheres negras
Há uma correlação de A Negra com A Negra de Tarsila*, mas essa correlação não foi previamente arranjada. Eles não se relacionam por seus aspectos formais, nem se movem juntos no mesmo espaço. Apropriei-me do nome para repensar meu trabalho com uma nota histórica. Uma obra pronta para o título, uma espécie de canal temporal para o nosso modernismo.
A Negra, de minha autoria, é um objeto-montagem em ferro e tule de náilon preto, montado sobre rodas, que possibilita seu deslocamento pela avenida, no asfalto; penso também como um objeto-imagem, que se confunde com o movimento das ruas, dos carros, dos sons e ruídos, das luzes dos prédios, das lojas, dos anúncios; é também um objeto-desejo, que atua com a cidade mutante dos transeuntes – atravessando, vagando, caminhando, indo e vindo, retornando.
A figura de A Negra de Tarsila é cor-território, forma-casa, pintura corporal em quase todo o quadro. Ela é a ala de abertura, a música-tema, a porta-bandeira feminina e a primeira mestra de dança, o destaque e o carro alegórico, tudo ao mesmo tempo, no desfile de um Brasil que se quis moderno e olhou para suas raízes nas alas de uma escola de samba. Mas enquanto na obra antológica de Tarsila a negra aparece como um corpo sem roupa, apenas superfície, em minha obra a figura fantasmagórica negra é um corpo vazio, com sua vestimenta de tule.
Carmela Gross
Agosto de 2004.
* Tarsila do Amaral
A Negra, 1923
Coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC USP
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11,20 × 9,60 × 4,65 m
Grafite, ferro, mica, espuma de borracha, graxa sobre papel A obra de Carmela Gross nesta 20ª Bienal Internacional de São Paulo revela, desde a primeira aproximação, o processo pelo qual a artista submete cada uma de suas precisas intenções a todas as outras. Desvenda o campo de forças das transformações dialéticas entre agentes de um universo em interação e movimento, no interior do qual é introduzido o observador. O gesto primordial situa o homem no espaço. Define o lugar, delimitado por claras superfícies abstratas, paredes ortogonais, muros a serem transpostos. O interior mostra-se ilimitado, de um vazio imensurável plástico, elástico, maior que o continente. Entramos assim no âmbito da própria imagem. A experiência do espaço real, imediatamente presente, deverá permanecer uma referência constante e perturbadora, enquanto a imagem poderá deslizar, percorrer o vácuo, durar no tempo, lançar-se em vôo livre e saltos no escuro. Há muitos anos, Carmela vem intensificando as forças que animam suas formas em gravitação, tão vibrantes e oscilantes que parecem não se conter em si mesmas. Não por acaso, Carmela tem associado a constituição da matéria visível a condensações que atingem os limites da integração e da desintegração espacial, a corpos em movimento e suspensão. Suas formas pulsam e os efeitos de adensamento e rarefação das figuras vão definindo entes do universo da visualidade. Ao longo dos anos, Carmela percorreu livremente o impalpável espaço aéreo, o imenso vazio, criou intimidade com o desconhecido e o incerto. Seu domínio se estabeleceu pela eliminação de todo vestígio tátil e de todo corpo físico, em proveito da imagem ótica, esta mais abstrata. Também pelo humor peculiar com que soube propor seus jogos óticos e enganar a vista com a ilusão e magia da imagem. O PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, de 1981, fixava manchas fugidias, imagens desmanchadas comentadas ironicamente por notações geométricas em grafia de desenho técnico. Em conjunto, formavam paisagem envolvente. Os QUASARES expunham a indefinição da imagem ótica desfocada e abreviada em mínimos meios. As figuras que definem o universo visível de Carmela apresentam-se em momento anterior ao signo. Resistem como forma aos automatismos e às facilidades da linguagem e se impõem como presenças visuais anteriores a qualquer significação. Tudo é recriado pelo desvio do semelhante e aparece como uma revelação primeira, que guarda o encanto da forma e o frescor da garatuja infantil. A familiaridade que descobrimos em relação com os rabiscos da Carmela procede seguramente da fluência dos gestos curvos e da afetividade da forma, não provém do terreno das idéias. Carmela provoca lembranças ancestrais. As figurações dos paíneis murais presentes nesta 20ª Bienal são densas sedimentações dessa experiência acumulada pela artista, permanências obstinadas da remota vida do homem das cavernas, ecos atravessando o tempo. Os gestos largos e simples estão agigantados numa grandeza cósmica. Cortam a continuidade de uma suave superfície de papel de fibra artesanal pintada de tinta prateada. Os riscos rasgam o espaço luminoso e espelhante como questionamentos, não-objetividades, não-aparições. São desaparições, sombras que ampliam a luminosidade e a espacialidade. As mesmas figuras projetadas ou refletidas numa parede frontal à primeira são então absorvidas, como se, filtradas por uma poeira rósea, adentrassem a porosa superfície da parede, nela se inscrevendo. São ainda visões a distância. A apropriação da terceira parede, menor, dá-se em outra escala, numa escrita com a sugestão de um X (um X marca: aqui, um X anula: não). Trata-se de uma sugestão, não chegando a se configurar o sinal, cujos riscos, orientados para diversos sentidos espaciais, se dispersam. A rigor, não se trata de riscos, nem de pintura. Nem tampouco se deve falar em objeto, apesar do desenho ser construído com hastes de metal pintado de preto e valorizado pelas tensões obtidas por meio da ambigüidade existente entre o traçado da mão e o material fundido. Diante da dispersão das hastes do não-objeto, sinal que não se divisa, um ponto ocupa a quarta parede. Momento de concentração, resultante da superposição de várias camadas aglomeradas. É o contraponto necessário às teias imaginárias que enrendam o homem nesse espaço. Ana Maria de Moraes Belluzzo Publicado em: ARTISTAS brasileiros na 20ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal: Ed. Marca D’Água, 1989. p.58-59.![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1989_-_xx_bienal_sp_03_-_montagem.jpg)
3,78 x 2,69 m
6 peças de alumínio pintado Foto Ana Pigosso "uma escrita com a sugestão de um X (um X marca: aqui, um X anula: não). Trata-se de uma sugestão, não chegando a se configurar o sinal, cujos riscos, orientados para diversos sentidos espaciais, se dispersam. A rigor, nao se trata de riscos, nem de pintura. Nem tampouco se deve falar em objeto, apesar do desenho ser construído com hastes de metal pintado de preto e valorizado pelas tensões obtidas por meio da ambiguidade existente entre o traçado da mão e o material fundido. [...] Momento de concentração, resultante da superposição de várias camadas aglomeradas. É o contraponto necessário às teias imaginárias que enredam o homem no espaco". Trecho de "Carmela Gross", de Ana Maria de Moraes Belluzzo. ARTISTAS brasileiros na 20ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal: Ed. Marca D’Água, 1989![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1989_-_x_-_ana_pigosso.jpg)
100 x 70 cm cada parte de 11
Off-set sobre papel
Foto Ana Pigosso“A exposição Quasares (1983), trazia um nome enigmático, a significar, segundo a artista, “vibrações sonoras captadas por sensores de sons”. Pensávamos estar novamente diante das experimentações da década anterior: impressões em off-set registravam imagens fantasmáticas, a nos transportar incorporeidade em sua imprecisão, alusivas, embora por sua própria indefinição, nada nos remetesse às fontes de onde a artista extraia essas formas interferidas pelos processos até a impressão gráfica.”
Trecho de “Carmela Gross: Um olhar em perspectiva”, de Aracy Amaral.
Carmela Gross: Hélices. Rio de Janeiro: MAM, 1993. Catálogo de exposição.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1983_-_quasares_-_ana_pigosso.jpg)
21 x 29 cm cada parte de 3
fotocópias frente e verso montadas em molduras basculantes de alumínio e acrílico transparente
Foto Ana PigossoVia Láctea, de 1979, parte do soneto XIII do poema Via Láctea – também conhecido como “Ouvir Estrelas” – uma das obras mais celebradas do poeta brasileiro Olavo Bilac, expoente do Parnasianismo no Brasil.
O conjunto de fotocópias montadas em molduras basculantes traz, de um lado de cada parte do tríptico, uma imagem que se refere a galáxia da qual o Sistema Solar faz parte e, do outro lado de cada parte, trechos do soneto de Bilac. O poema vem esquadrinhado nas páginas, criando uma espécie de caça-palavras.
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1979_-_via_lactea_-_ana_pigosso.jpg)
60 x 40 cm
Impressão com pigmento mineral sobre papel Hahnemühle Museum Etching 350 gr
Foto VermelhoGosto de pensar este trabalho como um desenho. Talvez um grafismo paleolítico, pois ele evoca a maneira mais primitiva de desenhar – um risco de tinta sobre uma superfície de terra.
Durante um período de greve, saí com um grupo de amigos que estudavam como eu numa escola de arte, para fotografar pinturas de bares e borracharias, na periferia da cidade. Neste dia levávamos também conosco alguns tubos de tinta spray. Decidimos parar numa zona quase deserta, lá pelos lados de Santo Amaro, onde uma avenida recém aberta cortava uma área acidentada entre curvas, buracos e grandes barrancos. Um paredão de terra parecia bom para pintar. Um deles, com a terra frisada horizontalmente, funcionava exatamente como uma escada, pela qual podia se subir e descer livremente. Me aproveitei para desenhar nele linhas em ziguezague, como os degraus de uma escada.
A coisa observada (barranco/degraus de terra) e a coisa desenhada (risco/esquema), quase na mesma escala, ressoaram uma na outra. Um desenho urbano.
Carmela Gross
![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1968_-_escada_-_foto_gabriel.jpg)
Dimensões variáveis
6 unidades de madeira esmaltada Foto Isabella Matheus A cena artística durante o final dos anos 1960 presta-se a experimentações conceituais e técnicas, ainda que o governo da ditadura civil-militar cerceie a liberdade de expressão no País. O percurso de Carmela Gross, iniciado nesse período, trata da pesquisa teórica e formal, criando um repertório complexo. O material utilizado em sua obra, extraído do contexto original, serve como meio para a observação do processo artístico. Sua produção engloba desenhos, gravuras, pinturas, esculturas e intervenções públicas. Conceitualmente, a discussão sobre o limite da arte encontra-se desde os primeiros trabalhos, como Nuvens (1967): um conjunto de seis peças de madeira pintadas com material industrial (esmalte azul) representando nuvens, cuja perfeição da forma sugere que se trata da replicação de um desenho. A ligação com a arte pop na escolha do tema e do material é evidenciada pela repetição na execução (que não implica a marca individual do artista) e pela crítica à avidez da sociedade de consumo. Enciclopédia Itaú Cultural http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8666/carmela-gross![](https://galeriavermelho.com.br/wp-content/uploads/2021/03/1967_-_nuvens.jpg)
A produção artística de Carmela Gross assinala um olhar incisivo e crítico sobre a cidade contemporânea em sua dimensão política e social. O eixo comum, para além da diversidade dos contextos e das propostas elaboradas, está na relação entre o trabalho de arte e a cidade.
O conjunto de operações que envolvem desde a concepção do trabalho, passando pelo processo de produção, até a disposição no lugar de exibição enfatizam a relação dialética entre a obra e o espaço urbano, entre a obra e o público/transeunte. Seus trabalhos procuram engendrar novas percepções artísticas que afirmam uma ação e um pensamento críticos e que trazem à tona a carga semântica do lugar, seja ele um espaço público, uma instituição ou o momento de uma exposição.
Gross participou da Bienal de São Paulo em 7 edições, da Bienal de Moscou de 2007 e da 5ª Bienal do Mercosul. A artista tem obras públicas permanentes em Paris, São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Laguna. Ela foi destaque na exposição Mulheres Radicais, que, entre 2017 e 2018, ocupou o Hammer Museum, em Los Angeles, o Brooklyn Museum, em Nova York, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, reunindo 127 artistas e coletivos de 15 países.
Seu trabalho faz parte de coleções permanentes como: Culturgest (Lisboa); MoMA (New York); MAC USP (São Paulo); Museu de Arte Moderna (São Paulo); Pinacoteca do Estado de São Paulo (São Paulo); Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Recife); Museum of Fine Arts (Houston); Colección de Arte del Banco de la República (Bogotá).
A produção artística de Carmela Gross assinala um olhar incisivo e crítico sobre a cidade contemporânea em sua dimensão política e social. O eixo comum, para além da diversidade dos contextos e das propostas elaboradas, está na relação entre o trabalho de arte e a cidade.
O conjunto de operações que envolvem desde a concepção do trabalho, passando pelo processo de produção, até a disposição no lugar de exibição enfatizam a relação dialética entre a obra e o espaço urbano, entre a obra e o público/transeunte. Seus trabalhos procuram engendrar novas percepções artísticas que afirmam uma ação e um pensamento críticos e que trazem à tona a carga semântica do lugar, seja ele um espaço público, uma instituição ou o momento de uma exposição.
Gross participou da Bienal de São Paulo em 7 edições, da Bienal de Moscou de 2007 e da 5ª Bienal do Mercosul. A artista tem obras públicas permanentes em Paris, São Paulo, Porto Alegre, Curitiba e Laguna. Ela foi destaque na exposição Mulheres Radicais, que, entre 2017 e 2018, ocupou o Hammer Museum, em Los Angeles, o Brooklyn Museum, em Nova York, e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, reunindo 127 artistas e coletivos de 15 países.
Seu trabalho faz parte de coleções permanentes como: Culturgest (Lisboa); MoMA (New York); MAC USP (São Paulo); Museu de Arte Moderna (São Paulo); Pinacoteca do Estado de São Paulo (São Paulo); Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Recife); Museum of Fine Arts (Houston); Colección de Arte del Banco de la República (Bogotá).
Carmela Gross
1946. São Paulo, Brasil
Vive e trabalha em São Paulo
Exposições Individuais
2024
– Carmela Gross. Quase Circo – Sesc Pompéia – São Paulo – Brasil
2023
– A Negra – Projeto Clareira – Museu de Arte Contemporânea (MAC USP) – São Paulo – Brasil
– Carimbos – Instituto de Arte Contemporânea (IAC) – São Paulo – Brasil
2022
– Iracemas – Instituto de Arte Contemporânea ((IAC) – São Paulo – Brasil
– Bando – Projeto Escândalo – Parque Lage – Rio de Janeiro – Brasil
2021
– fendas, fagulhas [cracks, sparks] – Vermelho – São Paulo – Brasil
– Vulcão – Museu de Arte Moderna (MAM Rio) – Rio de Janeiro – Brasil
2019
– Carmela Gross. Projeto Escada – Galeria Virgílio – São Paulo – Brasil
– Carmela Gross. Roda Gigante – Santander Cultural – Porto Alegre Brasil
2018
– Real People are Dangerous – Auroras – São Paulo – Brasil
2017
– Carmela Gross: The Photographer – Kunsthalle Bratislava – Bratislava – Eslováquia
2016
– Um, Nenhum, Muitos – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– Arte à mão armada – Chácara Lane – Museu da Cidade – São Paulo – Brasil
– Instalação da artista Carmela Gross na Capela do Morumbi – Capela do Morumbi – São Paulo – Brasil
2014
– Carmela Gross – Projeto Parede – Museu de Arte de Moderna (MAM SP) – São Paulo – Brasil
2013
– Escadas – Casa França-Brasil – Rio de Janeiro – Brasil
2012
– Serpentes – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– Escadas – SESC Belenzinho – São Paulo – Brazil
– La Carga – Museo Experimental El Eco – Cidade do México – México
2010
– Carmela Gross: Um Corpo de Ideias – Estação Pinacoteca – São Paulo – Brasil
2009
– Arte à Mão Armada – Galeria Cilindro – Campina Grande – Brasil
2008
– SE VENDE – Matadero – Madri – Espanha
2007
-Uma Casa – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– O Fotógrafo – Escola da Cidade – São Paulo – Brasil
2006
– Arte Passageira – Centro Universitário Mariantonia – São Paulo – Brasil
– O Fotógrafo – SESC Ribeirão Preto – São Paulo – Brasil
– SUL – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
2004
– Bleujaunerougerouge – Intervenção Arquitetônica – École René Binet – Paris – França
– AURORA – Galeria Olido – São Paulo – Brasil
– Um azul um amarelo dois vermelhos – Espaço Cultural Marcantonio Vilaça – Brasília – Brasil
2003
– Carmela Gross – Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães [MAMAM] – Recife – Brasil
– HOTEL – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
2001
-Alagados e Monumentos – Celma Albuquerque Galeria de Arte – Belo Horizonte – Brasil
2000
– Alagados – Centro Universitário Mariantonia – São Paulo – Brasil
– Projeto Parede – Museu de Arte Moderna [MAM ] – São Paulo – Brasil
1999
– Espaço Aberto – Oficina Cultural Oswald de Andrade – São Paulo – Brasil
– Projéteis – Paço das Artes – São Paulo – Brasil
– Comedor de Luz- Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
1998
– 300 Desenhos – Instituto de Artes da UFRS – Porto Alegre – Brasil
1997
– Feche a Porta e Projeto para a Construção de um Céu – Centro Cultural São Paulo [CCSP] – São Paulo – Brasil
1995
– Carmela Gross – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Facas – Museu de Arte Moderna [MAM] – São Paulo – Brasil
1994
– Facas – Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] – Rio de Janeiro – Brasil
- Facas – European Ceramics Work Centre – Hertogenbosch – Holanda
– Larvas – Galeria Ido Finotti – Universidade Federal de Uberlândia – Uberlândia – Brasil
– Hélices – Museu de Arte de Ribeirão Preto – Ribeirão Preto – Brasil
1993
– Hélices – Galeria de Arte da Universidade Federal Fluminense – Niterói – Brasil
– Hélices – Museu de Arte Moderna [MAM RJ] – Rio de Janeiro – Brasil
1992
– Desenhos – Museu de Arte Moderna [MAM ] – São Paulo – Brasil
– Pinturas – Galeria São Paulo – Brasil
– Instalação – Capela do Morumbi – São Paulo – Brasil
1990
– Objetos – Galeria São Paulo – São Paulo – Brasil
1989
– Objetos Bestas – Galeria Eaço Capital – Brasília – Brasil
1988
– Pintura/Objeto – Museu de Arte do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – Brasil
– Pintura/Objeto – Galeria São Paulo – São Paulo – Brasil
1987
– Pintura/Desenho – Museu de Arte Contemporânea [MAC U] – São Paulo – Brasil
1986
– Quasares – Eaço Latino-Americano – Paris – França
– Pinturas – Galeria Luiza Strina – São Paulo – Brasil
1984
– Pinturas – Montagens – Cartazes – Galeria Luisa Strina – São Paulo – Brasil
1983
– Quasares – Museu de Arte Moderna [MAM RJ] – e Centro Cultural São Paulo [CC] – Brasil
1982
– Projeto para a Construção de um Céu – Brazilian-American Cultural Institute – Washington – EUA
1980
– Carimbos – Espaço N.O. – Porto Alegre – Brasil
1978
– Carimbos – Gabinete de Artes Gráficas – São Paulo – Brasil
1977
– Desenhos – Gabinete de Artes Gráficas – São Paulo – Brasil
Exposições Coletivas
2023
– Veredas Festival de Arte Contemporânea (2ª edição) – Mostra Virtual
– Pedra Viva: Serra da Capivara – O Legado de Niède Guidon – Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MUBE) – São Paulo – Brasil
– Chão da praça: obras do acervo da Pinacoteca – Pinacoteca Contemporânea – São Paulo – Brasil
– Eu enterrei meu umbigo aqui – Galeria Marco Zero – Recife – Brasil
– Tridimensional: entre o estético e o sagrado (Um recorte da coleção Vera e Miguel Chaia) – Arte 132 Galeria – São Paulo – Brasil
2022
– 34a Bienal de São Paulo Itinerâncias – LUMA Arles – Arles – França
– Dentro de ti – Quadra – São Paulo – Brasil
– Vivemos prá isso – Galpão Vermelho e Ateliê397 – São Paulo – Brasil
– A Barganha – coleção moraes-barbosa – São Paulo – Brasil
– Horizontes Moventes – Boa Vista – Brasil
– Histórias Brasileiras – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand [MASP] – São Paulo – Brasil
– Lugar comum – Museu de Arte Contemporânea [MAC] – São Paulo – Brasil
– Contar o tempo – Mariantonia – São Paulo – Brtasil
2021
– Da Letra à Palabra – Museu Judaico – São Paulo – Brasil
– 34a Bienal de São Paulo. Faz escuro mas eu canto – Pavilhão Ciccillo Matarazzo – São Paulo – Brasil
– Janelas para dentro – Casa Míllan – São Paulo – Brasil
– 1991-2021: Arte Contemporânea Brasileira na Coleção Andrea e José Olympio Pereira – Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] – Rio de Janeiro – Brasil
– Amilcar de Castro, Diálogos Contemporâneos: Matéria-Linha – Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MUBE) – São Paulo – Brasil
2020
– Connecting Currents. Contemporary Art at the Museum of Fine Arts – Museum of Fine Arts – Houston – EUA
– Decategorized Artists From Brazil – Fundación ArtNexus – Bogotá – Colômbia
– Pinacoteca: Acervo – Pina_Luz – Pinacoteca do Estado de São Paulo – São Paulo – Brasil
– Luzes da Memória – Instituto de Arte Contemporânea [IAC] – São Paulo – Brasil
– Farsa – Sesc Pompéia – São Paulo – Brasil
– Vídeo_MAC – Museu de Arte Contemporânea [MAC] – São Paulo – Brasil
– Bienal 12 Online – Bienal do Mercosul – Porto Alegre – Brasil
– Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM – 20 anos – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– Dupla Central na Biblioteca Mário de Andrade – Biblioteca Mário de Andrade – São Paulo – Brasil
2019
– SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JUNHO DE 2019 – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– Arte Naïf – Nenhum museu a menos – Parque Lage – Rio de Janeiro – Brasil
– O ano em que vivemos em perigo – Museu de Arte Moderna (MAM SP) – São Paulo – Brasil
– Passado/Futuro/Presente: Arte contemporânea brasileira no acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Museu de Arte Moderna de São Paulo [MAM SP] – São Paulo – Brasil
2018
– Mulheres na coleção do MAR – Museu de Arte do Rio [MAR] – Rio de Janeiro – Brasil
– Invenção de Origem – Estação Pinacoteca – São Paulo – Brasil
– Exceção – Espaço Cultural Casa do Lago – Unicamp – Campinas – Brasil
– AI-5 50 ANOS. Ainda não terminou de acabar – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
– Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960–1985 – Pinacoteca do Estado – São Paulo – Brasil
– Arte tem gênero? Mulheres na Coleção de Arte da Cidade – Centro Cultural São Paulo (CCSP) – São Paulo – Brasil
– Brasile. Il coltello nella carne – Padiglione di Arte Contemporanea (PAC) – Milão – Itália
– Radical Women: Latin American Art, 1960–1985 – Brooklyn Museum – Nova York – EUA
– #iff2018 – Instituto Figueiredo Ferraz (IFF) – Ribeirão Preto – Brasil
– A Vastidão dos Mapas – Palacete das Artes – Salvador – Brasil
2017
– Potência e Adversidade. Arte da América Latina nas coleções em Portugal – Museu de Lisboa – Lisboa – Portugal
– ON ANAM. Where are we going? – Es Baluard Museu d’Art Modern i Contemporani – Palma de Mallorca – Espanha
– Radical Women: Latin American Art, 1960-1985 (Pacific Standard Time: LA/LA) – Hammer Museum – Los Angeles – EUA
– Past/Future/Present: Contemporary Brazilian Art from the Museum of Modern Art, São Paulo – Phoenix Art Museum – Phoenix – EUA
– São Paulo não é uma cidade, invenções do Centro – Sesc 24 de Maio – São Paulo – Brasil
– Here the border is you – ProyectosLA & Pacific Standard Time: LA/LA – Los Angeles – EUA
– Metrópole: experiência Paulistana – Estação Pinacoteca – São Paulo – Brasil
– OSSO Exposição-apelo pelo amplo direito de defesa de Rafael Braga – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
– A vastidão dos mapas. Arte contemporânea em diálogo com mapas da Coleção Santander – Museu Oscar Niemeyer – Curitiba – Brasil
– Pedra no Céu: Arte e a Arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia – São Paulo – Brasil
2016
– Coletiva – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– The Winter of Our Discontent – Galerie Martin Janda – Viena – Áustria
– Os muitos e o um: a arte contemporânea brasileira na coleção de José Olympio e Andrea Pereira – Instituto Tomie Ohtake (ITO) – São Paulo – Brasil
– Clube da Gravura: 30 anos – Museu de Arte Moderna (MAM) – São Paulo – Brasil
– Brasil, Beleza?! – Museum Beelden aan Zee – Den Haag – Holanda
2015
– Uma coleção particular: Arte contemporânea no acervo da Pinacoteca – Pinacoteca do Estado – São Paulo – Brasil
– Retrospectiva. 25 anos do Programa de Exposições CCSP – Centro Cultural São Paulo (CCSP) – São Paulo – Brasil
2014
– Matéria do Mundo: Projeto Arte e Indústria – MAC Ibirapuera – São Paulo – Brasil
– Afetividades Eletivas – Centro Cultural Minas Tênis Clube – Belo Horizonte – Brasil
– Iberê Camargo: século XXI – Fundação Iberê Camargo – Porto Alegre – Brasil
– A serpente no imaginário artístico – Museu Afro – Brasil – São Paulo – Brasil
– Contemporary Art: Selections from the Museum’s Collection – The Museum of Fine Arts – Houston – EUA
– Verbo 2014. Mostra de Performance Arte (10ª ed.) – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– Experimentando Espaços 2 – Museu da Casa Brasileira – São Paulo – Brasil
– 140 Caracteres – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– Vertigo – SIM Galeria – Curitiba – Brasil
2013
– Tomie Correspondências – Centro Cultural dos Correios – Rio de Janeiro – Brasil
– Escavar o Futuro – Fundação Clóvis Salgado – Belo Horizonte – Brasil
– 30 X Bienal: Transformações na Arte Brasileira da 1ª à 30ª edição – Pavilhão da Bienal – São Paulo – Brasil
– Universo Póliédro – Museo Valenciano de la Ilustración y la Modernidad [MUVIM] – Valência – Espanha
– Tomie Correspondências – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
2012
– Da Seção de Arte ao Prêmio Aquisição: a gênese do Gabinete do Desenho – Gabinete do Desenho – São Paulo – Brasil
– 64ª Salão Paranaense [artista convidada] – Museu de Arte Contemporânea do Paraná – Curitiba
– Da próxima vez eu fazia tudo diferente – Pivô / COPAN – São Paulo – Brasil
– Percursos Contemporâneos – Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba – Sorocaba – Brasil
– Expansivo – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– O tridimensional no acervo do MAC: uma antologia – Museu de Arte Contemporânea [MAC U] – São Paulo – Brasil
2011
– Contra a Parede – Galeria Vermelho – São Paulo – Brasil
– Exposições no Mariantonia – Centro Universitário Maria Antonia – São Paulo – Brasil
– 748.600 – Santander Cultural –Recife – PE – Brasil
– 748.600 – Paço das Artes – São Paulo – – Brasil
– Zona Letal – Eaço Vital – Museu de Arte Contemporânea de Elvas – Museu Municipal de Tavira/ Palácio da Galeria – Portugal
2010
– Paisagem incompleta – Palácio das Artes – Belo Horizonte – Brasil
– Por aqui – formas tornaram-se atitudes – SESC Vila Mariana – São Paulo – Brasil
– Transição / From Now On…. – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Um dia terá que ter terminado 1969/74 – Museu de Arte Contemporânea [MAC U] – São Paulo – Brasil
– Ponto de Equilíbrio – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
– TEKHNE – Fundação Armando Alvares Penteado [FAAP] – São Paulo – Brasil
2009
– Os Mágicos Olhos das Américas – Museu Afro Brasil – São Paulo – Brasil
– 5a. Bienal Vento Sul – Curitiba – Brasil
2008
– Real People Are Dangerous – SCAPE 2008 Christchurch Biennial of Art in Public Space – Nova Zelândia
– Arte Contemporânea Brasileira – Estação Pinacoteca- São Paulo – Brasil
– A Última Casa – A Última Paisagem – Galeria Matias Brotas – Vitória – Brasil
– Alguns Aspectos do Desenho Contemporâneo – SESC Pinheiros – São Paulo – Brasil
2007
– II Bienal de Arte Contemporânea – Moscou – Rússia.
– Encuentro entre dos Mares: Bienal São Paulo-Valência – Valência -Espanha
– Não Existem dois elefantes iguais – Fundação Vera Chaves Barcellos – Porto Alegre – Brasil
– Anos 70: Arte como Questão – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
– Olhar Seletivo – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Transparências – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
2006
– Paralela 2006 – Pavilhão Armando Arruda Pereira – Parque do Ibirapuera – São Paulo – Brasil
– Desenho Contemporâneo – Galeria Saraiva Queiroz e Sala Alternativa – Uberlândia – Brasil
– A Cidade para a Cidade – Centro Cultural São Paulo [CCBB] – São Paulo – Brasil
– Gravura em Metal – matéria e conceito – Fundação Iberê Camargo – São Paulo – Brasil
– Clube de Gravura: 20 anos – Museu de Arte Moderna [MAM ] – São Paulo – Brasil
– Manobras Radicais – Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] – São Paulo – Brasil
– MAM [na] OCA – Oca – Parque do Ibirapuera – São Paulo – Brasil
2005
– Karakoy Pedestrian Exhibition 2 – Istambul – Turquia
– L’Autre Amerique Art Contemporain du Brésil – Passage de Retz – Paris – França
– Entregravuras – Museu de Arte de Santa Catarina – Florianópolis – Brasil
– Trajetórias – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– 5ª Bienal do Mercosul – Porto Alegre – Brasil
2004
– LUZIA – Centro Universitário SENAC – São Paulo – Brasil
– Conversa Contemporânea – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Arte Contemporânea no Ateliê de Iberê Camargo – Centro Universitário Maria Antonia – São Paulo – Brasil
– Arte Contemporânea: Uma História em Aberto – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Fashion Passion – 100 Anos de Moda na OCA – OCA – Parque do Ibirapuera – São Paulo – Brasil
– Arte Contemporânea no Acervo Municipal – Centro Cultural São Paulo – São Paulo – Brasil
2003
– Atelier FINEP – Paço Imperial do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil
– Interfaces Contemporâneas – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Arte e Sociedade – Uma Relação Polêmica – Itaú Cultural – São Paulo – Brasil
– A Gravura – Vai Bem Obrigado – Espaço Virgílio – São Paulo – Brasil
– Mostra SESC de Artes – Latinidades – SESC Pompéia – São Paulo -Brasil
– A Subversão dos Meios – Itaú Cultural – São Paulo -Brasil
– Imagética – Fundação Cultural de Curitiba – Curitiba – Brasil
2002
– 20 Anos – 20 Artistas – Centro Cultural São Paulo – São Paulo – Brasil
– Caminhos do Contemporâneo – 1952/2002 – Paço Imperial – Rio de Janeiro – Brasil
– Genealogia do Espaço – Centro Cultural Parque das Ruínas – Rio de Janeiro – Brasil
– Coleção Metrópolis de Arte Contemporânea – Pinacoteca do Estado – São Paulo – Brasil
– Tangenciando Amilcar – Santander Cultural – Porto Alegre – Brasil
– ArteCidadeZonaLeste – SESC Belenzinho – São Paulo – Brasil
– XXV Bienal Internacional de São Paulo – Pavilhão da Bienal – São Paulo – Brasil
– 12 Esculturas – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Genius Locchi – Centro Universitário Maria Antonia – São Paulo – Brasil
– Nefelibatas – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– A Imagem do Som no Rock-Pop Brasileiro – Paço Imperial – Rio de Janeiro – Brasil
– Territórios – Instituto Tomie Ohtake – São Paulo – Brasil
– Matéria Prima – Museu Oscar Niemeyer – Curitiba – Brasil
– Ceará Redescobre o Brasil – Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar – Fortaleza – Brasil
2001
– Anos 70: Trajetórias – Itaú Cultural – São Paulo – Brasil
– Trajetória da Luz na Arte Brasileira – Itaú Cultural – São Paulo – Brasil
– São Paulo Turística – Museu de Arte Moderna [MAM Higienópolis] – São Paulo – Brasil
– Tangências – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Experiment Experiência/Art in Brazil 1958–2000 – Museum of Modern Art Oxford – Oxford – Inglaterra
– Politicas de la Diferencia–Arte Iberoamericano fin de siglo – Centro de Convenções – Recife – Brasil
– II Mostra do Programa de Exposições 2001 – Centro Cultural São Paulo [CCSP] – São Paulo – Brasil
– Caminhos da Forma – Tridimensionais da Coleção MAC USP – Galeria de Arte do SESI – São Paulo – Brasil
– O Espírito da Nossa Época – Coleção Dulce e João Figueiredo Ferraz – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
2000
– Cá Entre Nós – Paço das Artes – São Paulo – Brasil
– O Trabalho do Artista – Itaú Cultural – São Paulo – Brasil
– Gravura – gravura – Espaço Museu de Arte Moderna Villa Lobos – São Paulo – Brasil
– 15 Anos do Clube de Colecionadores de Gravura do Museu de Arte Moderna – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– Brasil + 500 – Mostra do Redescobrimento – Fundação Bienal de São Paulo – São Paulo – Brasil
– Obra Nova – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Situações – Arte Brasileira/anos 70 – Fundação Casa França-Brasil – Rio de Janeiro – Brasil
– Leituras Construtivas – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
1999
– Mostra Gravura Rio – Palácio Gustavo Capanema – Rio de Janeiro – Brasil
– Noturnos – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– De Brasil – Alquimias e Processos – Biblioteca Luis Ángel Arango – Bogotá – Colômbia
– Por que Duchamp? – Paço das Artes – São Paulo – Brasil
– Território Expandido – Prêmio Multicultural Estadão – SESC Pompéia – São Paulo – Brasil
– Philips Eletromidia da Arte – 3ª Exposição Virtual – São Paulo – Brasil
– Re-Aligning Vision-Alternative Currents in South American Drawing – Miami Art Museum – Miami – EUA
1998
– 30ª Anual de Arte – Museu de Arte Brasileira – Fundação Armando Álvares Penteado – São Paulo – Brasil
– XXIV Bienal Internacional de São Paulo – Pavilhão da Bienal – São Paulo – Brasil
– Formas Transitivas – Gabinete de Arte Raquel Arnaud – São Paulo – Brasil
– Fronteiras – Itaú Cultural – São Paulo – São Paulo – Brasil
– Heranças Contemporâneas II – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– A Gravura da Linguagem – Pensar Gráfico – Paço Imperial – Rio de Janeiro; Pinacoteca do Estado de São Paulo – São Paulo – Brasil
– Re-Aligning Vision-Alternative Currents in South American Drawing – Archer M. – Huntington Art Gallery – Austin – EUA
1997
– Diversidade da Escultura Brasileira Contemporânea – Itaú Cultural – São Paulo – Brasil
– Intervalos – Paço das Artes – São Paulo – Brasil
– Re-Aligning Vision-Alternative Currents in South American Drawing – El Museo del Barrio – Nova Iorque – EUA
– United Artists III – Luz – Casa das Rosas – São Paulo – Brasil
– Arte-Cidade – Intervenções Urbanas – SESC Pompéia – São Paulo – Brasil
1996
– United Artists II – Utopia – Casa das Rosas – São Paulo – Brasil
– Beelden uit Brazilie – Stedelijk Museum Schiedam – Amsterdam – Holanda
– IV Studio de Tecnologias de Imagens – SESC Pompéia – São Paulo – Brasil
– O Único – o Mesmo – o A-fundamento – Valú Oria Galeria de Arte – São Paulo – Brasil
– Projeto Contato – SESC Paulista – São Paulo – Brasil
1995
– II Bienal de Barro de América – Museu de Arte Contemporânea Sophia Imber – Caracas – Venezuela
– V Bienal Nacional de Santos – Santos – Brasil
– Garner Tullis Workshop – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– XI Mostra da Gravura de Curitiba – Fundação Cultural de Curitiba – Brasil
– O Desenho em São Paulo 1956 – 1995 – Galeria Nara Roesler – São Paulo – Brasil
1994
– Bienal Brasil Século XX – Fundação Bienal de São Paulo – Brasil
– Arte-Cidade – A Cidade Sem Janelas – Matadouro Municipal – São Paulo – Brasil
– Espaços Habitados – Ópera de Conrado Silva – cenário – Teatro Sérgio Cardoso – Brasil
1993
– Outdoors/Exposição Comemorativa do Centenário de Mário de Andrade – Centro Cultural São Paulo – São Paulo – Brasil
– Acervo CAPES – Ministério da Educação e Cultura – Brasília – Brasil
– 20 X10 – Espaço Cultural 508 Sul – Brasília – Brasil
– Brazilian Contemporary Art Projects – Museu de Arte Contemporânea – São Paulo – Brasil
– Olho Mágico – Documenta Galeria de Arte – São Paulo – Brasil
– Um Olhar sobre Joseph Beuys – Museu de Arte de Brasília – Brasil
– Coletiva no Eaço Arte do Morumbi Shopping – São Paulo – Brasil
– Via Fax – Museu de Arte de Ribeirão Preto [MARP] – Ribeirão Preto – Brasil
– Terracor / Coletiva de Pintura – A Estufa – São Paulo – Brasil
– Coletiva de Pinturas – Espaço Namour – São Paulo – Brasil
1992
– A Gravura de Arte no Brasil – Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] – Rio de Janeiro – Brasil
– A Linguagem dos Minerais – Espaço Miriam Mamber Artwear e Design – São Paulo – Brasil
– Artistas Convidados e Homenageados – Salão de Arte de Jundiaí – Brasil
– Arte Brasileira na Coleção: Anos 70/90 – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Salão Paraense de Arte Contemporânea – Secretaria de Estado da Cultura – Belém – Brasil
– O Branco Dominante – Galeria São Paulo – São Paulo – Brasil
1991
– Internacional Esculturas Efêmeras – Fundação Demócrito Rocha – Fortaleza – Brasil
– Latin-American Drawings Today – San Diego Museum of Art – San Diego – EUA
– Panorama da Arte Atual Brasileira – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– O Que Faz Você Agora-Geração 60 – Museu de Arte Contemporânea [MAC SP] – São Paulo – Brasil
– Fax – Arte – Museu de Arte de São Paulo [MASP] – Brasil
1990
– Presença do Desenho – Paço das Artes – São Paulo – Brasil
– Prêmio Brasília de Artes Plásticas – Museu de Arte de Brasília – Brasília – Brasil
– Latinoamerica Presente – Museo de Bellas Artes de Santiago – Santiago – Chile
– IX Mostra de Gravura Cidade de Curitiba – Casa da Gravura – Curitiba – Brasil
– Panorama da Arte Atual Brasileira – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
– Gente de Fibra – SESC Pompéia – São Paulo – Brasil
1989
– XX Bienal Internacional de São Paulo – Parque do Ibirapuera – São Paulo – Brasil
– 9 Mulheres – Galeria Millan – São Paulo – Brasil
– Exposição Acervo – Galeria São Paulo – Brasil
– Panorama da Arte Brasileira – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
1987
– A Trama do Gosto – Fundação Bienal de São Paulo – São Paulo – Brasil
1986
– Projeto Vermelho – Proggetto Rosso – Museu de Arte Brasileira [MAB] – São Paulo – Brasil
– XX/XXI – Uma Virada no Século – Pinacoteca do Estado de São Paulo – Brasil
– 12 Anos – Galeria Luiza Strina – São Paulo – Brasil
– Projeto Ivan Serpa – Galeria Sergio Milliet – FUNARTE – Rio de Janeiro – Brasil
1985
– O Céu do Rio – Planetário do Rio de Janeiro – RJ – Brasil
– Caligrafias e Escrituras – Galeria Sergio Milliet – FUNARTE – Rio de Janeiro – Brasil
– Brasil – Desenho – FUNARTE – Rio de Janeiro e Centro Cultural São Paulo – Brasil
– Arte Tecnologia – Museu de Arte Contemporânea [MAC SP] – São Paulo – Brasil
– Tendências do Livro de Artista no Brasil – Centro Cultural São Paulo – São Paulo – Brasil
– Novos Meios/Multimeios – Brasil 70/80 – Museu de Arte Brasileira [MAB] – São Paulo – Brasil
– Destaques – Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo – Brasil
1984
– Poesia Evidência – Pontifícia Universidade Católica [PUC] – São Paulo – Brasil
– O Desenho Brasileiro – Fundação Cândido Mendes – Rio de Janeiro – Brasil
– Tradição e Ruptura – Fundação Bienal de São Paulo – Brasil
1983
– XVII Bienal Internacional de São Paulo – Pavilhão da Bienal – Brasil
– Arte na Rua – Museu de Arte Contemporânea [MAC SP] – São Paulo – Brasil
1982
– I Festival da Mulher nas Artes – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Arte pelo Telefone – Museu da Imagem e do Som [MIS] – São Paulo – Brasil
– A Gravura de Arte no Brasil – Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] – Rio de Janeiro – Brasil
1981
– Bienal Americana de Artes Gráficas – Cali – Colômbia
– Exposição de Heliografias – Pinacoteca do Estado de São Paulo – São Paulo – Brasil
– Arte Pesquisa – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Contemporâneos Brasileiros – Galeria São Paulo – São Paulo – Brasil
1980
– Gerox – Pinacoteca do Estado – São Paulo – Brasil
– 2 Metros e 1 Página – Cooperativa de Artistas Plásticos de São Paulo – São Paulo – Brasil
1979
– O Desenho Como Instrumento – Coop. de Artistas Plásticos – Pinacoteca do Estado – São Paulo – Brasil
– I Mostra do Desenho Brasileiro [Prêmio Aquisição] – Museu de Arte do Paraná – Curitiba – Brasil
– O Múltiplo na Arte – Galeria Múltipla – São Paulo – Brasil
– Multimedia Internacional – Escola de Comunicações e Artes da USP – São Paulo – Brasil
– Gerox – Exposição de Gravuras em Xerox – Espaço Max Pochon – São Paulo – Brasil
– O Artista e a Criança – Pinacoteca do Estado de São Paulo – Brasil
1978
– Objeto na Arte – Brasil anos 60 – Museu de Arte Brasileira [MAB] – São Paulo – Brasil
– Livro de Artistas – Gabinete de Artes Gráficas – São Paulo – Brasil
– Poucos e Raros – Museu de Arte de São Paulo [MASP] – São Paulo – Brasil
– Vídeo-Arte – Museu da Imagem e do Som [MIS] – São Paulo – Brasil
– Exposição de Gravuras – Cooperativa de Artistas Plásticos – São Paulo – Brasil
1977
– Vídeo Mac – Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
1976
– VII Salão Paulista de Arte Contemporânea – São Paulo – Brasil
1975
– Art Gallery of the Brazilian American Culture Institute – Washington DC – EUA
1970
– 6º Salão de Arte Contemporânea – Museu de Arte Contemporânea de Campinas – Campinas – Brasil
– 4ª Exposição Jovem Arte Contemporânea – Museu de Arte Contemporânea [MAC] – São Paulo – – Brasil
1969
– II Bienal Nacional de Artes Plásticas – Salvador – Brasil
– X Bienal Internacional de São Paulo – Pavilhão da Bienal – São Paulo – Brasil
1968
– IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal – Brasília – Brasil
– 4º Salão de Arte Contemporânea de Campinas – Campinas – Brasil
– Bandeiras na Praça General Osório – Rio de Janeiro – Brasil
1967
– 6 Artistas – Rex Gallery & Sons – São Paulo – Brasil
– IX Bienal Internacional de São Paulo – Pavilhão da Bienal – São Paulo – Brasil
1966
– II Encontro Universitário de Artes Plásticas – São Paulo – Brasil
– 2º Salão de Arte Contemporânea de Campinas – Campinas – Brasil
Títulos
– Doutora em Arte – Escola de Comunicações e Arte da Universidade de São Paulo – Brasil (1987)
– Mestre em Arte – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – Brasil (1981)
– Graduação em Arte – Fundação Armando Álvares Penteado – São Paulo – Brasil (1969)
Prêmios
– Bolsa Vitae de Artes Plásticas – São Paulo – Brazil (1991)
– Prêmio Brasília de Artes Plásticas – Brasília – Brazil (1990)
– Prêmio Lei Sarney [Revelação Pintura] – São Paulo – Brazil (1988)
– I Mostra do Desenho Brasileiro [Prêmio Aquisição] – Curitiba – Brazil (1979)
– 6º Salão de Arte Contemporânea de Campinas [Prêmio Aquisição] – Campinas – Brazil (1970)
– 4ª Exposição Jovem Arte Contemporânea [Prêmio Aquisição] – Museu de Arte Contemporânea [MAC] – São Paulo – Brazil (1970)
– II Bienal Nacional de Artes Plásticas [Menção Honrosa] – Salvador – Brazil (1969)
– II Encontro Universitário de Artes Plásticas [1º Prêmio – Escultura] – São Paulo – Brazil (1966)
Obras em espaços públicos
– ARAUCÁRIA – Parque José Ermírio de Moraes Filho – Curitiba – Brasil (2006)
– CASCATA – Obra Pública – Porto Alegre – Brasil (2005)
– Bleujaunerougerouge – Intervenção Arquitetônica – École René Binet – Paris – França (2004)
– Fronteira – Fonte – Foz – Praça Pública – Laguna – Brasil (2001)
Coleções Públicas [seleção]
– Museu de Arte Contemporânea [MAC USP] – São Paulo – Brasil
– Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo –Brasil
– Pinacoteca do Estado de São Paulo – São Paulo – Brasil
– Museu de Arte Contemporânea de Campinas – Campinas – Brasil
– Museu de Arte de Brasília – Brasília – Brasil
– Museu de Arte do Paraná – Curitiba –Brasil
– Fundação Padre Anchieta – São Paulo – Brasil
– Pinacoteca Municipal de São Paulo – Centro Cultural São Paulo [CCSP] – São Paulo – Brasil
– Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães [MAMAM] – Recife – Brasil
– Museum of Fine Arts – Houston – EUA
– Museum of Modern Art [MOMA] – Novo York – EUA
– Colección de Arte del Banco de la República – Bogotá – Colômbia
Coleções Privadas [seleção] abertos ao público
– Culturgest – Lisboa – Portugal
– Instituto Inhotim – Brumadinho – Brasil
– Instituto Figueiredo Ferraz (IFF) – Ribeirão Preto – Brasil
– Museu de Arte do Rio [MAR] – Rio de Janeiro – Brasil
– Coleção Andrea e José Olympio Pereira – São Paulo – Brasil
Num texto de 1993, em que analisa a obra de Carmela Gross até aquele momento, Aracy Amaral, uma das críticas brasileiras mais precisas e diretas, afirma que “o artista vale por sua trajetória”. Se essa consideração é pertinente, de maneira geral, para qualquer artista, ela sem dúvida o é ainda mais para alguém como Carmela, e mais ainda, cabe dizer, hoje, quase vinte e cinco anos depois de ter sido feita, à luz de tudo que ela produziu, ensinou, escreveu e fez, ao longo dos anos.
A exposição na Kunsthalle Bratislava, apesar de sintética, permite apontar para alguns elementos recorrentes nessa “trajetória”, que podem servir como introdução à poética da artista para um público que se depara por primeira vez com seu trabalho. Se uma exposição composta por uma instalação e um vídeo não pode ser mais que indicativa de uma carreira que cobre já mais de quatro décadas, e de uma obra que inclui pinturas, esculturas, desenhos, instalações e vídeos, além de uma intensa atividade como professora e formadora de artistas e pesquisadores, é fascinante notar como, no trabalho de Carmela, tudo se relaciona de maneira horizontal, quase rizomática, e praticamente qualquer trabalho pode funcionar como ponto de partida para abordar questões centrais na sua produção.
Desde o início, no cerne do trabalho de Carmela está o desenho. Pode parecer uma afirmação quase contraditória, considerando a escala frequentemente “urbana” (ia usar a palavra “monumental”, mas ela seria equivocada e desviante) do seu trabalho, sua presença física, suas conotações políticas, suas bases rigidamente conceituais. Todos âmbitos, isto é, que a princípio afastam a sua prática da mais convencional, de ateliê, onde o artista solitário, em silêncio, desenha. Mas o desenho é, mesmo assim, o ponto de partida da grande maioria de seus trabalhos: “ele participa, ele conduz, ele é o núcleo inicial de qualquer trabalho que eu vá fazer em outro meio”. A maneira como o desenho se faz presente no trabalho final, por outro lado, pode ser mais ou menos evidente, sem seguir uma estratégia única ou reconhecível: de certa maneira, poder-se-ia até afirmar que essa constante transformação estilística e processual é o que melhor define a prática de Carmela ao longo dos anos.
Numa obra fundamental do início da sua carreira, por exemplo (CARIMBOS, 1978), a operação consistia na subversão da liberdade implícita no gesto artístico primigênio, o rabisco ou mancha quase instintivos, ao transpô-lo num carimbo que o repete mecanicamente: a artista substitui “o gesto sensível e artesanal pela carimbada mecânica, num golpe serial. Arte fabricada”.
Vários anos depois, em 2005, ao projetar CASCATA, uma escadaria de concreto à margem do rio Guaíba, em Porto Alegre, portanto um projeto urbano, permanente e concebido para passar quase desapercebido, pelo menos como trabalho artístico, Carmela volta ao desenho: “a borda dos degraus deverá ser de ferro, aço CORTEN ou outro material a ser pesquisado, para definir claramente as linhas do desenho”, escreve na descrição do projeto.
Em O FOTÓGRAFO, de certa maneira, essas duas maneiras de abordar o desenho estão presentes: por um lado, as lâmpadas fluorescentes constituem a unidade básica do desenho, ancoram o trabalho todo à dimensão de um traço quase infantil, esquemático, elementar; por outro, como nos Carimbos, esse gesto singelo, mesmo mantendo sua espontaneidade, é transformado e subvertido ao tornar-se mecânico, neste caso até industrial, com sua proliferação de cabos, transformadores, reatores, energia…
A profusão de cabos e outros elementos funcionais, aliás, é bastante relevante na economia do trabalho, porque permite situar O FOTÓGRAFO no conjunto de obras da Carmela que se colocam, direta ou indiretamente, numa relação osmótica com a cidade. Algumas obras, em geral de grandes dimensões, como a própria CASCATA, ou o letreiro luminoso HOTEL, concebido para a 25a Bienal de São Paulo (2002), relacionam-se com a cidade pela escala e pela linguagem direta, sendo frequentemente abertas à participação ou interação do público.
A NEGRA, por exemplo (1997), apesar de quase intangível pela maneira como as suas camadas de tule a tornam etérea, é, nas palavras da artista, “um objeto-montagem em ferro e tule de nylon preto, armado sobre rodas, que possibilita o seu deslocamento ao longo da avenida, no asfalto; penso-o também como objeto-imagem, que se mistura ao movimento da rua, dos carros, dos sons e ruídos, das luzes dos edifícios, das lojas, dos anúncios; é ainda objeto-desejo, que contracena com a cidade mutante dos transeuntes – atravessar, voltear, passear, ir e vir, retornar”.
Mas a relação com o universo urbano não se reduz a uma questão de escala e localização: várias outras obras tomam a cidade, e mais especificamente a cidade latino-americana, com suas vísceras permanentemente expostas (seus cabos, seus encanamentos, seus andaimes, seus bueiros defeituosos….) como matéria prima direta e explícita, mesmo quando concebidas para o ambiente teoricamente asséptico de um museu ou uma galeria. É o que demonstrava, premonitória e peremptoriamente, o conjunto de trabalhos expostos na X Bienal de São Paulo, formado por A CARGA, PRESUNTO, A PEDRA e BARRIL (todos 1969), todos eles criados a partir de materiais brutos e apropriados na cidade (colchões, lona de caminhão, barris, palha, plástico), e que aludem diretamente à pobreza das periferias, e ainda, nesse caso, à violência do estado (o barril, especificamente, era usado com frequência como aparelho de tortura).
Mas o trabalho que ilustra de maneira mais poética e sutil a ligação umbilical, e inquestionavelmente política, do dentro e fora, do aberto e do fechado, do local protegido e do perigo das ruas, é também um dos mais simples da Carmela, a todos os efeitos um trabalho menor, mas por isso mesmo paradigmático (“o artista vale por sua trajetória”, mas a trajetória é feita também de pausas e desvios): 2 BURACOS (2012), uma intervenção na fachada da galeria Vermelho, que consiste, tautologicamente, no que o título declara: dois buracos abertos na fachada da galeria, tornando visível e quase tangível a osmose com a cidade que define todo seu trabalho. À luz dessas considerações, valerá a pena voltar a olhar para O FOTÓGRAFO do lado de fora da Kunsthalle, no meio dos carros, se possível numa noite fria e talvez brumosa, sentindo no rosto uma brisa leve, para perceber como a energia que o alimenta é, sem mais, a da própria cidade, e o trabalho em si, nas palavras da artista, “um signo urbano”.
LUZ DEL FUEGO (2012), o vídeo que acompanha O FOTÓGRAFO em sua passagem por Bratislava, foi realizado a partir de fotos de jornal de conflitos políticos, confrontos de rua e acidentes em vários lugares do mundo. Se o vídeo não está entre os recursos mais frequentemente utilizados por Carmela, esse trabalho é representativo de um modus operandi bastante recorrente na obra dela, que utiliza a justaposição de palavras, nomes ou outros elementos. De certa maneira, desde os CARIMBOS a ideia de uma repetição quase mecânica é presente no trabalho dela, mas aqui temos antes o recurso à serialidade, a construção de uma mensagem a partir da soma de todos os elementos e das mínimas variações entre eles, que levam o espectador a entender a obra em sua totalidade.
É o que acontece, por exemplo, em FIGURANTES (2015), em que placas metálicas inspiradas nas de rua apresentam “batedores de carteira, ex-presidiários, vigaristas, rufiões” e outros personagens já elencados por Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (1852), e que são, também, personagens omnipresentes nas cidades contemporâneas, figurantes de uma história que, como o próprio Marx afirma no início do texto, se repete como farsa. A presença da palavra na obra de Carmela, mais e mais recorrente a partir dos anos 2000, é indício da sua grande familiaridade com o universo da escrita, seja na sua dimensão mais imediata e efêmera (os jornais de LUZ DEL FUEGO, mas também as escritas e a fala de pichadores em US CARA FUGIU CORRENDO, 2000), seja na mais sedimentada da filosofia de Marx, ou da poesia de Machado de Assis (PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO, 1996), entre outros.
O FOTÓGRAFO não foi inspirado diretamente por nenhuma referência literária, mas anos depois de tê-lo instalado por primeira vez, Carmela descobriu um trecho do clássico de Euclides da Cunha, Os Sertões (1902), que parece descrever exatamente a posição da figura representada na peça: “O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus, -um soldado descansava. Descansava… havia três meses”. Talvez se trate apenas de uma coincidência, mas não deixa de ser fascinante pensar que, no universo de Carmela Gross, onde tudo está em constante transformação e reelaboração, e obras de hoje complementam e iluminam as de outros momentos da sua trajetória, seja possível até que a inspiração por uma obra apareça anos depois dela ter sido realizada.
Publicado em:
LAB: 2014-2017. Bratislava: Slovenské centrum vizuálnych umení, Kunsthalle Bratislava, 2017, p. 219-220.
“O mais difícil é virar o céu pelo avesso e trazê-lo azul para o lado de dentro de um labirinto transparente”.
Flávio Motta, “É o B-A-BÁ”, In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Artes Gráficas, 1977.
0.1. Riscar a página, fazer espaço
A artista tem à sua disposição dois metros quadrados de parede e uma página do catálogo de uma exposição.[1] Propõe traços para que a folha, cortada, se expanda e englobe o vazio da parede, constituindo um território. Desenho, corte, expansão, espaço instituído.
0.2 Mapas muito abrangentes
A artista concebe cartografias inteiras. Define a melhor escala de representação para que cada uma delas possa ocupar uma folha de papel. Imprime em cada folha a escala escolhida – 1:3.100.000 (31 km por cm), 1:11.000.000 (111 km por cm)….[2] Observa as folhas inteiramente brancas, senão pelas notações de grandeza. É contraintuitivo, mas os mapas já estão prontos, cada folha representa uma porção diferente de espaço vazio, um território latente a ser especulado pelo observador.
0.3. O geógrafo
Mesmo cercada por milhares de obras produzidas em um intervalo de mais de 700 anos, uma tela de 53 x 46,6 cm, terminada em 1669, recebe especial atenção dos visitantes do Städel Museum, em Frankfurt, Alemanha. O Geógrafo, de Johannes Vermeer, destaca-se pelo prestígio de seu autor, pela minúcia de sua fatura e, especialmente, por se tratar de uma diminuta, mas monumental, alegoria da modernidade ocidental.
Na cena representada, acumulam-se elementos que caracterizam o ofício do retratado: globo terrestre em cima do armário, carta náutica enquadrada na parede, papéis sobre o chão, folhas de trabalho sobre a mesa, compasso aberto na mão. Arauto do saber técnico-científico da época, o geógrafo era responsável por deitar no papel os crescentes saberes sobre um mundo em expansão e disputa, criando ferramentas para serem utilizadas nas próximas etapas da expansão colonial europeia. No instante descrito pelo pintor, o profissional suspende seu trabalho – braço esquerdo firmemente agarrado à mesa – e olha pela janela por onde entra a inconfundível luz vermeeriana.
Além das paredes do quarto, além do campo do quadro, através da representação do mapa, está o além-mar: espólio e combustível do desenvolvimento europeu. Do lado de cá da representação, ilumina-se o universo em que ascenderam simultaneamente a brigada mercantil holandesa, o pensamento de Spinoza e a pintura do próprio Vermeer. Em seu avesso, estão os odiosos custos da acumulação primitiva, marcas da exploração que não se explicitam nos mapas nem maculam a alvura da luz que recai sobre eles.
Abaixo da mão que suspende o trabalho num momento de devaneio ou epifania, o desenho que a folha guarda não é apenas testemunho de erudição, é um desenho e, como tal, é simultaneamente: registro, hipótese, descoberta, vontade, forma, linguagem e arma. O desenho é uma arma.
1. O desenho
Três séculos depois da conclusão daquela pintura, do outro lado do Atlântico, a jovem artista Carmela Gross participava pela segunda vez da Bienal Internacional de São Paulo. 1969 era também o ano em que completava sua graduação em Artes na Faculdade Armando Álvares Penteado (FAAP), segundo a proposta pedagógica que havia sido implantada pelo professor Flávio Motta em 1956, como adaptação do Curso de Formação de Professores de Desenho implantado no Museu de Arte de São Paulo (MASP)
em 1953.[3]
Esse curso, pioneiro, pensava o desenho como disciplina, técnica, instrumento de ensino e campo de pensamento. Flávio Motta foi antes de tudo um educador profundamente comprometido sobre a reflexão sobre o desenho como ferramenta social transformadora. “Desenho e Emancipação”, artigo que publicou no Correio Brasiliense em 1967, resume muitas de suas ideias formadoras que estavam vivas nos anos de graduação de Carmela Gross. Nesse artigo, Motta aproxima a etimologia de desenho e desígnio e, a partir daí, lembra que projetar é lançar-se adiante movido por uma “preocupação”, consciência de uma necessidade comum. A formulação é tão aguda que deve ser aqui reproduzida:
“Num certo sentido, ela já assinala um encaminhamento no plano da liberdade. Desde que se considere a preocupação como resultante de dimensões históricas e sociais, ela transforma o projeto em “projeto social”. Na medida em que uma sociedade realiza suas condições humanísticas de viver, então o desenho se manifesta mais preciso e dinâmico em seu significado. Vale dizer que através do desenho podemos identificar o projeto social.”[4]
Portanto, o desenho pode muito mais do que supõe o senso comum que o trata, fiel ao sentido literal da palavra anglo-saxã draw, como simples retirada da aparência do mundo, relação tátil com o visível. No contrapelo da reprodução mimética, está a potência do desenho como desejo de futuro que ativamente se abre ao desígnio estimulado pelo entendimento presente de um passado comum – inteligência projetual que catalisa necessidades e imprime intenções em meio a processos de construção complexos e coletivos.
Esse é um entendimento do desenho especialmente caro à arquitetura brasileira – o mais célebre e ambicioso exemplo que pode ser associado a esse raciocínio é o plano piloto de Brasília desenhado por Lúcio Costa em 1957 e o mais sensível talvez seja o caderno de riscos em que Vilanova Artigas projetou, simultaneamente, um novo edifício e uma nova estrutura curricular para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).[5] É também um preceito fundante para a poética de Carmela Gross e demonstrá-lo é um dos objetivos deste ensaio.
1.1 Aula de desenho
São diversos os níveis em quem se pode discutir a trajetória de Carmela Gross como uma investida no amplo sentido formador do desenho como prática artística e, mais ainda, como projeto social. O primeiro deles, o trabalho pedagógico, que iniciou já em 1966, no seu segundo ano de graduação.[6]
A artista, junto com Marcello Nitsche, Ana Cristina Rocco e Iza Ribeiro, instaurou oficinas de desenho para crianças em praça pública semanalmente durante 6 anos. Aos domingos, nos fundos da Biblioteca Mário de Andrade, na Praça Dom José Gaspar,[7] o grupo preparava mesas com tintas e papéis e recebia crianças diversas, algumas recorrentes, outras participantes de ocasião. Assim, nos anos imediatamente anteriores e subsequentes ao Ato Institucional Número Cinco (AI-5, 1968), Gross e seus colegas experimentaram uma forma de habitar o espaço público e propor a vivência cívica da liberdade expressiva do desenho – potencial gramática para a projeção coletiva de futuros comuns. Estabeleceram um front de resistência que podia existir à luz do dia, em praça pública, mas abaixo do radar da censura e repressão da ditadura civil-militar brasileira.
Os mesmos motivos que levava a polícia a ignorar o risco subversivo de um grupo de jovens de vinte anos às voltas com materiais de desenho e o alarido de crianças de diversas idades, sob a copa das árvores que os protegiam da luz das manhãs de domingo pode levar o leitor a enxergar hipérbole onde não se pretende nenhum exagero. O raciocínio é o seguinte: em um contexto de ditadura, em que a possibilidade de construção a partir das autonomias das inteligências dos sujeitos parecia cada vez mais remota, é significativo que esses jovens tenham escolhido acreditar que o desenho poderia constituir-se como ferramenta emancipadora e traduzido tal crença no engajamento contínuo e voluntário de mais de duzentos domingos para estar perto de crianças que de outra forma poderiam ter pouca ou nenhuma oportunidade de experimentar coletivamente o livre desenhar.[8] Na arte, como na política, a radicalidade muitas vezes reside na insistência no que parece improvável.
1.1.1. Tarefa de desenho
O primeiro conjunto de obras de Carmela Gross que enfrentou o desenho de modo sistemático e autorreflexivo[9] foi a série de CARTÕES FAMILIARES (1975-6), composta por 21 folhas de papel ocupadas com desenhos à lápis (grafite e de cor), definidos por hachuras repetitivas ao redor de linhas esquemáticas definidas por máscaras. O procedimento era tão metódico, tão desprovido de espontaneidade, que se conjugava em rotação inversa daquela que a artista praticava com as crianças na praça. Quase tarefa escolar de pedagogias hoje ultrapassadas, o labor mecânico levava o desenhar a um grau mínimo.
Como se a artista quisesse desaprender tudo, reduzir ao máximo o coeficiente de criatividade para então apalpar, palmo a palmo, as estruturas fundamentais do desenho, ou seja, as engrenagens que tornam esse instrumento tão potente quanto o quer a teoria humanista. Começar, então, pela emergência da forma no vazio deixado entre os traços, a capacidade projetiva que faz da indiferenciação da hachura um fundo de onde a claridade do papel emerge como forma, signo de estruturas ortogonais, encontros de coordenadas e, em seguida, cadeiras, mesas, casas – signos de reconhecimento atávico. Tentativa de flagrar o momento em que o preenchimento autômato da folha, “ruído branco” do universo gráfico, deixa emergir o traço e, com ele, certa intencionalidade, mesmo que restrita a imagens extremamente familiares.
A possibilidade de aparecimento do traço como veículo de alguma intencionalidade já era, naquele momento, uma hipótese de trabalho e, em seguida, tornou-se ferramenta fundamental no trabalho de Carmela Gross.
1.1.2. Despachante de gestos
A série que Carmela Gross desenvolveu em seguida aos CARTÕES FAMILIARES chamou-se CARIMBOS (1977-78). O conjunto multiplicou e esmiuçou uma proposta de 1967, quando a artista participou de uma iniciativa experimental de Flávio Motta no Salão de Brasília.[10] Lá, propunha-se aos artistas que desenvolvessem um carimbo do tamanho de uma folha de papel, para que os visitantes pudessem estampar uma folha e levar a reprodução da obra para casa. O contexto, muito novo e cru, evocava as ambições construtivas da nova capital, enquanto a montagem de mesas e carimbos remetia à máquina burocrática do aparato estatal totalitário instalado no país.
Carmela Gross propôs então um carimbo com a mancha deixada pelo seu próprio punho entintado e impresso. Marca de um soco, gesto intempestivo seriado para ser infinitamente reprodutível. Na série de 1977-78, o procedimento foi repetido, formando uma coleção de pinceladas, garatujas e riscos carimbados múltiplas vezes sobre folhas de papel.
Assim, com a extrapolação de um princípio burocrático, a artista sufocava o princípio de autenticidade do gesto artístico, filtrando a unicidade do risco até deixar transparecer a mínima quantidade de intensão expressiva, já muito mais próxima da capacidade analítica do que de alguma espécie de pulsão sensual por manusear materiais plásticos. Existe um arco que vai da pintura espontânea das crianças até a repetição seriada do gesto. Esse arco é também uma ponte que liga a insistência apaixonada pelo desenho com a sistematização de sua prática como ferramenta de concepção de espaços.
1.2. Uma arquitetura, mas outra
O que se quis demonstrar até aqui é que o desenho emerge, para Carmela Gross, com matizes de desejo utópico e modelos de ação contraculturais. Por isso, talvez, seu recuo autorreflexivo na linguagem não a tenha conduzido a um cerco de tautologias, mas sim a preparou para empregar o desenho como meio para desencadear complexos processos sociais de transformação do espaço.
A artista criou, à sua maneira, recursos de elaboração de formas espaciais a serem realizadas em um futuro desejável. Nesse sentido, amadureceu uma linguagem equivalente ao projeto arquitetônico tal qual este se entende desde Filippo Brunelleschi,[11] porém provido de outra sintaxe, que atende a fins, critérios e cadeias produtivas distintos daqueles da prática arquitetônica.
Um exemplo didático: décadas depois da realização dos CARTÕES FAMILIARES, a artista retomou seu procedimento com o propósito de implantar uma nova espacialidade dentro de um lugar existente. No galpão que abriga a principal área de convivência do Sesc Pompéia, a artista instalou inúmeras ripas de madeira embaralhadas sobre o chão. Elas faziam o papel de hachuras aparentemente desordenadas que, por uma relação de positivo e negativo, reforçam a presença do sinuoso espelho d’água projetado por Lina bo Bardi.[12]
Outros casos exemplares de como sua prática de desenho, sem tornar-se um recurso transparente, definiu espaços e reais e virtuais: as obras descritas nos itens 0.1. e 0.2., a pintura-objeto EXPANSIVO (1988) e EM VÃO (1999), instalação realizada na Oficina Cultural Oswald de Andrade.[13] É muito importante atentar ao que particulariza a relação da artista com a arquitetura. Para Carmela Gross, o vetor que liga signo e construção não possui um só sentido, como se supõe que seja no ofício dos arquitetos. Em sua produção, existe vai-e-vem (e simultaneidade) entre espaço concreto e linha desenhada, assim como entre representação e projeção, expressão e reprodução.
1.2.1. Uma e três escadas
Em 1965, o artista norte-americano Joseph Kosuth realizou a obra One and Three Chairs (Uma e três cadeiras), em que dispõe lado a lado uma cadeira, sua representação fotográfica e a definição de cadeira em um dicionário. Três anos depois, Carmela Gross produziu sua primeira escada, uma intervenção homônima em que pixou o perfil de uma escadaria sobre um barranco paralelo a uma avenida na periferia de São Paulo.[14] Mencionar aqui essas obras não implica uma sugestão de influência, mas sim uma aproximação de duas atitudes que provocam curto-circuito entre conceito, fato e representação. Como no título dado por Kosuth, a chave é pensar que se tratam de coisas diferentes e, ao mesmo tempo, de uma só construção mental. Como na pixação de Gross, o desconcertante é perceber que se está diante de uma situação una que guarda, na verdade, múltiplos estágios de concretude e virtualidade.
Mais comprometida com a experimentação de espaços do que com os choques entre a filosofia idealista e a fenomenologia que tanto interessam Joseph Kosuth, Carmela Gross reencontrou a escada como prisma de percepções e significados em outras ocasiões.[15] ESCADA DE EMERGÊNCIA (2012), especialmente, merece destaque por multiplicar exponencialmente os aspectos projetuais em debate neste texto. A obra é composta por tripés, estruturas metálicas, muitos fios, reatores e lâmpadas fluorescentes verdes e vermelhas. Como em outras obras da artista que utilizam tais lâmpadas, o ponto de partida é o paradoxo de um material que se manipula como se fosse o risco de um desenho, mas se percebe como brilho expansivo que desvia, por ofuscamento, da linha reta do olhar.[16] Nesse caso, ainda, o posicionamento dos tubos de luz traça no espaço duas representações perspectivadas de escadas, sendo que, na verdade, não há propriamente escada nenhuma, apenas o encadeamento de linhas em angulações e alturas previamente calculadas.
1.2.2. A Geógrafa
Desenhar com algum desígnio, projetar como quem se lança adiante. Carmela Gross teceu sua sintaxe espacial própria, mas não o fez exclusivamente pelo prazer da descoberta de linguagem. Existe uma inquietação nuclear em seu interesse pelo desenho, pela representação e pelo espaço. Seu estudo fundamental sobre o assunto desenvolveu-se no contexto de seu mestrado em Artes, realizado entre 1980 e 1981 na ECA-USP com orientação de Walter Zanini. A noção de pós-graduação de artistas era ainda muito recente no país, e Carmela Gross criou um trabalho referencial ao desenvolver uma pesquisa artística cujo núcleo fundamental é o processo artístico.
A obra/tese em questão é o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, conjunto de 33 pranchas de desenho que experimentam e combinam uma gama de modelos de representação e projeção construtiva da abóboda celeste. Em sua dissertação, Carmela Gross enfatiza seu interesse em estar entre dois pólos: “O desenho se individualiza pelo gesto; desdobra-se na concepção das estruturas construtivas e em notações específicas, como aquelas que se encontram nos mapas”. De fato, ela experimentou, com uma mistura de obstinação e objetividade, a tarefa de representar as nuvens do céu, sua amplitude atmosférica – sem interesse em adentrar os efeitos e debates pictóricos impressionistas, mas sim de manter-se no campo das representações gráficas e técnicas. Desenvolveu um trabalho que combina traços rápidos e sequenciais de grafite e lápis de cor, sem nunca vedar totalmente o papel. Imagem verossimilhante, embora desvestida de imitação virtuosista.
Expandiu esse gesto por toda a superfície do papel e sobrepôs a ele uma grade ortogonal regular, um sistema de coordenadas que mapeia a maior parte da folha. Trata-se de uma assimilação da lógica geométrica fundamental para a imposição da racionalidade técnica sobre a volatilidade da natureza – a matriz ortogonal que funda a pintura e a arquitetura do Renascimento e emerge nas vanguardas modernistas como signo de indústria, razão e esclarecimento.
Na extremidade esquerda de cada desenho, incluiu à nanquim um dos 33 trechos do mapa celeste do Hemisfério Sul, como uma espécie de índice de localização das imagens que se suporiam instantâneos arbitrários do céu. Na extremidade direita, um carimbo que resume as propriedades do desenho – título, autoria, data e número da folha – à maneira do que se faz em projetos de arquitetura e engenharia. Por fim, na borda inferior, uma grade ortogonal com eixo vertical reduzido organiza uma espécie de tradução técnica-construtiva das bordas das vaporosas nuvens representadas a lápis.
O conjunto formado por todas as pranchas agrupadas em 11 colunas enfatiza os dois princípios motores da obra. De longe, vê-se um painel de fragmentos de céu que efetivamente engaja o olhar do espectador em uma deambulação paisagística acentuada. De perto, o acúmulo de códigos associados às mais variadas ciências aplicadas – astronomia, engenharia, arquitetura, topologia, cartografia – desnaturaliza a percepção e enfatiza a artificialidade daquelas representações. O título da pesquisa e da obra, expresso no próprio corpo do trabalho, desembaraça esse paradoxo e o conduz para outra polaridade: ao designar os desenhos como projetos construtivos, Carmela Gross sugere uma tarefa impossível, em que cada índice de tecnicidade é, na verdade, instrumento do absurdo.
É significativa a emergência do absurdo no interior da aparente vontade construtiva, especialmente em um país tão apaixonado pela promessa de construção de futuro, tão dependente de ciclos de euforia coletiva e em que a maior promessa de utopia progressista – a construção de Brasília – havia sido capturada para, ainda em chave desenvolvimentista, ser transformada em seu avesso ideológico.
O céu de Carmela Gross, na verdade, não pode ser nem capturado pelo desenho de observação, nem premeditado pelo desenho técnico. Ele existe enquanto experiência concreta que a artista persegue, sabendo que prepara seu deliberado fracasso.
O geógrafo de Vermeer aglutina signos de elevação intelectual e poder. Banhado pela luz leitos de Delft, contempla a extensão do domínio de sua arma, o desenho que auxilia a expansão dos impérios. Carmela Gross, a geógrafa, não trabalha banhada por tão macia luminosidade.[17] Para ela, o território em que se dá o conflito, o domínio e a conquista não se encontra do outro lado do oceano, mas logo ao lado, em cada esquina da metrópole paulistana. Ela emprega as ferramentas do conquistador, mas as deixa girar em falso, operar na fugacidade das nuvens. Entende a potência (disruptiva) e o poder (autoritário) que podem ser conclamados pelo desenho e, por compreender o real como um território de conflito, engendra paradoxos que conclamam os espectadores a desconfiarem dos códigos e projetos que lhes são apresentados.
2. Fome
No lobby de um luxuoso hotel paulistano, a artista fez ampliar, transpostas para pastilhas amarelas e brancas, as linhas do desenho de Hans Staden que retrata seu encontro com os antropófagos índios Tupinambá.[18]
2.1. Buraco
Durante uma reunião, a artista tinha diante de si uma folha de papel com uma malha ortogonal desenhada com auxílio de uma régua, mas sem excesso de zelo, o que dá à trama razoável regularidade. As linhas e colunas estão numeradas. Com uma caneta esferográfica, rabiscou, rapidamente, 48 manchas diversas. Estava feito seu projeto executivo de uma instalação de aproximadamente 325 m2. Cada mancha rabiscada foi ampliada e tratada como traçado fielmente reproduzido na criação de um buraco em uma laje, 100 vezes maior do que o risco original.[19]
2.2. Definir o que não tem definição
Após concluir seu PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, Carmela Gross suspendeu provisoriamente o recurso ao desenho manual e, em 1983, criou uma série inteiramente baseada em processos (desviados) de reprodução técnica de imagens. Seu ponto de partida foram ilustrações retiradas de catálogos de venda, almanaques variados e enciclopédias.[20] A gama de figuras escolhidas pela artista foi ampla, incluindo foguetes, chapéus, pentes, ferramentas de trabalho, halteres de exercício… o significado específico de cada objeto importava pouco, o que lhe interessava era a intuição de um vulto que poderia emergir de seus contornos.
Para produzir tais vultos, ela ampliava por fotocópia cada uma das figuras, obtendo imagens com maior contraste e menos nitidez; descartava algumas tentativas e fotografava as eleitas para a próxima etapa; ampliava, então, os negativos, experimentando intensos desfoques no ampliador;[21] assim, encontrava uma sombra da imagem original. Escolheu 11 deles e os gravou por impressão off-set em folhas de papel de 1 metro por 70 centímetros.
Essa tecnologia de impressão conjugou-se com o desfoque dos vultos para produzir imagens de vibração inquietante, que tornam difícil para o espectador desviar o olhar, muito embora seja virtualmente impossível adivinhar a origem das imagens ou seus significados. Carmela Gross nomeou-os como QUASARES, os maiores emissores de energia do universo, maiores do que estrelas e menores do que galáxias, cuja definição ainda estava em disputa naquele momento.[22]
Parece pertinente que esse potente e misterioso fato cósmico tenha emprestado seu nome como introdução às estranhas figuras laboriosamente construídas pela artista. Esse acerto, porém, não deve evitar que se faça uma pergunta: O que é que efetivamente torna essas imagens tão magnéticas? Não pode ser a simples ausência de referencialidade, afinal são muitas as manchas e borrões ocasionais que não possuem qualquer significação evidente e nem por isso atraem o olhar por mais de um instante. Uma hipótese é que a centralidade das sombras nos papéis, sua tendência (nunca completa) à simetria e a alta definição de sua impressão fazem com que a figura, por mais indefinida que seja, identifique-se como algo construído, produzido com propósito: desenhado.
2.2.1. A má revisora
Em A História do cerco de Lisboa (1989), José Saramago narra a vida de um revisor de textos lisboeta relutantemente engajado na revisão das provas do livro que dá título ao romance (cujos fragmentos aparecem em capítulos intercalados com a narrativa contemporânea). Em certo momento, o revisor comete o maior dos pecados de sua profissão: insere uma palavra, uma só palavra (um “não”), em uma parte central da narrativa e, com isso, abre espaço para que a história de sua cidade tenha sido completamente outra, num acumulo de desvios e reinvenções.
Em QUASARES, Carmela Gross age como a má revisora, que nesse caso trai o princípio da reprodutibilidade de diversos dispositivos técnicos consecutivamente. Ela fabrica erro, desenha desvio e, assim, cria algo novo que é percebido como construção, mas que não se pode ler.
Esse é um aspecto da poética da artista que por vezes se esconde por trás da clareza com que ela escreve e se comunica. Não há confusão em sua fala, mas isso não quer dizer que seus processos evitem criar zonas de sombras e hiatos de sentido.[23]
2.2.2. OBJETOS BESTAS, TREM, LARVAS e FACAS
De fato, a mesma natureza “indeterminável” que foi alcançada por transladações imagéticas sucessivas nos QUASARES foi depois perseguida intensamente por outras vias. Para essa hipótese, a PINTURA-OBJETO (1988) deve ser lida como um elo de transição. Trata-se também de um esquema imagético apropriado de uma figura preexistente (nesse caso, alguma vista superior de armas de guerra), que a artista deliberadamente corrói e reconfigura como desenho sobre matéria. O encontro desse desenho vago com a madeira pintada se traduz no corte de dezenas de peças que reestabelecem uma forma se posicionadas com os espaçamentos corretos sobre a parede.[24]
Logo a seguir, entre 1989 e 1994, Carmela Gross investigou, por meio de diversas materialidades e processos, modos de conceber e alcançar formas indetermináveis. Essas investigações incluem, entre outros conjuntos: OBJETOS BESTAS (1989), TREM (1990), 300 LARVAS (1994), BURACOS (1994) e FACAS (1994).
É interessante notar os múltiplos recursos que ela emprega para manter sua capacidade de dissociação de si mesma em cada processo de desenho, algo fundamental para os resultados obtidos. Em OBJETOS BESTAS e TREM, usa a arbitrariedade do título como uma blindagem contra a legibilidade das silhuetas das obras. Em BURACOS, citado no item 2.0.2., eleva abruptamente um croqui à condição de projeto executivo para evitar excesso de elaboração. Em FACAS, troca o gesto de manuseio das argilas toda vez que percebe que está dominou aquele procedimento.
2.3. Articulação
Apesar das ênfases construídas na tessitura deste ensaio, não se deve supor que a vinculação ética e estética do desenho de Carmela Gross com o entendimento do projeto como consolidação de uma intencionalidade forte esteja totalmente blindada da descoberta maliciosa de materialidades de legibilidade relutante. Na verdade, o desenho, para essa artista, possui o caráter de dobradiça entre esses dois polos. Seu desenho conjuga construção e indeterminação.
US CARA FUGIU CORRENDO (2001) e HOTEL (2002), por exemplo, são duas obras que combinam elementos luminosos para estabelecer escritas em espaços específicos. Em ambas, o desenho é fundamental para conduzir o processo que leva da enunciação até uma grafia específica. Em HOTEL, todas as decisões (a escala, a forma retilínea, a composição com materiais industriais standard) foram tomadas visando reiterar a clareza do signo, inclusive tornando-o mais eficaz como letreiro posicionado sobre o edifício da Fundação Bienal de São Paulo e perceptível desde o tecido urbano e a malha viária circundante. Já em US CARA FUGIU CORRENDO, o desenho atuou como retardador da leitura, como corte e alongamento dos traços, diluição e desvio da grafia explícita (embora incorreta) da sentença traduzida para o neon.
2.4. Última pintura
A última pintura de sobre tela feita por Marcel Duchamp data de 1918 e chama-se Tu m‘. Trata-se de uma obra intrincada, composta pelo encavalamento de quase uma dezena de sistemas de representação. A experiência é vertiginosa, inclusive porque a obra foi pensada para estar no batente de uma porta, para ser vista de baixo para cima. Mimese, colagem, abstração, diagrama, projeção cartográfica, decalque de sombras, perspectiva linear, perspectiva cônica, indicialidade, descrição de trajetória, composição abstrata, iconografia e assemblage formam uma charada pictórica que muitos pesquisadores concordam em tratar como uma espécie de súmula do repertório visual que Duchamp construiu em seu primeiro ciclo de criação artística e desdobrou em seus ambiciosos projetos subsequentes.
![imagem 14_Marcel Duchamp](https://carmelagross.files.wordpress.com/2019/05/imagem-14_marcel-duchamp.jpg)
Alguns intérpretes vão mais longe e especulam que a pintura é uma resposta radical – que vai muito além das aplicações simplificadas dos manuais de desenho – das reflexões sobre o espaço apresentadas pelo matemático e filósofo Henri Poincaré em seus tratados de perspectiva:
“O espaço, considerado independentemente de nossos instrumentos de medida, não tem, portanto, nem propriedade métrica, nem propriedade projetiva, tem apenas propriedades topológicas (…) ele é amorfo, o que significa que ele não difere daquele que se obteria por uma deformação contínua qualquer. De que forma a intervenção de nossos instrumentos de medida, em particular dos corpos sólidos, dá ao espírito a chance de determinar e organizar mais completamente esse espaço amorfo; como ela permite à geometria projetiva traçar uma rede de linhas retas, à geometria métrica a medir as distâncias entre pontos…”[25]
Duchamp tratava o espaço como fenômeno mais complexo do que previa a geometria euclidiana, sendo pioneiro na consideração enfática do papel da memória, do raciocínio e do desejo no processo de percepção (e representação) de um espaço que, se não existissem esses dispositivos, permaneceria entregue a seu caráter amorfo.
2.4.1. Tratado pictórico prático
Para Carmela Gross, o importante não é falar em termos de uma última pintura, mas sim de uma pintura última, quer dizer, de uma obra síntese de sua relação com o espaço pictórico. Nesse sentido, pode-se apontar sua instalação realizada na XX Bienal de São Paulo em 1989. Trata-se de um ambiente definido por 4 paredes expográficas de madeira.
Em duas delas, opostas, estão grandes murais que confrontam o vigor do gesto gráfico expandido com a resistência dos materiais: grafite rabiscado sobre a parede com intensidade dentro de limites definidos por moldes cortados em papel kraft, posteriormente coberto por una fina manta plástica translúcida de tom rosado; graxa aplicada manualmente sobre papel metálico prata colado na parede, evocando duas das formas delineadas no outro painel.
![imagem 15B_C27.04.jpg](https://carmelagross.files.wordpress.com/2019/05/imagem-15b_c27.04.jpg)
Imensos, os painéis abraçam o corpo do visitante e promovem um complexo jogo de similitudes e inversões. Entre eles, de um lado, está uma pintura-objeto feita de quatro peças de latão recortado, linhas que quase convergem para um centro comum em suas inclinações assimétricas. Do outro, está um objeto composto de dezenas de discos de mica vagamente arredondados e que, atravessados por uma barra horizontal, criam uma saliência no espaço. Lança e alvo, respectivamente.
O conjunto inteiro um tratado prático sobre o espaço pictórico pós-Duchamp. Improviso, resistência, premeditação e fenomenologia se embaralham em uma cena imersiva. Fisicalidade do raciocínio plástico ou, ao contrário, equação de regimes de visualidade.
2.5. A espeleolóloga
As gerações de artistas brasileiros que cresceram nas décadas de 1960 e 1970, quando a maior parte da população passava a estar concentrada nos espaços urbanos, apresenta marcas do convívio com as transformações paisagísticas e ambientais em curso. Cercados por estímulos imagéticos crescentes, cada vez mais dominantes na paisagem urbana, esses artistas muitas vezes manifestam algum mecanismo de defesa, assimilação ou reação ao apelo desbragado dos signos pré-fabricados da propaganda de massa e da arquitetura das grandes empreiteiras.
Nesse sentido, é consagrada a interpretação crítica feita sobre os artistas da Nova Figuração, cuja obra é comumente lida como apropriação paródica da nova imagem vernácula das metrópoles, seja em seus centros ou periferias. Os primeiros trabalhos de Carmela Gross podem ser aproximados dessa atitude.[26] Noutro momento, é possível interpretar as atitudes plásticas da Geração 80 como reação à visualidade das cidades do capitalismo neoliberal, nesse caso, porém, o que se nota é a ansiedade em produzir imagens tão gritantes quanto aquelas circundantes – um cabo de guerra pela atenção hiper-excitada do espectador. Em comparação a essa atitude, Carmela Gross opta por caminhos menos histriônicos e mais camaleônicos, como se percebe por suas obras concebidas como luminosos voltados para a cidade.[27]
A resposta mais radical da artista aos estímulos do espaço urbano, com a qual se conclui este ensaio, é a obra A NEGRA (1997).[28] Feita em tule negro armado por uma estrutura de metal sobre rodas, a obra resume a dupla agência do desenho como ferramenta de planejamento construtivo e criador de indeterminação.
Com seus 3,30 metros de altura, a peça foi concebida como escultura urbana móvel apta a circular pelo canteiro central da Avenida Paulista. A geometria da estrutura conforma um espaço oco, recoberto por grande quantidade de tecido para configurar uma silhueta indistinta e irredutível.
![imagem 16A_A NEGRA_projeto_07](https://carmelagross.files.wordpress.com/2019/05/imagem-16a_a-negra_projeto_07-1.jpg)
No meio dos arranha-céus, automóveis, pedestres, sinalizações e propagandas da avenida mais célebre da maior metrópole do país, A NEGRA não almeja ser mais um signo comunicante desejoso de atenção. Ela é um vazio, um ponto cego móvel na paisagem.
Em certo nível, pode ser percebida como uma alegoria que responde à famosa pintura homônima de Tarsila do Amaral, atualizando a caracterização da alteridade autóctone brasileira ao substituir o exótico corpo de origem africana pelo massivo volume de corpos invisíveis, Macabéas de muitas origens e feições.
Noutro nível, é uma lacuna espacial premeditada. Para utilizar o vocabulário da artista, ela é um quasar urbano.
No cruzamento, penso A NEGRA como uma alegoria da parcela da cidade que não se deixa apreender pelas estatísticas, pelos dispositivos de vigilância, pelas pesquisas de opinião, pelos perfis demográficos. É uma caverna onde cabe aquilo que os aparatos do poder não fazem questão de ver, mas que pode abruptamente surpreendê-los. Houve situações em Junho de 2013 em que parecia que A Negra estava nas ruas. Logo a sensação passou. Vieram outras cores, identificadas com a banal disputa entre torcidas.
Mas a negra pode voltar.
Espeleóloga é aquela que estuda formação das cavernas e grutas escuras.
*
A artista é convidada para realizar uma intervenção permanente em um novo equipamento cultural no centro de São Paulo, o Sesc 24 de Maio. Trata-se de um projeto que só foi possível pela convergência de dois grandes arcos de pensamento civilizatório[29]: a ambição técnico-social da arquitetura paulista maturada por Paulo Mendes da Rocha e o projeto humanista da rede Sesc financeiramente impulsionado pelos anos de crescimento econômico nacional, agora interrompidos.
Nesse local, Carmela Gross resolve instalar, ao redor de uma monumental caixa d´água que ladeia a principal passagem ao nível da rua, um neon rosa que, com uma grafia amolecida, escreve: “O Grande Hotel”.[30]
É um convite. É uma ironia. É um desafio.
Flávio Motta lembrava que “através do desenho podemos identificar o projeto social”. Carmela Gross devolve a formulação ao presente como quem afirma que através do projeto social poderemos significar o desenho.
*
[1] Exposição “Dois Metros e Uma Página”, Cooperativa de Artistas Plásticos de São Paulo, 1980.
[2] Trabalho apresentado na 2ª Edição de Gerox na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 1980.
[3] Para breve histórico do curso, ver BRAGA COSTA, Juliana. ”Ver não é só ver. Dois estudos a partir de Flávio Motta”. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.
[4] Flávio Motta, também professor da FAU-USP entre 1952 e 1983 e participante engajado em suas reformulações de ensino da década de 1960 é um dos responsáveis pela presença de tais noções no ideário dos arquitetos paulistas formados no período pós-guerras.
[5] A proximidade de Carmela Gross com a arquitetura – no sentido mais forte e humanista que essa palavra possa ter – reflete-se em sua proximidade com arquitetos: da já mencionada formação com Flávio Motta à amizade longeva com Paulo Mendes da Rocha, passando por seu envolvimento no projeto do Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Osaka (1968-70, em equipe coordenada por Mendes da Rocha, com Motta, Ruy Ohtake, Júlio Katinsky, Abrahão Sanovicz, Jorge Caron e Marcello Nitsche) e pela trajetória profissional de seus filhos Lua e Pedro Nitsche, hoje jovens arquitetos.
[6] Adiante, em 1972, Carmela Gross foi contratada como professora de Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Sua prática como professora universitária, portanto, seguiu paralela à uma enorme parcela de sua trajetória como artista. Um relato cativante desse papel de Carmela Gross encontra-se no artigo “Desenho, desenhos: a título de prólogo”, de Carla Zaccagnini (In: “Carmela Gross: Um corpo de ideias”. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010.)
[7] As primeiras tentativas foram na Praça da República, mas logo as oficinas passaram à Dom José Gaspar, onde se instalaram definitivamente.
[8] O ensino de artes nas escolas existiu apenas tentativamente até as décadas de 1950 e 1960, quando experimentos continuados começavam a amadurecer na instância ainda pontual das Escolinhas de Arte do Brasil e das Escolas Experimentais. Em 1964, com o Golpe Militar, as turmas experimentais foram fechadas e a situação regrediu. Em 1971, com a Lei de Diretrizes e Bases 5692, o ensino de artes nas escolas tornou-se obrigatório pela primeira vez. A experiência da Praça Dom José Gaspar abraça justamente o período em que parecia impossível qualquer avanço na estrutura pedagógica das escolas em favor da experimentação artística. Ver: BARBOSA, Ana Mae. “Arte Educação no Brasil: do modernismo ao pós‐modernismo”. Revista Digital Art&, out. 2003. Disponível em: <www.revista.art.br/site‐numero‐00/anamae.htm>
[9] O reconhecimento desses trabalhos como pesquisa autorreflexiva aparece na leitura que Ana Maria Belluzo faz da produção da artista em “Carmela Gross”. São Paulo: Cosac Naify, 2000. Convém destacar também que esse é o período em que Carmela Gross esteve mais próxima de Regina Silveira e Júlio Plaza, referências no debate da especificidade dos novos meios e na metalinguagem teórico-prática sobre dispositivos linguísticos.
[10] Na 4ª edição do Salão de Arte Moderna do Distrito Federal.
[11] No começo do século XVI, em Florença, o projeto da cúpula da catedral de Santa Maria del Fiore tornou-se célebre não apenas pela grandiosidade da obra final, mas pelo uso da perspectiva por Filippo Brunelleschi como ferramenta que lhe permitiu antecipar inúmeros detalhes do projeto de uma estrutura complexa. Esse momento é tratado por alguns como a virada de afirmação da arquitetura como arte maior no contexto do Renascimento, já que tornou o projeto, coisa mental, soberana sobre a artesania do canteiro de obras.
[12] Instalação Sem título na mostra Gente de Fibra, 1990. Esse procedimento que combina hachura, preenchimento e forma aparece diversas outras vezes na obra da artista, inclusive como modo de conectar escrita e espaço, como em Aurora (2003) e Sul (2006).
[13] O processo que liga desenho e espaço no desenvolvimento dessa instalação foi registrado com clareza no vídeo sobre Carmela Gross produzido por Luiz Duva no ano 2000, para a exposição Investigações: O trabalho do artista, no Itaú Cultural, São Paulo.
[14] Fortuitamente, essa intervenção foi escolhida como ponto de partida da exposição individual da artista “Arte a mão amada”, realizada em 2016 na Chácara Lane com curadoria de Douglas de Freitas.
[15] Suas escadas mais monumentais, sobre a qual não convém alongar-se aqui, são aquelas das instalações Escadas, realizadas no Sesc Belenzinho e na Casa França-Brasil, ambas em 2012.
[16] A obra de Carmela Gross que concentra uma espécie de tratado poético sobre o uso escultórico, espacial e gráfico da luz é seu Comedor de Luz (1999).
[17] Na verdade, segundo relatos da artista, quando suspendia o lápis ou a caneta nanquim no ar, o mais provável é que a interrupção viesse do choro de um de seus filhos pequenos durante uma madrugada mal dormida.
[18] Desenhos publicados originalmente no livro Wahrhaftige Historia (História Real, 1557). O painel de Carmela Gross, de 4 metros de altura e 17 metros de comprimento, foi instalado com pastilhas Vidrotil no Hotel Renaissance em 1997.
[19] Buracos (1994), Arte/Cidade I, Antigo Matadouro Municipal, São Paulo.
[20] Tratam-se de arcabouços de figuras que catalogam de modo voraz os objetos e signos do mundo vigente; antecedentes, portanto, do imenso banco de dados acumulado na rede global da internet.
[21] Trata-se de processo fotográfico analógico, evidentemente, em que o ampliador projeta a imagem do negativo sobre o papel fotográfico. A praxe é ajustar perfeitamente o foco da lente do ampliador, mas nada impede que alguém, deliberadamente, desfoque a ampliação ao manipular esse aparelho. Hoje, todas as operações feitas pela artista com uso de variado maquinário poderiam ser repetidas em minutos com o auxílio de um software digital de processamento de imagens – algo se ganharia e algo se perderia.
[22] Hoje, há consenso científico de que os quasares são buracos negros supermassivos cercados por um disco de acreação de gases.
[23] Em termos ideológicos, existe a tentação de mencionar aqui o conceito de Informe tal qual enunciado por Georges Bataille, posto que ele concebia o informe como refutação das divisões hierárquicas de formas e conceitos pela racionalidade ocidental, e esta negatividade é um dos sentidos atribuíveis ao “indefinível” na obra de Carmela Gross. Esteticamente, porém, a familiaridade da artista com o desenho e o projeto torna a aproximação exagerada: sua produção tem forma, mesmo quando esta se prova indefinível.
[24] Simultaneamente, a artista produziu Arco (1988), que faz o caminho contrário: pedras de formato aleatório são colhidas, pintadas e tornam-se uma forma forte pelo arranjo quase geométrico na parede. Existe um efeito de dobradiça nas estratégias de desenho de Carmela Gross que será discutido adiante.
[25] POINCARÉ, Henri. “Derniers pensées”. Paris: Flamarion, 1913, pp. 59-60. Apud. MOLDERINGS, Herbert. “Tu m´. La peinture face à l´espace amorphe.
[26] Objetos como as Nuvens (1967) e pinturas como Montanha (1970).
[27] Eu sou Dolores (2000), Hotel (2002), Aurora (2003), Luzia (2003), Real People/ Are Dangerous (2008) e Iuminuras (2010).
[28] Obra comissionada pelo projeto Diversidade da Escultura Brasileira Contemporânea, Itaú Cultural, 1997.
[29] No momento em que se escreve este texto, a abertura desse edifício desponta como único movimento significativo no sentido de praticar o espaço urbano do centro da cidade como bem público; os tempos são de barbárie e exclusão ostensiva.
[30] Enquanto desenho, a proposta parece uma espécie de prole nascida do encontro entre Hotel e Us Cara Fugiu Correndo, ambas discutidas no item 2.3.1. deste ensaio.
Publicado em:
FREITAS, Douglas de (org.). Carmela Gross. Rio de Janeiro : Cobogó, 2017.
O texto a seguir transcreve uma conversa minha com a artista, realizada em junho de 2017. A conversa, nascida de um roteiro prévio, girou em torno de algumas ideias decisivas do trabalho – a função do desenho e a relação com a cidade, por exemplo –, além de comentários sobre algumas obras e situações específicas.
O diálogo reverbera muitas outras conversas e memórias de outros encontros, ocorridos durante quase um ano de trabalho e convivência.
Concluímos que o jogo estrito, e às vezes mecânico, de perguntas e respostas, de fato, soaria limitado ante o diálogo aberto, e em diferentes tempos, que construímos. Por isso, optamos pelo recurso dramático de deixar as perguntas fora da cena – ressaltando a voz da artista e seus andamentos, ainda que de modo fragmentário. A descontinuidade nos pareceu mais condizente com os processos de trabalho da artista.
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Se você reparar bem, me parece que os trabalhos às vezes nem se juntam, não se grudam, um contradiz o outro. Depois que eu fiz o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, em seguida eu quis fazer os QUASARES. Chamei de QUASARES um conjunto de gravuras em offset, e o nome fazia referência a fenômenos celestes. Note que essas gravuras têm uma visualidade completamente invertida em relação ao PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU – são manchas pretas sobre um campo branco, um negativo do outro. É como se eu tentasse anular um pelo outro, e não reforçar. A intenção era, deliberadamente, desfazer o encantamento de um céu feito com lápis de cor. QUASARES são reproduções fotomecânicas, sem intervenção manual, e assim contradiz tudo que estava afirmado no PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU. Os trabalhos são ferramentas e engrenagens para a constituição daquilo que se quer como pensamento, ação crítica, atividade sensível no mundo.
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O mundo real aparece como motor e operador de uma situação, mas o resultado disso é de outra ordem. Acho que isso vale para qualquer obra de arte. Damien Hirst com a caveira de diamantes. Picasso e a guerra. Picasso, por exemplo, parte da reportagem sobre a tragédia de Guernica. Desenha a partir da notícia, diretamente… e depois resolve a escala, o desenho, os fragmentos, as pinceladas. Tudo isso é a reconstrução de Guernica no plano da consciência humana. Ele não reproduz o acontecimento, ele transmuta o acontecimento em seu negativo, como consciência histórica.
É por isso que o BARRIL, por exemplo, é uma metáfora reduzida ao mínimo. Quase uma não metáfora, porque traz à cena o próprio objeto de tortura, usado no DOI-CODI. O trabalho não está ali como objeto de tortura. Sua exibição convoca as potências sensíveis e o pensamento do observador. O trabalho propõe a reflexão sobre um momento histórico. Se não fosse assim, não valeria de nada.
Podemos pensar numa operação de condensação, que transmuta os elementos do real para uma condição que se pretende mais aguda… poder falar para mais gente… revelar um processo, amplificar o som daquele objeto. A operação parte do mundo real, mas desmancha o mundo, para armá-lo noutro plano. É como desmontar um brinquedo para ver o que tem dentro e, ao remontá-lo, inventar um outro. E como não há o domínio dessa máquina/mundo, o trabalho é feito por aproximações. Vai buscando sentidos possíveis, alguns significados, arranhando o mundo.
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Os trabalhos não se reiteram um no outro. Por isso, o processo traz fissuras, fraturas, negações, se desenvolve como fragmentação. Se desenvolve em pedaços, em partes. Sei lá, já são explosões.
Não acho que isso possa ser visto como um ataque, mas é uma operação negativa, são operações que criticam, descristalizam esses processos. É para que o próprio trabalho possa brotar de um outro modo. Se é para desestratificar, desmontar o sabido e o estabelecido no mundo, eu também tenho que olhar meu próprio trabalho por essa mesma chave. Não é só fazer trabalhos e continuar fazendo e fazendo…, mas é olhar para trás e ver como foi feito e pensar em como fazer aquilo ser operativo de novo, virar um outro…
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A cidade é o material que perpassa e atravessa o meu trabalho. É o seu material e também sua razão crítica. Por que trabalhar com lâmpadas fluorescentes ou com o neon, por exemplo? A luz da padaria, a luz do bar, do hotel barato, a luz colorida que tinge de azul uma esquina à noite. Isso interessa. Notar como essas luzes vermelhas, rosas, amarelas, multiplicadas de muitas maneiras nas frestas da cidade, vêm junto com as condições mais degradadas da vida na cidade. É, quase sempre, o mais frágil que aparece associado a elas. É muitas vezes o perigoso, o perverso… por isso as luzes coloridas encantam, como síntese da multiplicidade das experiências humanas.
Bem longe da luz-design, da luz-chique do lobby de hotel, da luz-moda da vitrine, percebe? São parâmetros de luz muito diferentes. Essa luz do neon, essa luz fluorescente tubular, ela vem de ambientes muito simples, as vezes precários, degradados. É disso que estou falando, é isso que me interessa na luz.
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As pessoas são parte do teatro urbano. A cidade é um canteiro de obras. Cada sujeito que trabalha sabe as operações que tem que fazer. O material bruto vira construção e constituição desse corpo social. Assim, também, a minha produção vai se constituindo desses elementos, desde os mais simples, os mais banais da nossa vida na cidade e também… dos imigrantes, passantes, figurantes, das Dolores, Darlenes, Olivias e Auroras… O meu trabalho é mais um entre tantos outros trabalhos.
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Quando uma obra é feita de materiais “catados” na rua, há uma aproximação com o outro, surge a familiaridade ou a intimidade… No caso da luz, acho que a pessoa vai muito mais sentir do que entender, vai perceber fisicamente. Não é da ordem do inteligível, da lógica, do saber. A luz atrai, mas não é só a sensação luminosa que me interessa… Depois vem uma legibilidade…
É claro que isso não acontece em todos os trabalhos. Alguns são silenciosos. Alguns são mais voltados para dentro, como, por exemplo, os BURACOS, afundados no chão escavado. E os COMPACTOS… nesses, há um inchaço da matéria, uma massa cromática em fermentação, trabalhando do lado de dentro… Por isso, talvez, eles sejam dificilmente acessíveis pelo discurso, pelo texto… Talvez sejam mais próximos dos QUASARES…
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No caso da NEGRA, aquela massa esponjosa preta está apoiada em um carrinho, uma pequena plataforma com rodas e uma haste metálica que serve de puxador, para deslocá-la de um lugar para outro. Entre outras questões (mas não vamos falar delas agora), há o carrinho… É impressionante que as pessoas não percebam aquilo como um carrinho. E aquele carro é uma espécie de citação do carrinho manual do entregador de mercadorias, do vendedor ambulante, do catador de papel. É uma alusão a um tipo de trabalho de rua, desqualificado, ou melhor, é a própria face do trabalho precarizado. Ninguém fala disso, desse carrinho manual acoplado à NEGRA, porque não interessa ao discurso formal estetizante. Só falam do grande véu, do grande conjunto de sobreposições de matéria fluida, de um negativo da noiva, da viúva… É impressionante… Se aquele trabalho estivesse apoiado diretamente no chão, ele perderia grande parte da sua potência…
Esse trabalho foi feito para a rua, mas mesmo agora, no museu, a haste e a manopla estão presentes. Elas apontam para o carrinho, para a máquina. E, mesmo se noutra escala, há ainda um resíduo de carro alegórico, extraordinário monumento sobre rodas, nos desfiles das escolas de samba – um maquinário social, um trabalho coletivo, simples e complexo ao mesmo tempo.
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Quando eu fiz a primeira ESCADA (a de 1967) aquilo era quase um jogo. A escada estava lá. Eu só consegui subir por aquele barranco íngreme porque havia sulcos na terra, feitos possivelmente por uma máquina moto-niveladora, que passou por ali para abrir a avenida. E o barranco ficou, então, recortado com “degraus”. Já estava dado – era fazer sobre uma coisa, ela mesma, só que do ponto de vista conceitual. Era simples, sem qualquer outra problemática, além de desenhar com linhas uma escada sobre a outra escada. Uma reverberava na outra: escada-percepção e escada-ação. A primeira foi experimentada por mim como escada real, o que obviamente não era, e a segunda, a desenhada, foi feita para confirmar a primeira. O que fiz foi só uma operação bem humorada sobre o conceito de desenho. Percepção e criação.
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A maior parte dos meus trabalhos surge primeiro como projeto desenhado. Depois eles são construídos em outra materialidade, outra consistência. Poucos trabalhos vêm de uma experimentação, em que a obra se constitui diretamente no fazer, como as FACAS. Mas, mesmo neste caso, tinha um conceito que presidia as operações do fazer – uma faca-ideia.
Às vezes, o projeto é um molde. Por exemplo, na instalação da XX Bienal,[1] tinha um molde. Fiz um grande desenho, primeiro, num papel Kraft. Depois, recortei e colei. Fui decalcando as linhas do contorno direto sobre a parede. Os BURACOS também foram feitos a partir de moldes. O ponto de partida era um desenho pequeno, uma anotação. Depois, esse desenho foi ampliado e transferido para o chão, com moldes específicos para cada buraco. É como são feitos os grandes afrescos. Acho que os carros alegóricos também. Algo próximo do corte e costura…
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Nem é monumental, é uma praça, é uma coisa urbana. Pode-se passar por cima dele, caminhar sobre ele. E todo o espaço passa a ser uma experiência corporal. ESCADA-ESCOLA também não é monumental. Ela convoca o corpo a participar daquele desenho. Ao contrário do que acontece com as escadas de luz que, mesmo sendo em grande escala, são visuais, são quase uma escritura, uma grafia luminosa.
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A palavra, o falar da rua, um certo nome, um poema… um enunciado… foram todos entrando no trabalho, mas de modos muito diferentes. VIA LÁCTEA, que transcreve o poema homônimo de Olavo Bilac, é composto como um jogo de caça-palavras, com letras brancas sobre um céu estrelado de Xerox. US CARA FUGIU CORRENDO é uma pichação da rua, reproduzida em neon na parede do museu. É a língua sem erudição e, como disse o poeta, com “a contribuição milionária de todos os erros”. EU SOU DOLORES vem de um lambe-lambe colado em um poste do Largo do Pari. AURORA foi enunciado em garranchos toscos de lâmpadas rosas. Foi associado, primeiro, no Rio, como a luz rosácea do nascer do dia. Depois, aqui em São Paulo, perto da rua Aurora, como nome de mulher. E em Moscou, como o nome do navio de guerra, que se juntou ao processo revolucionário. SE VENDE, com as letras de Hollywood, foi quase interditado em 2010.
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De fato, na Nova Zelândia, só foi possível fazer metade do trabalho numa passarela, aquela em que se lia REAL PEOPLE. A outra metade, ARE DANGEROUS, não pôde ser realizada. Deveria ter sido construída noutra passarela, mas a oficialidade local considerou DANGEROUS, de fato, perigoso. O trabalho foi amputado…
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Pra mim, palavra e rua são duas coisas que estão ligadas. Fiz FIGURANTES em duas versões, as duas com a linguagem da rua. Pode se dizer que são arruaças. A primeira foi feita como letreiro eletrônico luminoso, desses de posto de gasolina, anunciando produtos e serviços. Só que os serviços, no caso, eram do naipe daqueles oferecidos pelos adjuntos de Luís Bonaparte, descritos por Marx no 18 Brumário[2]: TRAFICANTES, HERDEIROS DECADENTES, BATEDORES DE CARTEIRA, EX-PRESIDÍARIOS, VIGARISTAS, DONOS DE BORDEL… enfim, uma turma de estadistas, que conhecemos bem. A segunda versão de FIGURANTES foi feita de placas metálicas, dessas usadas para indicar nomes de rua, que celebram nomes e datas memoráveis. São placas esmaltadas a fogo, na cor azul escuro. Em letras brancas vai a tipologia estudada por Marx…
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TERRA parte de uma conversa que tive há algum tempo com o Paulo Mendes da Rocha. Ele me falava que poderíamos pensar em fazer um trabalho em cima daquele grande plano que é a laje do MuBE.[3] Uma coisa para ser vista do alto. Não sei o que se passava na cabeça dele, e nem sei bem o que se passou na minha… Quando foi marcada uma exposição em homenagem a ele, lá no museu, visitei várias vezes o MuBE. Subi na laje pela primeira vez para fotografar e fazer o “reconhecimento do território”. Naquela ocasião, tive a certeza de que não dava para fazer nada. Vista do chão, a laje tem um desenho muito limpo, mas, de cima, ela é cheia de acidentes – manta de proteção térmica, canaletas para o escoamento da água, bordas arredondadas como uma bandeja, respiradouros e ralos… havia muitos acontecimentos…arquitetônicos, hídricos, visuais e matéricos… tudo muito diferente da tela em branco que eu tinha na minha imaginação. Saí de lá com a certeza de que não ia conseguir…
Então, pensei numa espécie de mensagem para ser vista de cima, bem de longe, de muito alto, dos prédios, dos aviões, de satélites, quem sabe, por astronautas em naves espaciais… TERRA é um grande luminoso azul que delineia as letras da palavra T-E-R-R-A. Primeiro fiz pequenos desenhos a lápis, e depois projetei a estrutura, pensando no peso, nos materiais possíveis, nas instalações… É um jogo com a ideia de anúncio luminoso da nave-terra, uma homenagem ao querido amigo arquiteto.
Um anúncio não visível do chão, que só poderia ser visto de uma certa altura, de um outro lugar, que não é mais o espaço expositivo do museu. Ao propor o luminoso TERRA, que ninguém poderia ler diretamente, eu quis trabalhar com a des-visibilidade do mundo, em contraposição à ideia de um mundo saturado de visibilidade, via imagens e mais imagens. De repente, se tem um trabalho que não é visível, do qual apenas se tem notícia, por ouvir dizer. E cada um tem que imaginar, pensar, supor ou desejar ver… Queria trabalhar a partir da ideia de desfazer um mundo positivado pela imagem. À noite, quando escurece, é possível ver só uma aura azul sobre a laje do museu.
[1] XX Bienal Internacional de São Paulo, 1989.
[2] MARX, Karl. O 18 brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.
[3] Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia, São Paulo.
Na entrevista presente na publicação que temos em mãos nos deparamos com a seguinte resposta de Carmela Gross sobre o trabalho TERRA (2017): “Um anúncio não visível do chão, que só pode ser visto de uma certa altura, de um outro lugar, que não é mais o espaço expositivo do museu. Ao propor o luminoso TERRA, que ninguém poderia ler diretamente, eu quis trabalhar com a des-visibilidade do mundo, em contraposição à ideia de um mundo saturado de visibilidade, via imagens e mais imagens. De repente se tem um trabalho que não é visível, do qual apenas se tem notícia, por ouvir dizer. E então cada um tem que imaginar, pensar, supor ou desejar ver… Queria trabalhar a partir da ideia de desfazer um mundo positivado pela imagem. À noite, quando escurece, é possível ver só uma aura azul sobre a laje do museu.”
A passagem é breve mas generosa, nos levando a pensar em um sentido maior presente na obra de Carmela Gross. Seu trabalho busca subverter um mundo positivado pela imagem e, também, pelas palavras. Um mundo que nunca foi tão habitado por imagens e, simultaneamente, tão incapaz de apreende-las. Mal abrimos os olhos e é este mundo que nos recebe. Mundo permeado por cidades que se tornaram ilegíveis, justamente na medida em que se tornaram visíveis demais. O turbilhão de signos visuais transformaram a percepção humana, tornando-a menos sensível ao poder que as imagens poderiam ter como choque para o pensamento. A cidade das imagens em excesso é a mesma que não mais faculta a visão ordinária, que não se oferece facilmente ao olhar. De tanto se mostrar, a cidade sumiu. Excesso de luz nada revela – cega. Somos analfabetos visuais em um mundo no qual as imagens ganharam contundência inédita. O resultado a que chega o pensador tcheco Villem Flusser, de que estamos “surdos oticamente”, não fica longe da conclusão do sociólogo alemão Georg Simmel ainda no começo do século passado, para quem o “tipo metropolitano de homem desenvolve um órgão que o protege das correntes e discrepâncias ameaçadoras de sua ambientação externa.”[1] Em outras palavras: diante da poluição visual que enfesta as grandes cidades no século XX, o homem desenvolveu um tipo de percepção que poderíamos chamar de “restritiva”.
Se a obra da artista dialoga com temas seminais para o pensamento da percepção a partir da modernidade,[2] esta também nos leva a pensar em autores que se dedicam a elaborar um presente tão múltiplo quanto turbulento. Em 24/7 Capitalismo Tardio e os fins do sono, o ensaísta e crítico de arte norte americano Jonathan Crary afirma: “Um mundo 24/7 é desencantado, sem sombras nem obscuridade ou temporalidades alternativas. É um mundo idêntico a si mesmo, um mundo com o mais superficial dos passados, e por isso sem espectros. (…) Com um menu infinito e perpetuamente disponível de solicitações e atrações, 24/7 incapacita a visão por meio de processos de homogeneização, redundância, e aceleração. Apesar de afirmações em contrário, assistimos à diminuição das capacidades mentais e perceptivas em vez de sua expansão e modulação. A situação hoje é comparável ao clarão típico da iluminação de alta intensidade ou à nevoa cerrada, nos quais não há variações tonais suficientes que permitam fazer distinções perceptivas e nos orientarmos em função de temporalidades compartilhadas.”[3]
O estudo de Crary surge no bojo de inúmeros outros que atualizam, no nosso presente, as mudanças da percepção examinadas por Simmel, Bejnamin e Flusser ao longo do século XX. O autor aproxima o clarão característico da iluminação intensa à uma nevoa cerrada, ou seja, ambas situações na quais já não discernimos as nuances, nas quais tudo se mostra chapado, espécie de “aspereza ininterrupta do estímulo monótono”, que antes congela, anestesia, do que calibra ou estimula a nossa capacidade perceptiva. Essa época que atua contra o olhar, a despeito de se dar, sobretudo, para o olhar, é a nossa. Uma época que faz o elogio incessante da aceleração, da vigília, e é inimiga do ócio, da contemplação, do sono, do sonho, da imaginação, sendo assim, desencantada. Um mundo sem passado, portanto sem memória. Um mundo sem fantasmas, logo sem fantasia, um mundo sem temporalidades alternativas, portanto escravo da ordem produtivista do capital. Um mundo que nos acossa diariamente com um brilho que se assemelha à aspereza para os olhos, em uma dinâmica ininterrupta de estímulos monótonos que findam por atrofiar nossa capacidade perceptiva. A obra de Carmela busca, justamente, dialogar de modo crítico com esse mundo, não dando as costas para o mesmo, mas sim se apropriando de signos que lhe são próprios com vias a instaurar um modo de olhar, quem sabe, ainda capaz de enxergar o que está ao redor. A série de obras na qual testemunhamos o uso de palavras escritas com luz é exemplar dessa incorporação crítica de uma imagética própria da vida urbana. Estamos diante de trabalhos que são, a um só tempo, pinturas, instalações, esculturas, mas, sobretudo, estratégias poéticas de alta voltagem política que têm como alvo desfazer uma percepção tão automatizada quanto anestesiada.
Em TERRA, a artista escolheu realizar o trabalho no alto da marquise do prédio projetado por Paulo Mendes da Rocha. Local inacessível para o olhar de todo visitante. Entra-se e sai do museu sem que seja possível ver aquele teto, fundamental no projeto arquitetônico. Pois bem, foi justamente naquela área destinada a invisibilidade que Carmela optou por realizar a sua intervenção. Uma escolha, de saída, gauche. A obra faz e não faz parte do lugar. Se por um lado possui a escala dos anúncios, por outro surge como um acontecimento poético que caminha na contramão do espetáculo. A obra opera uma espécie de simultaneidade na divergência (se mostra e se esconde) que nos faz somente espreitar, ver parte, “ouvir falar”. Todo o contrário de uma época marcada pelo regime de alta visibilidade, na qual tudo e todos se mostram constantemente, em excesso, excluindo o espaço da dúvida, da curiosidade.
Em outro trabalho que lida com o par palavra e luz, SE VENDE (2008), estamos diante de um gesto, de saída, cético. A arte que, tornada mercadoria, está à venda, anunciando a si mesma. Mas as letras tortas que fazem alusão ao letreiro de Holywood sinalizam para um modo de operar que ultrapassa, em muito, o negócio de obras de arte. A artista nos recorda que hoje tudo e qualquer coisa esta à venda. Subjetividades, modos de pensar, desejar, sonhar. Estamos diante do jogo do “inconsciente colonial-capitalístico”[4], aquele que enfraquece as forças vitais e nos faz crer que obtendo os bens materiais e imateriais que a sociedade de consumo oferta sairemos mais fortes e prontos para seguir o rumo cuja seta aponta sempre para frente e para mais. SE VENDE ironiza a falácia que está em cena nessa dinâmica e ecoa a passagem do filósofo italiano Giorgio Agamben, segundo o qual “Deus não morreu, ele se tornou o dinheiro”. A própria artista sintetiza ao falar de SE VENDE: “como não se refere a coisa alguma, abarca tudo – um oráculo capitalista.”
Já em AURORA (2003) é possível notar um tipo de uso da luz importante para Carmela e que diferencia a maneira de se apropriar desse material encontrado em sua obra que, de outra forma, poderia simplesmente afirmar os valores sinalizados por Crary em seu texto, ou seja, aqueles de um regime de alta visibilidade, acordado 24 horas, sete dias por semana, característico do modo de pleno funcionamento do capitalismo avançado. A luz e seu uso tais como manejados nos trabalhos da artista não espelham o arauto da economia dos serviços, do consumo e do entretenimento.
Uma série de tubos de módulos fluorescentes de tonalidade rosa-violeta encadeados formam a palavra AURORA. Pela extensão do conjunto e o grande número de lâmpadas, quando enunciada no espaço AURORA tinge todo o ambiente, o banhando com uma luz rosácea. Em um texto sobre o trabalho, a artista nos recorda que Aurora é nome de mulher e é também nome de rua, da rua conhecida em São Paulo pelas suas prostitutas e cines-pornôs, a rua dos negócios com a carne. Os tubos que formam a obra também possuem uma origem ordinária, mundana. Podem ser encontrados em qualquer loja de beira de calçada. Nessa escolha, no encadeamento trôpego, pouco linear – a palavra não surge reta pois reto não é o mundo da qual veio – AURORA exemplifica a ideia de luz presente na produção da artista: “A cidade é o material que perpassa e atravessa o meu trabalho. É o seu material e também sua razão crítica. Por que trabalhar com lâmpadas fluorescentes ou com o neon, por exemplo? A luz da padaria, a luz do bar, do hotel barato, a luz colorida que tinge de azul uma esquina à noite. Isso interessa. Notar como essas luzes vermelhas, rosas, amarelas, multiplicadas de muitas maneiras nas frestas da cidade, vêm junto com as condições mais degradadas da vida na cidade. É, quase sempre, o mais frágil que aparece associado a ela. É muitas vezes o perigoso, o perverso…, por isso as luzes coloridas encantam, como síntese da multiplicidade das experiências humanas. Bem longe da luz-design, da luz-chique do lobby de hotel, da luz-moda da vitrine, percebe? São parâmetros de luz muito diferentes. Essa luz de neon, essa luz fluorescente tubular, ela vem de ambientes muito simples, as vezes precários, degradados. É disso que estou falando, é isso que me interessa na luz.”
Fica claro que a luz sobre a qual falamos não é aquela do minimalismo de Dan Flavin, tampouco as palavras são as que a Pop Art se apropriou. Se o trabalho ecoa um e outro movimento em alguns momentos, no limite está, em relação ao primeiro, mais envolvido com o mundo que habita, logo, mais político e, em relação ao segundo, menos cínico e mais crítico e poético, a um só tempo.
TERRA, SE VENDE, AURORA são todas palavras/imagens que surgem desviadas de suas finalidades. A linguagem como instrumento, como algo a ser utilizado na construção de uma fala cujo ponto de chegada é mais importante do que a travessia, é o oposto do que testemunhamos na obra da artista. Entretanto, essa ausência de finalidade não se confunde com uma alienação do entorno. Estamos diante de palavras/imagens que quase se confundem com as paisagens ordinárias das cidades, mas que, claramente, delas se diferem. Cada obra surge como “um objeto construído como os outros, aparentemente igual, ou quase, aos outros. Mas que, em algum momento, por alguma razão, encarnou um significado. Tornou-se um corpo.”[5] A artista incorpora uma visualidade que nos é familiar para ali mesmo provocar um estranhamento. A escala é da publicidade, as letras tortas evocam o letreiro de Hollywood, mas nada se deixa confundir com os mesmos. A sua AURORA é aquela das frestas das cidades, como a da rua do centro de São Paulo que leva o mesmo nome; o seu SE VENDE antes desvela a lógica perversa do capital do que se filia cinicamente a mesma; a sua TERRA, escrita imensa, nos recorda o quão cegos estamos por conta do excesso de imagens, afirmando uma des-visibilidade em contraposição à um mundo saturado de visibilidade.
Carmela nos endereça, assim, uma ética da luz em tempos 24/7. Não estamos diante do brilho característico dos grandes conglomerados financeiros, dos hotéis de luxo, das lojas de marca, dos shows ou dos hiper-mercados, mas sim de uma irradiação luminosa que nos permite ainda enxergar, que evoca as luzes das margens das cidades, e não dos seus centros. Em uma época marcada pelo excesso de estímulos visuais, pelas palavras fragmentadas enviadas via celular e pelo paradigma do espetáculo, as palavras/imagens de Carmela Gross nos recordam as nossa atrofia visual para, nos mesmo instante, nos habilitar a ver novamente. Atuam, assim, como oráculos e antídotos do mundo 24/7.
*
[1] Georg Simmel, “A metrópole e a vida mental”, in O fenômeno urbano, Guanabara, 1987, pg. 12-13.
[2] Entendemos modernidade aqui no sentido que Walter Benjamin dá para a passagem entre a noção de “Experiencia” (Erfahrung) e aquela de “Vivência” (Erlibnis). A leitura de Benjamin do texto “Para Além do Princípio do Prazer”, de Sigmund Freud, foi fundamental para a sua elaboração destes dois conceitos. Em “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” (1939), Benjamin apresenta sua teoria da memória, que possui como principais referências três autores: Sigmund Freud, Henri Bergson e Marcel Proust. Benjamin recorre ao texto de Freud “na busca de uma definição mais concreta do que parece ser um subproduto da teoria bergsoniana no conceito proustiano de memória da inteligência”. Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud estabelece uma correlação entre a memória e o consciente. Diante disto, é colocada a hipótese segundo a qual “o consciente surge no lugar de uma impressão mnemônica”. O consciente “se caracterizaria, portanto, por uma particularidade: o processo estimulador não deixa nele qualquer modificação duradoura de seus elementos, como acontece em todos os outros sistemas psíquicos, porém como que se esfumaça no fenômeno da conscientização.” [ver FREUD, Sigmund. Jenseits des lustprinzips. Viena, 1923, p. 31] A conclusão desta hipótese reside no fato de que a conscientização e a permanência de um traço mnemônico são incompatíveis entre si para um mesmo sistema. Segundo Freud, a função de acumular memória em processos estimuladores caberia a “outros sistemas”, que não o consciente. Assim, a função do consciente, não sendo a de registrar traços mnemônicos, seria justamente a de agir como proteção contra estímulos. A ameaça destes estímulos se faz sentir através dos choques. Quanto mais a consciência está permanentemente alerta a esses choques, menos se pode esperar deles um efeito traumático. Assim, quanto mais consciente for o homem, menos memória espontânea ele terá. A experiência (erfahrung), tal como nos diz Benjamin, se constitui menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes que afluem na memória, estando assim ligada aos traços mnêmicos. Desta forma, sua atrofia na modernidade deve-se a um estado de alerta da percepção às múltiplas possibilidades de choque existentes na cidade grande. No mundo moderno os homens são bombardeados cada vez mais por estímulos externos, que se transformam em choques. É esta intermitente percepção do choque com o qual o homem citadino se depara que, incorporada ao inventário da lembrança consciente, transforma-se em vivência (erlebnis). Ou seja, a vivência seria justamente este encontro do choque com a lembrança consciente, que possui a utilidade de proteger o habitante da grande cidade de efeitos traumáticos. Desta forma, Benjamin está tentando compreender o funcionamento psíquico nas condições de existência típicas da modernidade. Pois a intensidade de estímulos da vida moderna, em contraposição ao apaziguamento do mundo pré-moderno, legou a este homem citadino um novo tipo de apreensão do mundo. A experiência (erfahrung) é aqui entendida como correlata à idéia de tradição. Tradição como aquilo que é transmitido quase que inconscientemente de geração em geração. Desta forma, o conteúdo desta transmissão possui validade através do tempo. Esta validade é garantida justamente por esta continuidade no tempo típica da época pré-moderna. Também é marca deste tempo da experiência um entrelaçamento entre memória individual e memória coletiva. A vivência (erlibnis), por sua vez, é precisamente a experiência típica da modernidade, órfã da tradição. Para os homens da vivência já não é possível somente repetir o que os outros fizeram e ter a certeza de assim lograr um bom caminho. Estes homens não contam mais com exemplos. São homens solitários, privados dos elos coletivos. A experiência para o homem da modernidade, ou seja, a ligação entre passado e presente, tem de ser construída, pois esta já não lhe é dada espontaneamente.
[3] Jonathan Crary, “24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono”, Cosac & Naify, 2014, pg 29-43.
[4] Ver “A Hora da Micropolítica”, Suely Rolnik, N-1 edições, 2016.
[5] Mammi, Lorenzo. “Desenhar, encarnar e organizar”. In: GROSS, Carmela. Carne. São Paulo: Centro Universitário Maria Antonia, 2006.
Publicado em:
FREITAS, Douglas de (org.). Carmela Gross. Rio de Janeiro : Cobogó, 2017.
Este texto parte do desejo pelo grunhido. “Eu queria mesmo era grunhir”, confessou Carmela na única conversa que tivemos.[1] Ela se referia à sua condição de artista brasileira, colocada em contraposição àquela de Paul McCarthy, norte-americano, a quem havia visto “grunhir” ao falar sobre seu trabalho. Para Carmela, a não necessidade de justificar, explicar, contextualizar e legitimar sua própria obra permitia que ele grunhisse. Tratava-se do lugar do artista diante de um campo cultural cuja institucionalidade e especialização possibilitavam que não fossem exigidas, do “autor”, as atribuições de crítico, educador, jornalista, pesquisador, galerista, entre outras. Contudo, com cinquenta anos de trajetória, dentre os quais quase quarenta deles vividos como professora da Universidade de São Paulo (USP), Gross tivera um percurso claramente diverso, reencenado no dia em que passamos juntas, quando percorremos toda a sua obra. Naquelas longas horas, lá estava ela, novamente impossibilitada de grunhir: o modo de produção que tornou possível a publicação deste texto demandara mais uma versão da cena de sempre.
Ainda que não tenha podido grunhir, Carmela tampouco assumiu uma posição auto ou hiper-referencial em nosso encontro ou no decurso de sua trajetória. Mesmo havendo escrito uma dissertação de mestrado (1981) e uma tese de doutorado sobre seu trabalho (1987), nas instâncias de publicização de suas falas – em especial, conferências e catálogos – a artista terminou por adotar uma postura quase descritiva ao discorrer sobre sua obra. Tal procedimento discursivo, também adotado neste livro, circunscreve uma ética e uma política de seu trabalho: há, nele, algo de deliberadamente planejado para se comportar de modo insuficiente diante da tradição de atribuição de significado que é própria à arte, e tão adensada a partir dos anos 1960.
Esta insuficiência de exegese – ou, dito de outro modo, a adoção de uma perspectiva eminentemente metodológica (e técnica) ao falar – articula- se ao modus operandi de seus trabalhos. Para Carmela, eles teriam um “duplo movimento – ou arrebentam por dentro ou multiplicam por fora”.[2] No primeiro, radicalizam a dimensão de exterioridade que lhes é imanente[3] a ponto de, arrebentados, se tornarem ambíguos. No segundo movimento, exteriorizam essa imanência de modo a dessingularizá-la, produzindo desidentificações. No contínuo trânsito entre a ambivalência e a dessubjetivação tem-se, assim, a obra de Carmela Gross.
Movimento um: arrebentar por dentro
ESCADA
Em 1989, Carmela diria – a propósito de outra obra –, algo que nos aponta para uma perspectiva já posta em um de seus primeiros gestos enquanto artista, ESCADA (1968): “(…) não tenho nada contra as molduras, mas gosto de formas em movimento no espaço, soltas.”[4] A afirmação, oriunda de uma reflexão acerca da série OBJETOS BESTAS (1989), pode ser compreendida literalmente – como um comentário sobre a relação entre coisa e ambiente –, mas pode também indicar uma política de sua obra, onde prepondera o imaginário de uma arte em relação direta com o mundo, como exercitada em ESCADA.
Surgida como intervenção num barranco de São Paulo, ESCADA não é, contudo, exatamente uma ação na cidade. Inseparável da lógica do desenho, o trabalho se realiza, por sua vez, na fotografia. É como imagem que intervenção gráfica, urbe e corpo se combinam, sem que, todavia, estacionem numa ou noutra parte dessa cama de gato proposta por Carmela nos seus vinte e poucos anos. A operação da artista não foi produzir uma intervenção urbana documentada pela fotografia, mas uma imagem que articula essa trama por meio de sua planaridade e corte, distinção crucial para o entendimento desta, como de toda a obra de Gross. ESCADA é uma inteireza imagética que performa “as diferenças intensivas, imanentes a uma singularidade dividida”[5] em detrimento das distâncias extensivas e extrínsecas entre, de um lado, barranco, grafismo e corpo e, de outro, desenho, intervenção e fotografia.
A integralidade que caracteriza ESCADA em sua dimensão de operação linguística é, precisamente, o que a coloca em movimento no campo dos sentidos, produzindo uma insolúvel disputa sígnica – e, consequentemente, social e política – entre um barranco e uma escada. Controvérsia que toma o corpo (no caso, o da própria artista) como charneira. É no contraste entre sua inteireza imagética e disjunção conceitual que ESCADA continua “em movimento no espaço, solta”. Não porque tenha abdicado da sensação de totalidade de um emolduramento (“não tenho nada contra as molduras”), senão porque tenha, inversamente, canibalizado a moldura não enquanto presença, mas como episteme. Pois, antes de ser uma tentativa de isolamento perante um “fora”, um friso é exatamente o estabelecimento de uma dimensão de exterioridade, um modo de produção de contexto e contraste. A moldura não visa anular aquilo que lhe é externo: ela é parte mesma da circunscrição de uma exterioridade.
O que acontece com a “moldura” de ESCADA não é uma inexistência, mas uma operação lacunar.[6] Carmela – que integra a geração que efetivamente buscará lançar “a arte ao mundo”, e que se tornará reconhecida por seu interesse e ação nos interstícios da cidade – não se dedicará, todavia, a negar ou destituir a moldura (aqui, obviamente, aludida em equivalência à ideia de arte) como parte desse movimento geracional. Por sua vez, promoverá seu “desaparecimento” como precipitação de outras formas de produção de exterioridade. De modo geral, a artista tornará intrínseca, por meio de uma operação lacunar[7] que preserva e excita hiatos em vez de ocultá-los, a produção de contraste e contexto que, tradicionalmente, esteve salvaguardada a uma dimensão de exterioridade enquanto “fora”. Fará com que as suas obras se arrebentem por dentro. Serão inúmeras as estratégias de Carmela Gross para insuflar esses hiatos, e ainda mais diversas as suas implicações.
HOTEL
Assim como na inteireza imagética de ESCADA, do ponto de vista formal, as intervenções de Carmela possuem uma espécie de estabilidade de presença, na medida em que são pensadas para aderir às tramas da cidade. Seus trabalhos são plausíveis aos usos, à escala e à intensidade da urbe, a um só tempo distantes de uma poética da fragilidade ou da estridência (por vezes falocêntrica) de certa tradição escultórica/instalativa que adquiriu força dos anos 1990 em diante. No entanto, a solidez com a qual se fixam no espaço é lastro para o movimento inverso que engendram no território social dos sentidos, respondendo à gravidade formal de sua presença com ambivalências intrínsecas a essas existências aparentemente unívocas, postas em movimento desde seus epicentros, e pelas suas bordas. Dessa maneira, se os letreiros de HOTEL (2002) ou SE VENDE (2008) aderem perfeitamente à tradição da arquitetura e dos céus de São Paulo, o mesmo não se pode afirmar sobre o modo como se agregam aos nexos e às narrativas da cidade.
Integra a equação forjada pela artista – entre a estabilidade formal e a instabilidade sígnica – o ruído no cerne da lógica de correspondência que é fundante da significação: os letreiros não condizem com os usos costumeiros dos locais em que estão instalados, demandando uma torção crítica do entendimento acerca daqueles espaços, e/ou das acepções daqueles dizeres. Ao insistir (noite e dia, na proximidade e a distância) na designação de outros usos, condições e identidades à Fundação Bienal de São Paulo (HOTEL), ao Paço das Artes (SE VENDE) e, mais recentemente, ao Sesc 24 de maio (GRANDE HOTEL, 2017) – ambientes de exibição pública de arte –, esses letreiros colocam seus sentidos sociais novamente em devir.
Obviamente, seria possível insistirmos na ideia de uma crítica institucional e sublinhar que essas intervenções provocam as relações entre a arte, o capital e a lógica da espetacularização, ao passo que questionam também as ambiguidades do público e do privado. Contudo, podemos não nos deter estritamente na perspectiva dialética – que, em sua necessidade por contradições, poderia tomar o letreiro HOTEL como uma instância exterior, violenta e provocativamente sobreposta à unidade – Bienal. Noutro sentido, podemos nos lançar à aventura criadora de imaginar a dimensão-hotel como exterioridade imanente à ideia de arte, que nesse batismo sugerido por Carmela Gross novamente entraria em devir, a um só tempo emancipando hotel, arte e instituição cultural de seus lugares-comuns, arrebentando por dentro suas ambicionadas univocidades, transformadas em “espaço imaginário e fronteiriço. (…) Tal como um porto, uma ponte, uma balsa”.[8]
As diferentes leituras de HOTEL, SE VENDE e GRANDE HOTEL nos falam da complexidade dessas obras, bem como das chaves analíticas correntes na crítica de arte brasileira. Por isso, a obra de Carmela Gross se adensa e, num passo seguinte a HOTEL, nos apresenta HOTEL BALSA (2003), instalação da qual não devemos deixar escapar a delicadíssima sugestão de que talvez algo nos tenha escapulido quando da montagem de HOTEL na Bienal de São Paulo. É, portanto, como alegoria de HOTEL que imagino HOTEL BALSA, que decompõe os elementos constitutivos da primeira obra – luz, reflexividade, corpo, arquitetura – num arranjo que, deixando a escala do monumental para o íntimo, torna óbvios o caráter estruturante da reversibilidade e do sujeito na obra de Carmela.
Partindo da frontalidade entre luz e espelho, HOTEL BALSA uma equação insolúvel, concomitantemente captura e catapulta de luz, infinitamente gerada pelo jogo entre reflexão e refração. Seu sistema de fluxo luminoso incide, por sua vez, sobre aqueles que o atravessam numa condição de transitoriedade pautada pela balsa, que perfaz o caminho por entre o corredor iluminado. Em HOTEL BALSA, o público é sujeitado a uma direção e a uma velocidade que lhe são impostas, bem como a uma coletividade arbitrária, cujas individualidades são espectralmente fragmentadas por meio da constelação de espelhos-luz que não permite uma visada totalitária nem do público nem da obra. HOTEL BALSA é, nesse sentido, um dispositivo de disjunção tanto da multidão quanto da individualidade. Amortecido pelo tempo e pela luz, é também um espaço háptico, inapreensível em sua totalidade, no qual as mensurações de perto e longe não operam com a mesma precisão que em espaços cartesianos.
HOTEL BALSA aponta, assim, para o caráter espectral de HOTEL, SE VENDE ou GRANDE HOTEL. potência desses enunciados, situados nos respectivos contextos, não se dá por aquilo que impõem nem por aquilo que subtraem. Não são obras que assaltam as instituições culturais de seus sentidos perenes ou públicos; tampouco as esvaziam de suas funções sociais. Antes, operam como espectralidade que, indicando a possibilidade de um vir-a-ser, colocam-nas novamente em devir. GRANDE HOTEL, por exemplo, acanha – por isso, torna desnecessária e, por fim, libera – qualquer tentativa do Sesc 24 de Maio em explicar sua completa adesão ou inadequação à identidade que foi a ele provocada por Carmela Gross. Airosamente posto no saguão do Sesc, a incompletude daquele luminoso reconhece o insuficiente de si mesmo, e o daquele lugar. Ilumina o direito a uma singularidade dividida. Ecoa grunhidos.
ESCUTA
A obra de Carmela Gross exercita, ainda, outras formas de arrebentar-se por dentro, numa constante experimentação de seus próprios métodos, processo caro à artista, também professora de tantos outros. Em direção diversa àquela de produzir “contradições insolúveis”[9] como em ESCADA ou HOTEL, outros de seus gestos não se prestam a “disputar”, desde dentro, o rumoroso território dos sentidos. Cientes de que não podem, todavia, escapar a ele, esses trabalhos apostam numa espécie de silêncio, um modo de tamponamento da dimensão conflituosa da significação que é, decerto, um dos eixos de sua trajetória. Se, grosso modo, ESCADA ou HOTEL operam “dentro de uma chave que decifra e problematiza”,[10] ecoando perguntas por colocar em novo devir as respostas previamente sabidas, é possível perceber uma suave – porém precisa – inflexão nessa operação em trabalhos como ESCUTA (2001) ou CORPO DE IDEIAS (1981). Mais do que camas de gato, essas obras são veladuras.
ESCUTA foi o “empapelamento” do ateliê da artista como forma de participação em um documentário produzido para a televisão, que tinha como prerrogativa registrar seu “fazer artístico”. Buscando evitar “aparecer como falso personagem de si mesma”,[11] Carmela Gross propôs não a encenação da criação, mas o entendimento do trabalho enquanto performatividade. Radicalizou, assim, a ideia de um making of: ao esvaziar a subordinação a algo que lhe é externo, o of, Carmela voltou o making contra si mesmo. Produziu uma operação lacunar em torno da ideia de arte, desaparecida pela artista para que pudesse, desse modo, grifar a dimensão de trabalho que, sendo inerente ao seu campo social, é, todavia, um hiato em suas narrativas ontológicas. Assim, contra a ausência da perspectiva dos modos de produção da arte nos discursos engendrados por seu próprio campo – que protelam uma abordagem materialista do trabalho por uma alusão genérica e romântica em torno da criação –, Gross propôs uma inversão dos lapsos em jogo. Em vez de manter o labor em caráter lacunar, operou uma pausa na ideia de arte, num gesto que provocou o trabalho não como uma dimensão extensiva à arte, mas intensiva a ponto de sobressair inclusive diante de uma situação de silenciamento ontológico da mesma.
Apesar de partir de uma intervenção no espaço, o empapelamento produzido em ESCUTA é, eminentemente, uma ação no tempo. No documentário, a artista se apresenta na realização delongada e silenciosa de um serviço, acompanhada de assistentes e pensada para o seu público. O gesto de Carmela, configurado como algo desútil, não age no endereçamento de um significado ou conteúdo: recobrir o ateliê de kraft produz, no documentário de que é originalmente inextricável, um espaço de silêncio e, portanto, um momento de escuta. Ao suspender intencionalidades e exegeses, tampouco é a arte que está, ali, a ser ouvida. Por prescindir de emissor ou destinatário específico, o silêncio produzido por ESCUTA reposiciona a discursividade da arte, arrebentando por dentro a legitimidade e a autoridade de seu lugar de fala enquanto atividade supostamente especializada e intransferível.
Já o trabalho CORPO DE IDEIAS coloca outros campos do conhecimento em situação de veladura. Parte de uma enciclopédia visual para, por meio da reprodução heliográfica de suas páginas, hipervulnerabilizá-las ao tempo face ao qual, enquanto dispositivo de arquivo e de ciência, intencionavam resistir. Heliografadas – e, portanto, homogeneizadas por um azul de lassa nitidez –, as páginas sobrepostas produzem estratos de imagens para, a partir daí, agirem antiarqueologicamente. A operação de Carmela se situa na contramão da taxonomia e do isolamento entre partes que são comuns ao método científico, gerando uma massa de coisas de todos os tipos, que por meio da reprodução tornaram-se duplos enquanto, por outro lado, dada a natureza da heliografia, tenderão a se saturar e a desaparecer mediante exposição à luz. Trata-se de uma operação ambígua que vela para tornar audível e opera no espaço para produzir tempo.
HINO À BANDEIRA
Por se dar num continuum, em obras como ESCADA ou HOTEL, a relação entre inteireza formal e disjunção conceitual – um regime de insolubilidade dos problemas postos, que se friccionam indefinidamente – é um significativo modo de produção de temporalidade, como o são também intervenções notadamente voltadas à criação de espaços-tempos, a exemplo de ESCUTA e CORPO DE IDEIAS. Tensionando intrínseca e intensivamente seu próprio sistema, essas obras exploram as descoincidências entre intenção, coisa e ação, colocando-as em movimento, como já em 1977 percebia Flávio Motta: “talvez seja necessário descolar algumas coisas”.[12] De outro modo, HINO À BANDEIRA (2002) ativa a dimensão duracional das obras de Carmela em outra chave, colocando em risco a inteireza que lhe é habitual por meio da iminência de um desconjuntamento que, agora, transfere ao público, inclusive corporalmente, a responsabilidade pela manutenção de sua integralidade, ou por sua absoluta derivação.
A instalação, um conjunto de lençóis em diversos tons de vermelho que forma um “plano cromático estendido no vão monumental do museu”,[13] tem sua lógica modular surgida de uma gravura. A partir de uma mesma matriz de metal, completamente hachurada, Carmela produziu uma série de 21 cópias que se singularizam por suas cores, conquistadas pelo que sobrava da aplicação da camada anterior de vermelho com a que lhe chegava por cima, sempre diversa. O método montava uma sofisticada relação entre permanência e variação, cuja intricada cama de gato gráfica não permitia que fosse inequívoca a sensação de tratar-se, enfim, de uma mesma matriz. Já nas GRAVURAS ROSAS (2002) colocava-se o problema da unidade, espacialmente traduzido numa montagem modular que, em sua imparidade cromática e quantitativa, não pretendia driblar o hiato, tampouco a heterogeneidade.
Não possuindo, todavia, diferenças entre exterioridades – diversidade –, mas variações intensivas, as gravuras dão a ver seu próprio processo de diferenciação justamente por estarem circunscritas a uma mesma matriz. GRAVURAS ROSAS é, por isso, menos um conjunto de heterogêneos do que um sistema de heterogênese que foi, com HINO À BANDEIRA, levado a uma especial radicalidade na obra de Carmela.
Na tradução da gravura à “instalação”, as manchas de tons vermelhos se transformam em lençóis depositados sobre o chão de um espaço arquitetônico livre, aberto às variações do ambiente que, como tal, colocam em risco a soberania da bidimensionalidade, então retirada de suas tradicionais quadraturas. Como em CORPO DE IDEIAS, a artista hipervulnerabiliza sua matéria de modo paradoxal: para proteger os lençóis de voarem, Carmela os expõe, pedindo que sejam aguados constantemente, na intenção de produzir uma densidade capaz de aderi-los ao chão. Nessa umectação, os torna superfícies aglutinantes, que se impregnam do espaço-tempo assim como as reminiscências de vermelho insistem de uma cópia a outra da matriz das GRAVURAS ROSAS. Se, de um lado, essa vulnerabilização garante a continuidade da existência dos lençóis naquele contexto, por outro ela continuamente transforma suas identidades, num agenciamento entre permanência e variação. Regados pelo público e inextricáveis ao ambiente em que se encontram, os panos conformam-se às ações a que estão sujeitados, ao passo que igualmente as precipitam. Nesse processo, instauram um modo relacional de existência que descarta a prerrogativa ontológica do objeto, do sujeito ou da arte. Arrebentam-se por dentro a ponto de perderem de vista qualquer origem ou fim: são imanência.
O caráter duracional de HINO À BANDEIRA aos poucos transfigura o regime de causalidade da obra, tornando a condição de “impregnante” coextensiva à de “impregnada”. É pela performatividade que impinge – a de repetidamente aguá-lo – que o trabalho simultaneamente profana e ritualiza a conquista diária de um estado de imanência, que não está salvaguardada como dado de autonomia, mas é, fundamentalmente, uma construção que permanece em devir, inconclusa, donde a ironia de seu título. Nesse sentido, HINO À BANDEIRA reverte para o público o trabalho que, em ESCUTA, ficara reservado à artista, inscrevendo-se num dos mais profícuos territórios da obra de Carmela Gross: o da peleja com a matéria.
Movimento do meio: pelejar
A obra de Carmela se funda, lá atrás, a partir de certa dimensão do etéreo. Suas NUVENS (1967), principalmente, seu PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (1981) nos mostram uma artista em batalha com aquilo cuja forma lhe escapa. Também interessada no “molejo ambíguo”[14] tão comum à arte, Carmela todavia não envereda pelo caminho do “abstrato” ou do “informe”, como observado por Paulo Miyada em texto que integra este livro. De sua parte, opta por pelejar com a maleabilidade física e conceitual da matéria, experimentando modos de forjá-la (CARIMBOS, 1978), mensurá-la (UM PARA (1:), 1982) e esgotá-la (FACAS, 1994), entre tantas outras operações que revelam suas preocupações com implicações éticas e políticas do exercício da arte na medida em que põem à prova intencionalidades e eficácias, reverberando a matriz construtiva com a qual Carmela se mantém em diálogo.
Sua peleja passa, ainda, pela configuração de materialidades inesgotáveis, ou seja, pela proposição de situações e objetos que contenham, em si, dispositivos capazes de continuamente os fazer esquivar do gesto desejoso por esgotá-los. Enquanto obras como FACAS levam o embate com a matéria a limites expressivos, há, em Carmela Gross, também obras que farão esse embate ser canibalizado por seu próprio funcionamento, numa resposta do dispositivo contra a matéria. Daí a importância da dobradiça em sua trajetória, elemento-chave na criação de peças de lógica combinatória. Reposicionando a disputa entre partes, esses trabalhos instauram, por outro lado, processos de caráter “participativo”, em que o embate entre alteridades não só está previsto, como integra, fundamentalmente, sua própria estrutura e identidade. É o que se dá precisamente com FECHE A PORTA (1997) e ALAGADOS (2000) e, de modo mais amplo, com HÉLICES (1993), DARLENES (2014) ou ESCADA-ESCOLA (2016).
Balizando esses dois modos de peleja tem-se, ainda, uma ideia de reversibilidade ou seu oposto, a experiência do irreversível. Enquanto o caráter inconversível do gesto dará as bases para o “multiplicar-se por fora” que é caro a Carmela – como acontece com 300 LARVAS (1994) –, a reversibilidade extrapola o território da matéria e se torna uma espécie de ética de sua obra, evidente em trabalhos como HOTEL, CARNE (2006) ou EU SOU DOLORES (2002), nos quais a simetria – e, portanto, a potencial reversão – entre estados da existência é a todo tempo convocada, ou sugerida, borrando entendimentos e práticas positivistas da relação entre sujeitos e objetos.
É no atrito com a (ir)reversibilidade das existências que também os títulos de suas obras operam. Como dobradiças, apontam para uma ambição de batismo – a confirmação social de um estado das coisas – e para a instabilidade de toda sagração sígnica, numa ambiguação que tem como “objetivo criar entre a obra e o título uma disjunção entre ver e dizer”.[15] Apontando a reversibilidade potencial da vida, os artigos que integram seus títulos situam-se entre o exemplar (A NEGRA, 1997) e o genérico (UMA CASA, 2007), sendo também deles conscientemente subtraídos e tantas vezes pluralizados na problematização do arquetípico e do unitário que, desde NUVENS, vem interessando Carmela Gross.
Movimento dois: multiplicar por fora
FACAS
É fascinante perceber a discreta, porém descomunal, diferença entre obras como FACAS e RÉPTEIS (2012). Respectivamente oriundos de uma peleja com a argila e com o alumínio, igualmente calcados na quantidade – ou seja, na repetição dos gestos de sua própria forja —, bem como pensados para tirar partido do contraste ameaçador entre a horizontalidade do chão e a verticalidade de nossos corpos, FACAS e RÉPTEIS são, entretanto, reveladoramente distintos no que concerne ao protagonismo da especificidade do objeto e sua dimensão arquetípica.
“De fato, muitos trabalhos são feitos de repetições, de multiplicações. Ou se desdobram em várias unidades, ou se fragmentam internamente. (…) Com as FACAS (…), fui inaugurando gestos. (…) O gesto continha, ele mesmo, o seu esgotamento e a descoberta de outro gesto. Amassar, rolar, puxar, quebrar; então há diferentes famílias com um determinado tipo de formalização. Essa morfologia do gesto segue enquanto tem pergunta; depois se esgota.”[16] Como fica evidente na voz de Carmela Gross, o que está em jogo em FACAS não é cada unidade daquela diversidade, tampouco uma hipótese taxonômica. Interessa menos a forma “faca” do que sua formação, processo morfológico que, como CORPO DE IDEIAS ou HINO À BANDEIRA, não está exatamente produzindo coisidade, mas temporalidade: “É como se os objetos fossem colocados entre parênteses, de sorte que o trabalho agora se produz no espaço-tempo abstrato que decorre entre eles.”[17] Sua ordenação lógica, diferentemente do molejo infinito de HINO À BANDEIRA, produz, por sua vez, historicidade, como apontado por Sônia Salzstein em texto sobre a obra. Nesse sentido, ainda que morfologicamente se “arrebentem por dentro”, as FACAS precisam também, identitariamente, “multiplicar-se por fora” para que possam ser uma anotação crítica sobre o transcorrer do tempo. É na precisa tensão entre desindividualizar-se como parte integrante de um processo histórico e ressingularizar-se por estar retroativamente produzindo-o que se situa a clareza política da operação multiplicadora na obra de Carmela Gross.
QUASARES
É importante perceber que esse caráter proliferante não é sinônimo de repetição. Ainda que, com os CARIMBOS, a artista tenha lidado com certa mecanicidade reprodutora, a tônica geral de suas obras que tomam como fundamento a multiplicidade está radicalmente distante da reiteração. Trata-se, por sua vez, da complexidade dos processos de (des)identificação, que conectam e contrastam diferentes regimes de alteridade, do indivíduo à multidão. Não à toa, de modo geral, seus trabalhos que se multiplicam por fora estão ligados às dimensões sociais da subjetivação: são figurantes, passantes, imigrantes, bichos, mulheres, pessoas – bandos, Dolores, Luzia, Aurora.
Vale frisar que, ainda antes de a (des)identificação tornar-se, na obra de Carmela, um pensamento político acerca da sociedade, a peleja por ela enfrentada com as imagens – num processo que transita entre o arrebentamento e a multiplicação – foi sempre um terreno fértil de sua produção. Nos anos 1970, a artista integrou um grupo de experimentações em torno dos “novos meios”, em colaboração com a USP e em interlocução com Walter Zanini. A partir das tecnologias às quais tinham acesso (por meio da universidade, de amigos, de empresas etc.), artistas como Carmela, Marcelo Nitsche, Regina Silveira, Julio Plaza ou Cláudio Mubarac atuavam cooperativamente para experimentar as possibilidades da xerox, da heliografia, do fax, do videotexto, dos microfilmes, do computador. Produziam o cruzamento desses então “novos meios” com linguagens tradicionais ao campo da arte, como o desenho e a gravura, num hibridismo experimental do qual surgiu a prática da “tradução intersemiótica” tão aludida naquela e na década seguinte, e igualmente presente em muitos dos mais simples gestos do trabalho de Gross, como na transformação da pixação em caligrafia e desta em neon (US CARA FUGIU CORRENDO, 2000). Nas palavras de Carmela, trata-se de um processo de “tradução da tradução da tradução.”[18] que, em sua obra, fundou uma prática de desidentificação, como nos revela QUASARES (1983), surgido de “uma sequência de operações fotomecânicas” que “buscavam desconstruir imagens comprometidas com a ilustração e a representação.”[19]
Assim como CORPO DE IDEIAS, QUASARES também parte da apropriação de imagens retiradas de enciclopédias e manuais que, sequestradas de seus contextos originais, são posteriormente xerocadas, fotografadas, desfocadas, ampliadas, impressas – “submetidas a metamorfoses sucessivas pelo uso de processos técnicos.”[20] –, de modo a desidentificarem-se completamente, tornando-se manchas, sombras, presenças, “impalpável – concreto na materialidade do papel, mas ilusório”.[21] Nessa cascata de traduções entre técnicas e linguagens, abdicam de qualquer referencialidade – donde vem o título cósmico, então equivalente a um mistério indicial da astronomia. Sem vínculos de origem ou fins, os QUASARES desnaturalizam-se socialmente, rejeitando ontologias em favor de um processo político da subjetivação, contínuo e prenhe de desidentificação.
DOLORES
As identidades que, desde então, passam a ocupar a obra de Carmela Gross, o fazem enquanto desiguais-em-si,[22] arrebentadas por dentro e multiplicadas por fora. De um lado, essas identidades são sempre multidão, como em BANDO (2016), MIGRANTES (2014) ou FIGURANTES (2016); politizam a força da coletividade porque tensionam os preconceitos sociais e culturais em torno da massa, do povão, da ralé. Em FIGURANTES, um letreiro luminoso nos incandesce com a referência a batedores de carteira, ex-presidiários, vigaristas, biscateiros, vagabundos, rufiões decadentes e desocupados de toda ordem,[23] num “cortejo insólito de figuras dúbias.”[24] Em BANDO, espectros de animais de todos os tipos que nos cercam espacialmente formam uma “horda à espreita” que redistribui politicamente o patrulhamento e a ameaça social de que historicamente têm sido vítimas, bichos ou gentes. Além de andarem em bando, as identidades são também intensivamente cindidas, como em EU SOU DOLORES, obra-chave na trajetória de Carmela Gross que, ao provocar a dimensão de exterioridade que nos é imanente, evidencia politicamente os regimes de alteridade.
Se a artista tem propagado nomes de mulheres pelo mundo, como em AURORA (2003) ou LUZIA (2004) – grandes luminosos que são como faróis para identidades ao mesmo tempo espectrais e ordinárias –, será com EU SOU DOLORES que essas identidades perfazem uma importante torção: se multiplicam por dentro. Ao atravessar paredes, comportando-se como uma grande diagonal que cruza a cidade, o agigantado letreiro performa, no espaço, aquilo que incita à subjetividade: uma relação transversal entre o mais calcificado dos binômios das culturas “ocidentais”, eu-outro. Do ponto de vista sígnico, EU SOU DOLORES toma partido da acepção de dolor (dor) para aludir à empatia em voga no capitalismo, em que “colocar-se no lugar do outro” seria um horizonte ético da alteridade, numa política de tolerância calcada na capacidade de entender-se como o outro, de “sentir a dor do outro”. Contudo, formalmente – dada a violência da diagonal que esburaca e atravessa, o peso de sua inteireza objetual e sua inflamada luminosidade –, EU SOU DOLORES nos provoca uma perspectiva diversa à da empatia adocicada, advertindo-nos de uma política de posse e de propriedade como parte inextricável de um regime de alteridade. Eu não me sinto como Dolores, nem me coloco em seu lugar: eu sou Dolores. Eu a tomei e, retroativamente, ela me revolucionou. Não somos mais quem éramos porque mutuamente ocupamos nossos lugares sociais, subjetivos, éticos e políticos. Agora somos também mais do que um, e potencialmente muitos. Trata-se de um movimento de desidentificação que, ao suprimir qualquer informação sobre quem éramos, tampouco localiza esse regime de alteridade num contexto específico. Como sua luz, EU SOU DOLORES se torna um espectro à espreita de toda uma sociedade.
Sua vermelhidão incandescente nos diz o óbvio, porém interdito: gente é coisa perigosa. Não à toa, quando Carmela Gross propôs sinalizar uma passarela de pedestres na Nova Zelândia com a frase REAL PEOPLE/ ARE DANGEROUS (2008), as autoridades locais impediram a segunda parte do enunciado, de modo que aquelas real people continuaram undangerous, protegidas da imagem da força revolucionária de sua própria condição de multidão. Salvaguardadas da ideia de um genérico múltiplo que seria, por fim, absoluto.
Movimento final: zerar a arte
A questão é que, como nos advertiu Carmela Gross, mesmo que engajado com uma Arte à mão armada (2009), pelas bandas de cá um artista não pode apenas grunhir. Sua arma é também aquilo que a neutraliza, impelida a convencer constantemente como estratégia de sobrevivência diante de projetos políticos que visam à sua amortização – os quais parecem estar agora, em outubro de 2017, largamente revigorados. Talvez por isso, aqui e acolá, por entre sua discursividade programaticamente insuficiente, Carmela deixe escapar sua ambição de agir com zero coeficiente de arte.
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[1] Estivemos juntas num sábado, 12 de agosto de 2017, encontro do qual saíram alguns dos principais entendimentos que se desdobram por este texto.
[2] GROSS, Carmela. Escadas – Carmela Gross. Rio de Janeiro: Casa França-Brasil, 2013, catálogo de exposição, 5 jun. a 28 jul. 2013, org. Marta Bogéa, p. 92.
[3] CASTRO, Eduardo Viveiros de. “A imanência do inimigo”. In: A inconstância da alma selvagem.São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 292.
[4] Depoimento da artista, publicado no texto “Fronteiras do olhar”, de autoria de Angélica de Moraes. Veja São Paulo, 1 nov. 1989.
[5] CASTRO, Eduardo Viveiros de, op. cit.
[6] Cf. CHAUÍ, Marilena. “Crítica e ideologia” (1977). In: O discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2011, p. 32.
[7] Ana Maria Belluzzo, quem mais e melhor escreveu sobre a obra de Carmela, percebe essa operação e afirma que a obra de Gross “omite constantes que poderiam possibilitar o reconhecimento de nexos e princípios de ordem”. Belluzzo apud Alambert. (inédito)
[8] Cf., nesta edição, o comentário de Carmela Gross sobre a obra HOTEL.
[9] Depoimento de Carmela Gross. In: GROSS, Carmela. Escadas – Carmela Gross. Rio de Janeiro: Casa França-Brasil, 2013, catálogo de exposição, 5 jun. a 28 jul. 2013, org. Marta Bogéa, p. 111.
[10] Idem.
[11] GROSS, Carmela. Arte à mão armada.Rio de Janeiro: Endora Arte Produções, 2017, catálogo de exposição realizada na Chácara Lane, de 3 set. 2016 a 9 abr. 2017, e na Capela do Morumbi, de 4 set. 2016 a 5 mar. 2017, cur. Douglas de Freitas.
[12] MOTTA, Flávio. “É o B-A-BÁ” (1977). In: GROSS, Carmela. Carmela Gross – Desenhos. São Paulo: Gabinete de Artes Gráficas, 1977.
[13] Cf., nesta edição, o comentário de Carmela Gross sobre a obra HINO À BANDEIRA.
[14] Citação de Carmela no texto do Clube dos Colecionadores de Fotografia do MAM-SP, 2015, p. 63.
[15] Depoimento de Carmela Gross. In: GROSS, Carmela. Escadas – Carmela Gross. Rio de Janeiro: Casa França-Brasil, 2013, catálogo de exposição, 5 jun. a 28 jul. 2013, org. Marta Bogéa, p. 109.
[16] Ibidem, p. 98.
[17] SALZSTEIN, Sônia. “Desgaste, historicidade e mudança”. In: GROSS, Carmela. Facas. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. pp. 5-7.
[18] Em depoimento à autora.
[19] Cf., nesta edição, o comentário de Carmela Gross sobre a obra QUASARES.
[20] Idem.
[21] Idem.
[22] PÉLBART, Peter Pal. “Imagens do (nosso) tempo”. In: FURTADO, Beatriz (org.). Imagem contemporânea: cinema, TV, documentário, fotografia, videoarte, games… Vol. 2. São Paulo: Hedra, 2009, pp. 31-32.
[23] A obra especializa os membros da Sociedade 10 de Dezembro que são citados por Karl Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte (1852).
[24] Cf., nesta edição, o comentário de Carmela Gross sobre a obra FIGURANTES.
Publicado em:
FREITAS, Douglas de (org.). Carmela Gross. Rio de Janeiro : Cobogó, 2017.
Entre setembro de 2016 e abril de 2017, a Chácara Lane foi tomada por um conjunto significativo de obras que compreende um recorte de cinco décadas de produção de Carmela Gross, numa espécie de retrospectiva, em que períodos distintos da produção da artista são pontuados. Ao mesmo tempo, foi proposta uma leitura que ressalte o caráter desafiador do trabalho, o burlar fronteiras entre desenho, máquina e mão / cidade, multidão e indivíduo, que possa destacar suas ferramentas de questionar a ordem estabelecida, seus assaltos imagéticos, e apresentar suas armas de enfrentar o mundo e a arte.
A exposição procurou mapear as diferentes estratégias de enfrentamento da artista, apresentando uma espécie de cartilha de operações e materiais, na tentativa de estabelecer um recorte coerente com a totalidade da obra.
Além disso, enfrentou-se o desafio de como apresentar obras que lidam com situações específicas, adaptando-as para outra situação, com o cuidado de manter sua integridade conceitual, fazendo com que elas construíssem diálogo com o novo espaço.
A remontagem de instalações e intervenções de grande escala, como EU SOU DOLORES, realizada para a quarta edição do Arte-Cidade, e a instalação realizada em 1992 para a Capela do Morumbi, agora remontada na mesma Capela, revelam a ambição de estar na cidade que a obra da artista tem, e que se rebate na exposição. Seus trabalhos partem de signos da cidade; voltar-se para ela parece destino certo.
A exposição teve como ponto crucial explorar o processo da artista, revelar seu modo de operar, seu pensamento. Por isso os textos que acompanharam as obras eram os escritos de Carmela, reflexões sobre seus trabalhos realizados ao longo dos anos, que agora seguem compilados neste catálogo.
Também foram reunidas pela primeira vez as pastas-projetos da artista, apresentadas em fac-símiles; esses arquivos contêm o conjunto de estudos preparatórios para suas obras. Torná-los públicos é ato corajoso de Carmela Gross – expor seu processo, com suas dúvidas, recortes e acertos. Incluí-los na exposição foi também estratégia da curadoria de burlar a limitação de um recorte espacial, driblar a impossibilidade de apresentar mais trabalhos, tão significativos quanto os que estavam expostos.
“Poéticas do signo”[2]
Em uma das diversas conversas banais que tive com Carmela, entre muitas outras sobre seu trabalho e a exposição, ela comentou que levou muito tempo até perceber que nuvens são brancas e não azuis. Esse comentário me pareceu extremamente interessante, pois simbolizava exatamente o que eu entendia como início e principal cerne do trabalho da artista, o mundo mediado por imagens e signos.
São esses elementos com que convivemos desde sempre, que simplificam o mundo, achatam a percepção e fazem com que vivamos com uma série de conceitos prévios sobre as coisas, sem questioná-las, ou refletir sobre elas. Não é a toa que NUVENS, de 1967, é o trabalho que a artista considera marco inicial de sua obra. Composto por várias nuvens de madeira esmaltadas de azul de desenho simplificado, como as nuvens que desenhamos quando criança, apoia-se no chão seccionada na base, como se tivesse caído do céu. Outra secção, agora no corpo de uma das peças, mostra um interior vermelho carne, que reforça a materialidade dessas nuvens, confere corpo a elas, as distancia das nuvens reais, leves e imateriais, condensando em seu azul todo o peso da imensidão do céu.
- Na intervenção ESCADA, de 1968, o caminho é o mesmo. Nela Carmela realiza o desenho de uma escada esquemática vista de perfil com spray preto sobre um barranco. Os degraus da escada-desenho coincidem com os desníveis do barranco. Desenho, projeto e ideia aderem ao mundo e ganham corpo. Assim também é A NEGRA, garatuja gigante impressa na cidade, um chumaço de linhas errantes, vazia de corpo, mas cheia de si. Por ser móvel, podia ser carregada. Transitou e habitou a avenida Paulista em 1997.[3]
- Também de 1997, FECHE A PORTA[4] materializa as linhas do desenho no espaço e, através da mobilidade, faz com que ele se desconstrua e se converta. Símbolos de poder, essas cadeiras de desenhos esquemáticos estão construídas em ferro revestido de cera e grafite, suspensas do chão e articuladas à parede. Divididas ao meio, suas metades são móveis; quando manipuladas, as cadeiras se desconstroem e se armam em armadilha, apontando suas hastes para quem as movimentou.
- Letras também são signos, quando articuladas são ferramentas de representação. Em PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO,[5] de 1996, letras-desenhos realizadas individualmente em monotipias sobre tecido constroem as quatro palavras na parede. No entanto, a montagem da obra não segue nenhum desenho estipulado pela artista, a ordem e a posição das quatro palavras devem ser definidas por quem monta o trabalho.[6] Os verbos “pensas, achas e gosto” foram extraídos do soneto “Spinoza”, de Machado de Assis, e o verbo “pode” foi acrescentado pela artista.
“Momento anterior ao signo”[7]
- Uma série de trabalhos da artista desmonta os signos, para esmiuçá-los e investigá-los como ação e matéria. É assim nos CARIMBOS, realizados entre 1977 e 1978. Os gestos que criam os signos da arte – linhas, rabiscos, pinceladas e manchas – estão reproduzidos em carimbos, convertidos em máquina. Ao mesmo tempo, esses elementos não criam nada, apenas se repetem um após o outro, preenchendo papéis e livros com o mesmo elemento, de modo burocrático e automatizado.
- As GRAVURAS ROSAS, de 2002, são apenas gesto e cor. Uma única placa de metal foi riscada incessantemente até ficar quase completamente fechada pela trama das linhas. A placa foi entintada por diferentes tons de rosa para gerar as gravuras, mas de uma impressão para a outra, um tom de rosa contaminou o outro, gerando uma infinidade de rosas, e tornando cada gravura única. Essas gravuras foram feitas como estudos para HINO À BANDEIRA,[8] também de 2002. Na instalação, lençóis de diferentes tons de rosa criam uma massa de cor no chão. Para que eles não voem com o vento, precisam ser regados constantemente. Molhados eles intensificam suas cores, tornam-se carne e pele.
- Em ESCUTA[9] o trabalho também é pele e superfície, mas é também estratégia de visibilidade e ocultamento. O trabalho foi realizado pela primeira vez em 2001 para um projeto de televisão que revelava o ateliê do artista. Carmela propôs, então, que em vez de exibir seu ateliê, exibiria uma nova obra sendo realizada, e cobriu todo o ateliê com papel kraft. Nada mais podia ser visto, mas em compensação criou-se um novo ambiente, banhado de luz âmbar, novas texturas e com o cheiro característico do papel. Aquela pele de kraft que cobria a sala acabava convertendo-a em caverna, ou estômago, ocultava a arquitetura rígida, borrava as linhas e definições duras do espaço.
- A instalação realizada em 1992 para a Capela do Morumbi[10] segue o mesmo princípio; uma ação repetitiva produz a forma final da obra. Nesse caso não há espaço a ser coberto, e não há forma definida, apenas diversos materiais fragmentados, amassados e empilhados uns sobre os outros formando 70 peças singulares, todas iguais e, ao mesmo tempo, todas diferentes. Suspensas no espaço, essas pilhas de destroços se alinham em um retângulo que rebate a planta da Capela. Lado a lado em sete filas, declinam uma após a outra em 10 patamares até o altar.
“A obra é uma máquina”[11]
- A cidade, sempre presente na obra de Carmela, por vezes empresta seus elementos aos trabalhos. O COMEDOR DE LUZ, realizado entre 1999 e 2000, é um ser indefinido de formas antropomórficas, tem seu corpo desenhado por uma estrutura de ferro e lâmpadas florescentes. Caído de canto no chão, parece ter engolido a cidade e agora agoniza, engasgado por ela, convertido nela.
- US CARA FUGIU CORRENDO, realizada entre 2000 e 2001, é um neon que transcreve uma pichação de rua encontrada na cidade para o museu.[12] Desloca a grafia das ruas para o espaço interno, convertido em material aparentemente mais sofisticado, mas que na verdade, é o mesmo luminoso banal usado na cidade. A grafia-desenho apressada, em movimento, se mantêm, mas o fluxo agora está no pulsar da luz do neon, não mais na cidade.
- ARTE À MÃO ARMADA, de 2009, que empresta seu título para a exposição na Chácara Lane, é um lambe-lambe concebido para uma intervenção em um caixa eletrônico situado no meio da Praça Clementino Procópio, em Campina Grande, Paraíba. O caixa eletrônico recebia um projeto de intervenções de artistas.[13] A obra concebida por Carmela alerta para o roubo do espaço da praça pelo caixa eletrônico, ao mesmo tempo em que rouba espaço do caixa eletrônico para existir. ARTE À MÃO ARMADA[14] foi a última intervenção no caixa eletrônico. Após a instalação da obra o cilindro foi removido da praça.
- O espaço interno avança para a cidade, e a cidade invade o espaço interno em EU SOU DOLORES, de 2002.[15] A estrutura de ferro com lâmpadas tubulares vermelhas invade e estoura o espaço. O “EU” fica de fora, o “DOLORES” para dentro, dividido entre o “Eu” anônimo que ocupa a cidade, como tantos outros, e o “Eu” privado, indivíduo na escala interna, que transita entre esses dois mundos. Carregando a identidade para a cidade, e trazendo a cidade em si quando volta. EU SOU DOLORES é também grito de identidade para a cidade, na velocidade e intensidade das luzes vermelhas que desenham o trânsito.
“Ser em trânsito”[16]
- A massa que ocupa a cidade é a engrenagem que a mantém funcionando; todos têm uma função ou, pelo menos, deveriam ter. Em FIGURANTES, placas como as de rua apresentam as figuras listadas por Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São os arrivistas, vagabundos, donos de bordéis, batedores de carteiras entre outros. Lado a lado, “toda essa massa indefinida, desestruturada e jogada de um lado para o outro”[17] está estampada em placas de ruas. Colocam em evidência a engrenagem anônima não oficializada pela sociedade que move a cidade.
- Para a exposição na Chácara Lane Carmela armou uma nova máquina. ESCADA-ESCOLA é uma escada em estrutura metálica de linhas e curvas industriais, que rompe a barreira que impede o trânsito das crianças da escola vizinha à Chácara, propondo uma relação mais proveitosa entre escola e museu, com um desvio na lógica de uso engessado dos espaços. É mais uma vez a artista saindo do espaço expositivo, esbarrando nos limites físicos do museu e se voltando para o lugar que mais lhe provoca que é o fora, a cidade.
A ESCADA-ESCOLA foi realizada para burlar limites e criar trânsito entre os espaços da escola e do museu. O trânsito seguirá estabelecido, nem escola nem museu querem mais inviabilizar a passagem. O fluxo de um espaço ao outro, antes engessado, agora está garantido. A função primordial intervenção foi conquistada.
A obra de Carmela Gross existe no constante exercício de desafiar a lógica estabelecida das coisas, sua função é apontar, problematizar. Se obra é uma máquina, ela certamente é uma arma. Seu fazer é se desafiar, desafiar o outro, desafiar a arte, desafiar a cidade. ARTE À MÃO ARMADA.
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[1] “Gigantesca cartilha da artista no mundo moderno” foi uma expressão usada por Flávio Motta (1923-2016) no primeiro texto sobre a obra de Carmela Gross, feito para acompanhar a exposição no Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo. Escrito em 1977, o texto que parece prever o desenvolvimento da obra da artista nos 40 anos seguintes. Flávio foi tão perspicaz e sensível em seu texto que me pareceu impossível não homenageá-lo aqui. A ideia de cartilha guiou a construção deste texto. Vale lembrar que a definição primeira de cartilha é livro para ensinar a ler. MOTTA, Flávio. “É o B-A-BÁ”. In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Artes Gráficas, 1977.
[2] ZANINI, Walter. Vetor B: pintura e desenho. In: Artistas do Brasil na XVI Bienal. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1981, p. 32-33.
[3] Apresentar A NEGRA como escultura parecia uma contradição na proposta curatorial. A escultura estaria presente, mas a dimensão de intervenção na paisagem da cidade e interação com o público não seria possível por questões museológicas. Optou-se então em apresentar na Chácara Lane os registros fotográficos e desenhos preparatórios da obra.
[4] FECHE A PORTA foi idealizada como instalação de dezoito peças para uma individual de Carmela Gross no Centro Cultural São Paulo em 1997, onde ocuparam a sala Tarsila do Amaral. Na Chácara Lane optou-se por expor duas peças, ocupando uma sala simétrica, uma de frente para a outra.
[5] A obra PENSAS, ACHAS, PODE, GOSTO pertence à Coleção de Arte da Cidade de São Paulo, e ingressou na coleção por doação da artista em 2001.
[6] Para a exposição na Chácara Lane foram programadas duas montagens distintas para ressaltar a mobilidade intrínseca ao trabalho. De tempos em tempos a obra era remontada em uma configuração diferente.
[7] BELLUZZO, Ana Maria. Carmela Gross. In: Artistas brasileiros na 20ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1989, p. 59.
[8] A obra foi concebida para a exposição “Matéria-prima”, que aconteceu em 2002, no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, Paraná.
[9] ESCUTA ganhou nova versão para a Chácara Lane; a sala da casa que servia de depósito, e ficaria fechada à visitação do público, foi aberta e incorporada à exposição, porém revestida de papel kraft. Muda-se o lugar, mas se mantém a estratégia de visibilidade/ocultamento.
[10] A instalação Sem título realizada em 1992 para a Capela do Morumbi pertence à coleção do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
[11] MAMMÌ, Lorenzo. Instantes e movimentos: Carmela Gross e Iole de Freitas. Revista Estudos Avançados. São Paulo: IEB/USP, vol. 16, nº 44, 2006.
[12] US CARA FUGIU CORRENDO foi concebida para o Projeto Parede do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Como pressuposto do projeto, a obra responde ao espaço do corredor do museu. Na Chácara Lane, a obra responde à arquitetura desenhada por Marta Bogéa, dobra-se para se encaixar na sala.
[13] O projeto de intervenções no caixa eletrônico da Praça Clementino Procópio era chamado de Galeria Cilindro, e foi criado pelo artista Júlio Leite. Funcionou entre 2004 e 2009, e recebeu intervenções de Guto Lacaz, Gil Vicente, Regina Silveira, Vânia Mignone, Paulo Bruscky, Nuno Ramos, Rodrigo Braga, André Komatsu, entre outros artistas.
[14] Se ARTE À MÃO ARMADA era intervenção que assaltava o caixa eletrônico em Campina Grande, na Chácara Lane a obra era arma distribuída para assaltar o mundo. Uma versão em lambe-lambe foi impressa com tiragem de 4.000 unidades e deixada na exposição para o público levar e usar.
[15] EU SOU DOLORES foi concebida para o projeto Arte/Cidade – Zona Leste em 2002, e foi refeita para a exposição da Chácara Lane.
[16] DUARTE, Paulo Sergio. Três passagens em torno de uma instalação. In: Carmela Gross. São Paulo: Gabinete de Arte Raquel Arnaud, 2003.
[17] MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011, p.91.
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Publicado em:
Carmela Gross: Arte à mão armada. Textos de Douglas de Freitas e Carmela Gross. São Paulo: Museu de Arte da Cidade – Chácara Lane, 2017 / Rio de Janeiro: Endora Arte Produções, 2017. Catálogo de exposição.
La obra de Carmela Gross (San Pablo, Brasil, 1946) se puede pensar como una constante exploración del repertorio visual y vivencial de la ciudad. Fuertemente enraizada en la experiencia urbana y en el paisaje de San Pablo, su ciudad natal, la producción artística de Gross incorpora el uso de varios medios –dibujo, gráfica, escultura e instalación– articulando un cuerpo de obra para el cual el entorno urbano parece no agotarse. Pertenece a una generación de artistas que comienza a trabajar a finales de la década de 1960 e inicios de los setenta, un momento álgido en cuanto al clima político y social en varios países del sur debido a las dictaduras militares. Mientras que en el arte cuestiones como la desmaterialización del objeto de arte, el desvanecimiento de las fronteras entre géneros tradicionales y la incorporación de elementos de la vida cotidiana marcaban los procesos de creación, y el surgimiento de categorías como arte pop, arte conceptual, performance o happenings en los contextos norteamericano y europeo tienen resonancias en estas latitudes. Los artistas claramente voltean la mirada hacia afuera del ámbito museístico y de los circuitos del sistema del arte, lo que lleva a muchos a la calle y a considerar su práctica desde otra posición: la del ámbito de lo público.
La Carga es la primera muestra de esta artista en México y reúne un conjunto de cuatro piezas que pone de manifiesto el impulso escultórico de Gross ligado a la ciudad y al cuerpo: A CARGA, ESCADA, ambas de 1968; así como CUBA e ÍTACA del 2011, éstas últimas de la serie ILHAS. Esta constelación de obras busca activar una serie de operaciones escultóricas y conceptuales en este sitio por vía del emplazamiento en El Eco de A CARGA (LA CARGA): una escultura de gran formato que se nos presenta como un volumen geométrico constituido por una tela cuya materialidad desdibuja los contornos de este volumen complicando una identificación certera del todo. Se trata de una lona de camión de carga que si bien proviene de la vida cotidiana y que como tal tiene una función muy particular: la de cubrir las cajas de trailers y camiones para proteger de las inclemencias del tiempo la mercancía o lo que sea que esté siendo transportado, aquí se convierte en una piel que recubre la forma que la sustenta.
El año en que Gross realiza A CARGA (1968) es un año convulso políticamente en Brasil y en otras partes del mundo; cuatro años después de iniciada la dictadura en este país con el golpe militar de 1964. La censura y la represión del régimen militar provocan revueltas estudiantiles y de otros sectores de la sociedad que en 1968 se extienden por todo el país, resultando en el encarcelamiento de presos políticos y desaparecidos. El 13 de diciembre de ese mismo año el gobierno decreta el Ato Institucional No.5 (AI-5) que da plenos poderes al presidente y suspende los derechos y garantías constitucionales. A CARGA se presenta en 1969 en la Sala Especial de Nuevos Valores de la X Bienal de São Paulo junto con otras obras que en opinión de la crítica Ana Maria Belluzo revelan un interés en la presentación de construcciones “desestetizadas” que operan como índices de la vida urbana y suburbana subvirtiendo el ámbito artístico mediante el uso de materiales precarios traídos de la cultura urbana. A CARGA contiene al menos dos registros de memoria, aquella de los recorridos y desplazamientos de esta tela (incluyendo su traslado a la Ciudad de México), y la memoria histórica que se entrecruza con la mirada que intenta desvelar eso que se oculta, que parece silenciarse pero que en realidad grita; el ocultamiento como algo que visibiliza contornos de subjetividades individuales y compartidas.
ESCADA (ESCALERA) es una fotografía que documenta una intervención realizada por la artista en un acantilado de una zona periférica de San Pablo. Tremendamente vertical a diferencia del DF, esta ciudad pareciera delinear otra idea de horizonte. La línea negra trazada por Gross en el paisaje urbano amplía la escala y acción del pensamiento gráfico y escultórico mediante este gesto simple que apunta hacia la distribución de espacios y roles en la esfera de lo público. CUBA e ÍTACA por su parte, son dos esculturas en las que se hace más evidente la importancia que el dibujo tiene en la obra de Gross. El dibujo es el impulso originario de los proyectos y la matriz generadora de ideas que en ocasiones de cristalizan en otros medios. Estas islas marcan un territorio autónomo dentro del espacio de exhibición mediante la tensión y elasticidad del material de hule con el que están construidas.
Los flujos estridentes y fugaces de los recorridos citadinos están presentes en la obra de Gross de forma decantada, asimilada podríamos decir. De tal modo que más que ser un comentario sobre la realidad circundante, o bien utilizar la ciudad como tema, su obra está atravesada por el lenguaje visual abigarrado y estimulante de una urbe como San Pablo. Ella habla de este atravesamiento; parafraseando algo que la escuché decir: es la ciudad que se hace, que se forma en uno y que posibilita que uno se piense desde la construcción individual, desde la propia subjetividad atravesada por esta experiencia. Existe en su obra una relación emocional con la ciudad que confronta al espectador de forma poética y contundente, una proximidad con la urbe y con los materiales que es cruda y sensual a la vez. Un cuerpo contra otro. Queda así en nosotros activar y elaborar todo lo que en las formas está aquí: en este sitio –en su sentido más amplio– y en este momento por el que atraviesa nuestro país.
Publicado em / Published in:
Carmela Gross: La Carga. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2012. Folder de exposição / exhibition folder.
Disponível em: <http://eleco.unam.mx/eleco/exposicion/la-carga/>. Último acesso em: 1 ago. 2017.
TRAÇADOS
Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão…[1]
É a lona de caminhão, a tenda, o abrigo, a carga, o canteiro de obras. Não só recolher fragmentos formais dessas situações, mas fazer com que o próprio objeto fosse construído com esses elementos da rua. Lembro-me de quando fui procurar uma firma que pudesse executar meus objetos de lona. A mesma lona com que se cobrem caminhões de carga ou que os trabalhadores usam para construir seus abrigos temporários nos consertos das ruas. Foi perto do gasômetro. Entrei num grande galpão de estruturas de madeira e piso de terra batida. Era uma oficina de costura. Algumas máquinas antigas e não mais que cinco homens confeccionavam uma lona de circo. Entusiasmada comecei a descrever o que seria então o PRESUNTO (1968): costura, cortes, dimensões…[2]
A cidade pulsa nos trabalhos de Carmela Gross. Uma presença que está engendrada nas obras, não exatamente em suas formas, mas perpassando sua materialidade e produção, e na sempre criteriosa e precisa implantação dos trabalhos no espaço.
De certo modo, há um saber sobre a cidade que emerge dos trabalhos. Sem didatismo ou citação. De onde vem essa presença não evidente da natureza que habita as cidades?
…Os letreiros a te colorir / Embaraçam a minha visão…
EU SOU DOLORES (2002) se inscreve entre a pele da arquitetura e da cidade. Atravessa o vão, onde antes se instalava uma janela, deixando o “eu” da obra sobre o abismo da rua. Entrevisto por fora, o trabalho se insinua adentrando o edifício sem se limitar à sua escala interior. É objeto exterior, carrega a escala de um letreiro de fachada, mas se põe entre fora e dentro, tensionando e alterando tanto a leitura do edifício como o campo estanque em relação à cidade, transbordando a experiência do interior da sala através do vão que devolve a cidade. Dentro “sou dolores” é antes de tudo um campo de luz, tinge de vermelho a sala com uma espécie de luz matérica. Conector, “ponte” que define a presença das margens – cidade/ edifício – ao se instalar.
Edifício e cidade como um só campo espacial, borda ocupada que aponta para seus extremos, trânsito entre os sentidos de um dentro/fora que redefinem a experiência. Revela uma significativa liberdade com a experiência dos espaços, sejam urbanos, da cidade, sejam espaços interiores, abrigados pela opacidade dos espaços edificados. Reencantados aqui pelos domínios da luz.
EU SOU DOLORES é a luz vermelha que transcreve as terras baixas da enorme cidade no edifíicio ancorado no Belenzinho.
Traço de união, ou quem sabe, disjunção entre o pessoal e o plural, o de dentro travestido no de fora, o menor no maior possível.
Letras-vagões feitas de metal e solda, vidro e gás incandescente, enfileiradas como um trem de 24 metros, que invade a sala fazendo estourar as paredes.
Corpo presente, ser de luz, horizonte concreto de paralelas rasantes, íngrimes. Exterioridade interna que se projeta minúscula nos olhos vermelhos de quem por aí passar.[3]
EU SOU DOLORES faz parte de um grupo de trabalhos com outros nomes de mulheres, em letras luminosas, que se inserem inesperadamente em espaços interiores.
DOLORES (2002), AURORA (2003), LUZIA (2004)… mulheres feitas da matéria luz carregadas de intensidade cromática, rosa, vermelho, verde… Anúncio de seus humores? Estável, ordenada, oscilante, fixadas cada qual com um suporte que singulariza delicadamente suas estruturas. Luzia surge cambaleante a partir de fios que sustentam sua luz verde; Dolores, rigorosamente ordenada pela treliça metálica, estruturada em vermelho intenso; Aurora é quase um manuscrito, delineado em suscessivos traços movediços que amparam o fugidio nome em cor-de-rosa.
São letreiros subjetivados pela presença feminina em nomes tão próprios, instalados no interior do espaço. Janelas das quais se pode reconhecer, tão fora de escala, suas presenças cromáticas a transbordar para a cidade.
O código comum de textos luminosos que endereçam os edifícios na cidade e permitem reconhecer usos, aqui, torna-se subjetividade. Reposiciona-se, borrando a fronteira do espaço exterior/interior, objetivo/subjetivo.
A palavra construindo campos de luz foi muitas vezes matéria para Carmela. Um de seus surpreendentes espaços US CARA FUGIU CORRENDO (2000-2001), neon que transcreve um grafite de rua na parede do museu (Museu de Arte Moderna, São Paulo), tinge de vermelho cor e luz fazendo vibrar o corredor passagem como campo íntegro, subvertendo o nome próprio do Projeto (“Projeto Parede”).
Carmela vive espaços e nesse sentido coerentemente os preenche na sua plenitude volumétrica. Um preenchimento não apenas matérico, feito não por quem os contempla bidimensionalmente, mas os ocupa.
No MAM, a frase pichada transformada em neon, carregada para o interior/passagem de um museu, ganha outro contorno, outra força, deslocada da origem, nem mais pichação, nem mais neons, dois códigos urbanos bastante desgastados surgem aqui embaralhados, e trazem, de quebra, a rua para dentro do espaço museográfico.
Há outros, como a instalação SUL (2006), posicionada no teto do espaço: fios pendurados construindo um campo entre o céu e o chão do lugar no qual se encontram os reatores das lâmpadas. Deixados propositalmente à mostra, mas criteriosamente ordenados.
E, talvez um dos mais ardilosos, HOTEL, que ocupou a fachada do Pavilhão da Bienal, em 2002 (25ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo).[4] Construído com uma estrutura de 3 metros por 3,5 metros e lâmpadas fluorescentes, HOTEL ocorre como letreiro. Todavia, em vez de “informar”, desloca o sentido e o uso do espaço. Opera na brecha de um “desendereçamento”: não seria aqui a locação de espaços uma forte questão? A obra desloca o nome em relação ao uso oficial do espaço, embaralha os sentidos, atuando a partir de uma materialidade arquitetônica e urbana recorrente que, em geral,
endereça lugares.
Ação tão pertinente quanto improvável no uso dos códigos urbanos. Demonstra uma intimidade que vai além da simples observação das cidades. A pista surge nas conversas com Carmela, na esteira de suas andanças que mapeiam uma certa São Paulo.
Aqui uma significativa constatação: a cidade que Carmela habita é uma cidade experienciada. Cartografada pela busca de seus variados artífices. A cada material distinto, a cada forma de fazer, a artista procura parceiros específicos. É assim que nasce sua intimidade com a cidade, uma cidade vivida e não idealizada, uma cidade que se inscreve a partir do ofício, na procura dos parceiros, nos endereços inusitados, nas lógicas tão singulares que vão da loja de tules à fundição de alumínio. Surgem assim endereços tão naturais quanto improváveis: Neon Tochi, em Guarulhos; Fundição Marieta de Alumínio, em Osasco; Lonas, no Parque Novo Mundo…
Na procura dos artífices de cada matéria, Carmela constrói uma cartografia do desejo do trabalho, mapeia a cidade. Aprende com a cidade sua estranha lógica, para reinaugurar com uma lógica tão singular uma outra cidade.
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No Zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde repensava as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento.[5]
A cidade ocupada por Carmela é, de certo modo, uma cidade benjaminiana, experienciada, e sua intimidade com ela se dá imbricada em uma cartografia inscrita pelas deambulações ocorridas na esteira do desejo e das lógicas dos trabalhos.
MOVIMENTOS
…Tua sombra a se multiplicar…
As obras de Carmela se constituem a partir de uma variedade significativa de materiais. Seu canteiro de obras é rico, partilha convívios e práticas, aprende no fazer do outro e subverte as lógicas sem impor uma matéria inédita, pois o ineditismo está na maneira de organizar o que existe. Não precisa inventar uma lâmpada, usa a que existe, acata suas limitações e com surpreendente liberdade constitui a diferença a partir do dado real.
Ela sabe, como poucos, usufruir do saber do outro sem dissolvê-lo em um princípio de autoria ensimesmada. Constrói com o outro, articulando seu domínio ao de quem domina a matéria que a atrai, constituindo possibilidades não previstas e, nesta medida, reinforma o mundo por uma poética resultante através das práticas que tangencia. Nesse sentido, lembra muito Lina Bo Bardi, arquiteta para quem o fazer era parte constitutiva da descoberta da alteridade que a encantava e de que partilhava, sendo um dos exemplos mais emblemáticos e conhecidos o SESC Pompeia.[6]
Não persegue o desenho de autor, reconhece no desenho o gesto de origem que significativamente transformado resultará no trabalho. Os BURACOS (1994), por exemplo, resultam da ampliação sucessiva de um primeiro desenho, feito à mão em ordinária caneta BIC, no momento de uma reunião acerca da implantação do projeto. Uma sucessão de ampliações e a definição das dimensões estabelecem o desenho final a ser escavado.
Há aqui uma bela contradição, a artista de uma rigorosa precisão acata a imprecisão inevitável do mundo. Reconhece que a feitura dos buracos levará inevitavelmente, pela natureza artesanal desta escavação, à adulteração da geometria indicada.
Sem fazer disto uma bandeira, os modos de fazer são, talvez, seu traço mais recorrente. Muda a matéria, mudam os parceiros, mudam as escalas, mantêm-se as formas de enfrentar o mundo e de reinventá-lo. Os elementos já estão lá mas, ao redefinir suas possibilidades, reinventa a forma de olhar. Um olhar que serenamente reconhece a variedade do mundo sem buscar aplainá-lo em idealizações.
…Na galeria, cada clarão / É como um dia depois de outro dia / Abrindo um salão…
CORPO DE IDEIAS[7] (1981) resulta da sobreposição de xerox em papel vegetal das páginas de uma enciclopédia visual reproduzidas em cópia heliográfica. Espessa tessitura de imagens que redefine outros registros.
Resgata do espaço ordinário um campo extraordinário. Reconhece beleza e poesia em pequenas coisas cotidianas. Às vezes em registros técnicos, que ordenam o mundo sem registrar seu encanto.
Carmela, reencanta o mundo a partir dos registros e recorrências, transformando-os por uma singular poética que os fazem se transformar.
É capaz, por exemplo, de propor um PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (1980-1981), série de 33 desenhos, a lápis e nanquim, constituídos a partir do código dos desenhos técnicos de arquitetura e astronomia. Esse céu projetado, tanto possível porque aderido ao real, quanto improvável porque impossível (será mesmo?), guarda um dos mais doces encantos, aquilo que tem de humano na desconcertante potência de acreditar poder construir. E, quando na esteira do sonho, a fulgurante beleza que há em, de fato, poder construir, como estes paradoxalmente potentes e delicados mundos construídos.
Carmela constrói mundos, porque os habita.
Para mim, só é possível “pensar arte” como máquina social e urbana, que se produz nesse meio e a ele se destina, em suas trocas ativas e múltiplas; daí meu interesse maior pelas cidades de fronteira, do que pela geografia, uma vez que o trabalho a ser realizado deverá “pertencer” à fronteira em questão.
Não consigo “pensar arte à distância”; preciso da experiência concreta, direta, corporal, visual, com o espaço que “receberá” a obra, ou “se transformará” na obra suas vizinhanças, entornos, sombras, que serão componentes indissociáveis dela.[8]
FRONTEIRA, FONTE, FOZ (2001), trabalho para uma praça na cidade de Laguna, em Santa Catarina, é um dos projetos urbanos de Carmela. Constrói no pavimento em mosaico português uma sombra, um vestígio de homem em linhas circulares. No corpo a corpo com o pedestre apenas uma vibração de ondas, na visão aérea das sacadas vizinhas, o vulto se anuncia. Dois tempos de uma imagem que, antes de tudo, retoma um certo modo de fazer tão peculiar aos nossos passeios públicos, pavimento recorrente nas nossas cidades reinventado por Burle Marx, no que veio a se tornar uma significativa referência em nosso imaginário urbano: o calçadão de Copacabana, lugar de idas e vindas, território de alegres deambulações à beira-mar.
A praça de Laguna sintetiza esse poderoso imaginário articulado a outro, dos corpos, da subjetividade, dos vultos das artes plásticas (O grito de Munch?), da vibração das respirações.
O mundo proposto por Carmela aparece assim, geometricamente preciso, ardilosamente fugidio e subjetivo, encantadoramente humano. Guarda a sofisticação adensada de tantos circuitos simbólicos e eruditos estrategicamente aderido ao que ordinariamente se encontra colado na pele/experiência de qualquer um.
E desse improvável mundo proposto por ela será possível emergir das mãos de uma bordadeira um delicado traçado em tons variáveis de vermelho do mapa da rede hídrica registrado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber. Fios d’água a redefinir possibilidades.[9]
…Catando a poesia / Que entornas no chão…
Pelo reconhecimento da alteridade, Carmela põe o mundo em movimento. E o movimento em Carmela surge como uma dança.
Seja na forma como, a partir da materialidade das obras, propõe o movimento do corpo, como em EM VÃO (1999), no qual é preciso bordejar o espaço, ou nas HÉLICES (H1, H6, MAX, todas de 1993), onde o gesto explicitado é necessário para ativar a obra.
Mas talvez o movimento mais intrigante seja aquele no qual ela delicadamente põe em deslocamento as coisas.
E é a matéria quem dança no espaço. ILHAS (1995), EM VÃO, ALAGADOS (2000) e FRONTEIRA, FONTE, FOZ guardam entre si a semelhança de um gesto que reconhece um território e o redefine. Nas dobradiças de ALAGADOS, no elástico de ILHAS e EM VÃO, no mosaico de FRONTEIRA, FONTE, FOZ surgem rastros de territórios, memória de experiência de espaço, alguns deles transformados no espaço mesmo. Alguns deles a exigir corpos que deambulam para compreender o traçado da obra.
Ou desestabiliza o espaço por uma suave perturbação, como em EXPANSIVO (1988), no qual um campo fugidio de espelhos faz “retrair” a parede imóvel. Distingue-se das outras ocupações da mesma natureza pois faz a matéria retrair o espaço, estilhaços que fazem vibrar o plano inicialmente estável.
Nesse sentido, aproxima-se do HOTEL BALSA (2003). Espécie de tablado sobre o qual o visitante é convidado a se instalar, e que percorre o espaço em lento movimento ladeado por um plano de luz e outro de espelho, no qual está escrito hotel. Jogo de reflexos, luzes, movimentos. Suave movimento que dissolve as certezas do mundo.
Mas é em A NEGRA (1997) que Carmela faz da cidade um salão e a dança, de fato, se anuncia enquanto “a negra” espera alguém que a tire para dançar na Paulista.
Da cidade cartografada vemos então surgir traçados tão improváveis quanto delicadamente (im)possíveis a serem apreendidos num campo simultaneamente expansivo e subjetivo que Carmela nos convida a também habitar.
*
[1] A música As Vitrines, de Chico Buarque, surge em uma das conversas com Carmela, em seu ateliê, durante o manuseio dos projetos, em um texto de aula dada por ela, encontrado entre os papéis da obra A NEGRA (1997). A letra na íntegra: “Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão/ Dá tua mão/ Olha pra mim/ Não faz assim/ Não vai lá não/ Os letreiros a te colorir/ Embaraçam a minha visão/ Eu te vi suspirar de aflição/ E sair da sessão, frouxa de rir/ Já te vejo brincando, gostando de ser/ Tua sombra a se multiplicar/ Nos teus olhos também posso ver/ As vitrines te vendo passar/ Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão/ Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ Catando a poesia/ Que entornas no chão”.
[2] Carmela GROSS – 5 Depoimentos ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira, São Paulo, 22/2/1978.
[3] Carmela GROSS – Projeto para Eu sou Dolores, junho de 1999, inédito.
[4] HOTEL, 2002.
[5] Walter BENJAMIN – “Fragmento” (1932), apud Willi BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna, EDUSP, São Paulo, 1994, p. 313.
[6] Ver: Marcelo Carvalho FERRAZ – Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1996 e vídeo documentário dirigido por Aurélio Michilis Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1993.
[7] Em Corpo de ideias, a operação é de reconhecimento, a partir da descoberta da enciclopédia como matriz, e de sobreposição.
[8] Carmela GROSS, 1999, inédito.
[9] Vale registrar uma pequena história contada por Carmela acerca desta obra: a sua definição se deu pelo bordado, pela escolha de seu traçado, do ponto e da cor – vermelho – sendo que a posição de cada tom foi definido pela bordadeira. Confirma-se assim a serenidade com que Carmela estrutura seu trabalho, acatando a presença bem-vinda do gesto do artesão com quem partilha a feitura da obra.
Publicado em:
Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
OUTLINES
I see you wandering around[1] / I told you the city was void…[2]
It is a truck canvas cover, a tent, a shelter, a load, a construction site. It is not just about picking up formal fragments from those situations, but to make the object itself in a way that it is constructed with these elements from the streets. I remember when I was looking for a company that would be able to execute my canvas objects. The same canvas they use to cover truck loads or that workers use to build their temporary shelters when they are fixing the pavement on a street. It was near the gasometer. I entered a large shed with a wooden frame and dirt floor. It was a sewing workshop. Some old machines and no more than five men putting together a circus canvas. Excited, I started to describe, then, what PRESUNTO[3] (1968) would be: sewing, cuts, dimensions…[4]
The city throbs in Carmela Gross’s works. It is a presence hatched into her works, not exactly in their forms, but brushing their materiality and their production, and her always well-judged and precise implementation of works in their spaces.
In a way, there is a wisdom about the city emerging from her works. Without didacticism or quotations. Where does this non-evident nature presence that inhabits cities come from?
… Street signs make you colorful / And blur my view…
EU SOU DOLORES (I AM DOLORES, 2002) inserts itself between the architecture and the city’s skin. It crosses the opening where a window stood previously, leaving the work’s “I” on the street abyss. Glanced from outside, the work insinuates itself entering the building without limiting itself to its interior scale. It is an exterior object, it carries the same scale as a façade lettering sign, however, it presents itself both outside and inside, straining and altering both the reading of the building and that of the impervious field in regards to the city, overflowing the experience of the interior of the room through the opening that brings the city back. Inside, “AM DOLORES” is, primarily, a light field tinting the room in red with a kind of material light. A connector, a “bridge” defining the presence of margins – city/building – when installed.
Building and city as one sole spatial field, an occupied brim pointing to its ends. A transit between the senses of some inside/outside that will redefine this experience. It reveals some important freedom regarding the experiences of spaces – whether they are urban, of the city, or interior, sheltered by the opacity of spaces that are built. Here, they are re-enchanted by the domains of light.
EU SOU DOLORES is a red light transcribing the lowlands of the huge city in a building anchored at Belenzinho district.
A line of union, or, who knows, of disjunction between what is private and what is plural, what is inside disguised as what is outside, the smaller as the largest.
Wagon-letters made of metal and weld, glass and incandescent gas, one behind the other as if in a twenty-four-meter-long train, which invades the room and explodes the walls.
An actual body, a being of light, a concrete horizon of sweeping parallels, steep.
An internal exteriority projecting itself as tiny into the red eyes of those who
pass by.[5]
EU SOU DOLORES is part of a group of works bearing other women’s names, in luminous letters, unexpectedly inserted into interior spaces.
DOLORES (2002), AURORA (2003), LUZIA (2004) …women made of light matter with chromatic intensity, pink, red, green… An announcement of their moods? Stable, ordered, oscillating, each one of them fixed through supports that delicately make each one of their structures unique. LUZIA emerges staggering from wires that uphold her green light; Dolores, rigidly ordered by her metallic lattice-work, structured in intense red; Aurora is almost a manuscript, outlined in successive movable lines that hold up her fleeting pink name.
These letterings become subjective through a feminine presence in names that are so unique, installed within the space. They are windows through which we can recognize, so strongly, so out of scale, their chromatic presences overflowing to the city.
The common code of luminous texts that mark the addresses of buildings in the city and allow us to identify their uses, here, becomes subjectivity. It repositions itself, blurring the boundaries of external/internal, objective/subjective space.
Words that construct light fields were used as matter by Carmela many times. One of her surprising spaces, US CARA FUGIU CORRENDO (the guys escaped by running – written in bad Portuguese, 2000-2001), a neon light transcribing a street graffiti onto the wall of a museum (MAM – Museu de Arte Moderna, São Paulo), has red color and light that makes the hallway vibrate as an integral field, thus subverting the Project’s title, “Projeto Parede” (“Wall Project”).
Carmela lives spaces and, in this sense, she coherently fills them in their full volumes. Her fillings do not regard matter only, they are not made by someone who contemplate them in a bidimensional manner, but who occupy them.
At MAM, a graffiti phrase becomes neon, transported to the interior/hallway of a museum, acquiring a new outline, a new power, dislodged from its origins, not graffiti nor neon any longer, two very orn out urban codes emerge entangled here, and bring, as a bonus, the street into the museum space.
There are others, such as her SUL (SOUTH, 2006) installation, positioned under the ceiling of the space: hanging wires building a field between the sky and the ground of the place where the reactor of the bulbs are. They are purposefully shown; however, they are rigorously ordered.
And, maybe one of her most tricky, HOTEL, which occupied the façade of Pavilhão da Bienal, in 2002 (25th Bienal Internacional de Arte de São Paulo).[6] Built with a frame measuring 3 meters by 3.5 meters and fluorescent bulbs, HOTEL happens as lettering. However, instead of “informing”, it dislocates the meaning and usage of space. It operates on a void of a kind of “de-addressing”: isn’t it true that renting space is a strong issue here? The work dislocates the name in regards to an official use of space, entangles senses, acting from a recurring architectonic urban material character that usually gives addresses to places.
An action as pertinent as improbable in using urban codes. It shows such intimacy that goes beyond a mere observation of cities. Traces appear in discussions with Carmela, on the wake of her wanderings that map a specific São Paulo.
Here, there is an important realization: the city Carmela inhabits is an experimented city. Mapped through her quest for its various artifices. In each different material, in each manner of doing something, her art seeks specific contributors. This is how her intimacy with the city emerges, a city that is lived, not idealized; a city inscribed through professional work, by seeking contributors, on unexpected addresses, on unique logical instances that go from a tulle store to an aluminum foundry. In this way, addresses that are at once natural and improbable emerge: Neon Tochi, in Guarulhos town; Fundição Marieta de Alumínio, in Osasco town; Lonas, at Parque Novo Mundo district…
By seeking artifices of each material, Carmela builds a map of work desires; she maps the city. She learns with the city and its strange logic, in order to find once again, with the same unique logic, another city.
When I am old, I would like to have on my home’s hallway
A map of Berlin
With a legend
Blue dots would mark streets where I used to live
Yellow dots, the places where my girlfriends used to live
Brown triangles, the graves
On Berlin cemeteries where those who were close to me are laid to rest
And black lines would retrace the paths
At the Zoo or at Tiergarten
Which I walked while talking to girls
And multicolored arrows would point to the places on the outskirts
Where I used to rethink my weeks in Berlin
And many red squares would mark the rooms
Of love of the lowest kind or of love that is the most sheltered from the wind.[7]
The city Carmela occupies is, in a way, a Benjaminian city, experimented, and her intimacy with it is juxtaposed in a map created by wanderings occurring on the wake of her desires and the logic of her works.
MOVEMENTS
…Your own shadow multiplying itself…
Carmela’s works are constituted from a significant variety of materials. Her construction site is rich, it shares conviviality and practice, it learns how others work and subverts logic without imposing any unheard-of materials, as novelty is in the way of organizing what is already there. You do not need to invent the bulb, you just use what is already there, accepting their limitations and, with surprising freedom, constituting differences departing from real data.
She knows, as few do, how to take advantage of other people’s knowledge without dissolving it into a principle of self-centered authorship. She builds with others, articulating her domain to that of someone that dominates a material that attracts her, thus constituting unpredicted possibilities and, in this measure, re-informing the world through poetics resulting from practices she barely touches. In this sense, she is quite similar to Lina Bo Bardi, an architect for whom the act of making was part of discovering an otherness that charmed her and that she shared – one of the most well-known and emblematic examples of this is the project of SESC Pompeia.[8]
She does not seek an author’s drawing, she recognizes in the drawing an original gesture that will result in the work when significantly transformed. BURACOS (HOLES, 1994), for instance, result from successive enlargements of a first drawing, made by hand, with an ordinary BIC ballpoint pen, during a meeting about the work’s implementation. Successive enlargements and the definition of dimensions established the final drawing to be dug up.
Here, we have quite a contradiction: an artist with rigorous precision accepting the unavoidable imprecision of the world. She admits that her making of the holes will lead inevitably, due to the handmade character of this digging, to an adulteration of its indicated geometry.
Without turning it into a banner, her way of doing it is probably her most recurrent character. Materials change, contributors change, scales change; ways of facing the world and reinvent it are kept. The elements are there; however, when possibilities are redefined, the look is reinvented. This look recognizes, with serenity, that the world is varied and it does not try to raze it down with idealizations.
… On the gallery, each flash / Is a like a day after another day / Opening a great room…
CORPO DE IDEIAS[9] (BODY OF IDEAS, 1981) results from juxtaposition of Xerox copies on vegetable paper of a visual encyclopedia pages reproduced by heliographic copy. A thick fabric of images redefining other records.
Recovering of an extraordinary field from an ordinary space. Recognizing beauty and poetry in small daily things. Sometimes in technical records that organize the world without recording its charms.
Carmela, re-enchanting the world through records and recurrences, transform them through her unique poetics that cause them to transform themselves.
She is capable, for instance, of proposing her PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (PROJECT FOR THE CONSTRUCTION OF A SKY, 1980-1981), a series with thirty three pencil and black ink drawings, constructed from the code of technical architecture and astronomy drawings. That projected sky, both possible because it is linked to reality and improbable because it is impossible (but is it really?), has in itself one of the sweetest charms, the human character in a disconcerting power of believing that you are capable of building something. And, when in the wake of a dream, the brilliant beauty that exists in actually being able to build, as in these paradoxically powerful and delicate worlds that are built.
Carmela constructs worlds, because she inhabits them.
For me, it is only possible to “think art” as social and urban machine, which is produced in this environment and that is destined to it, in its active multiple exchanges; this is why I am more interested in frontier cities than in geography, since the work to be accomplished must “belong” to said frontier.
I cannot “think art from afar;” I need to have a concrete, direct, bodily, visual experience with the space that will “receive” the work, or that will “become” the work – its neighborhoods, surroundings, shadows, which will be inseparable components of it.[10]
FRONTEIRA, FONTE, FOZ (FRONTIER, FOUNTAIN, RIVER MOUTH, 2001), a work for a square at Laguna town, in Santa Catarina state, is one among Carmela’s urban projects. She builds on the pavement, in Portuguese mosaic, a shadow, a vestige of a man in round outlines. In the bodily rapport with the passers-by, there is only a vibe, on the aerial view from neighboring balconies, the shadowy form makes itself known. Two moments of the same image that, before everything else, recover a certain way of doing things that is so particular to our public walks, a recurring pavement in our cities, reinvented by Burle Marx, in what eventually became an important reference in our urban imaginary: the walk at Copacabana, a place where people come and go, a territory of joyful wanderings by the sea.
The square at Laguna sums up this powerful imaginary by articulating itself to another one, that of bodies, of subjectivity, of fine arts shadowy forms (Munch’s The scream?), of the vibrations of breaths.
The world Carmela proposes appears thus, geometrically precise, deceitfully fleeting and subjective, charmingly human. It maintains a dense sophistication of so many symbolic and cultured circuits, strategically attached to what you would ordinarily find attached to the skin/ experience of anyone.
And from this improbable world proposed by her it will be possible that a delicate sketch of a map of a river net recorded by geographer Aziz Ab’Saber in variable shades of red will emerge from the hands of a embroiderer woman. Water threads redefining possibilities.[11]
…Picking up the poetry / You pour out on the floor…
Through the realization of otherness, Carmela puts the world in movement. And movement in Carmela emerges as dance.
It can be in the way in which, departing form the materiality of her works, she proposes body movements, such as in EM VÃO (IN VAIN, 1999), in which it is necessary to brush the brim of the space, or in HÉLICES (PROPELLERS, H1, H6, MAX, all from 1993), where an explicit gesture is needed to activate the work.
But her most intriguing movement probably is that in which she gently dislodges things.
And whoever dances in that space is matter. ILHAS (ISLANDS, 1995), EM VÃO, ALAGADOS (FLOODED SPACES, 2000), and FRONTEIRA, FONTE, FOZ retain among themselves similarities of a gesture that recognizes and redefines a certain territory. On the hinges of ALAGADOS, on the elastic of ILHAS and of EM VÃO, and on the mosaic of FRONTEIRA, FONTE, FOZ emerge traces of territories, memories of space experiment, some of them transformed into the space itself. Some of them require wandering bodies in order to understand the outlines of the work.
Or it de-stabilizes the space through a subtle agitation, such as in EXPANSIVO (EXPANSIVE, 1988), in which a fleeting mirror field causes a fixed wall to “retract”. It is different from other occupations of the same nature because it causes matter to retract space, splinters that cause vibrations to an initially stable plan.
In this sense, it is closer to HOTEL BALSA (FERRRY HOTEL, 2003) – a kind of cart where visitors are invited to install themselves in order to go through the space in a slow movement, between light and mirror plans, on which you read “hotel”. A play of reflexes, lights, movements. A gentle movement that dissolves everything that is certain in this world.
However, it is in A NEGRA (THE BLACK WOMAN, 1997) that Carmela transforms the city into a great room and the dance, actually announces itself while “the negress” waits for someone to ask her to dance at Paulista Avenue.
From her mapped city we see paths both improbable and delicately (im)possible emerging; they must be apprehended in a field simultaneously expansive and subjective that Carmela invites us to inhabit also.
*
[1] Chico Buarque’s song As Vitrines (Shop Windows), is cited during a discussion with Carmela, at her studio, during her projects handling, in a class text she handed out, found among documents referring to her work A NEGRA (THE BLACK WOMAN, 1997). The full lyrics say: “I see you wandering around / I told you the city was void / Give me your hand / Look at me / Don’t do that / Don’t go there / Street signs make you colorful / And blur my view / I saw you sigh in angst / And leave the session, laughing out loud / I can see you playing, enjoying being / Your own shadow multiplying itself / In your eyes I can also see / The shop windows seeing you passing by / On the gallery, each flash / Is a like a day after another day / Opening a great room / You pass by like you are on exhibition / You pass by and you don’t see your guard / Picking up the poetry / You pour out on the floor”.
[2] In Portuguese, the word “vão” has different meanings; it can be an opening, a span or a gap when used as a noun, or void, vain, hopeless as an adjective – among other meanings [T.N.].
[3] The word “presunto” in portuguese means ham. However, in Brazil it is also used as a slang term for designating dead bodies found in the streets during periods of repressive dictatorships, as well as victims of urban violence [T.N.].
[4] Carmela GROSS – 5 Depoimentos ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira, São Paulo, 2/22/1978.
[5] Carmela GROSS – Project for Eu sou Dolores, June 1999, unpublished.
[6] HOTEL, 2002.
[7] Walter BENJAMIN – “Fragmento” (1932), apud Willi BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna, EDUSP, São Paulo, 1994, p. 313 [free translation from Portuguese].
[8] See: Marcelo Carvalho FERRAZ – Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1996 and documental video directed by Aurélio Michilis Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, São Paulo, 1993.
[9] In Corpo de ideias there is a recognition operation, departing from the discovery of an encyclopedia as matrix, and of juxtaposition
[10] Carmela GROSS, 1999, unpublished.
[11] It is worth to mention here a story told by Carmela regarding this work: its definition came through the embroidery, through the choice of its outline, its technique and its color – red – observing that the position of each shade was decided by the embroiderer woman. We confirm thus the serenity with which Carmela structures her work, accepting the welcome presence of the craftswoman’s gesture with whom she is sharing the confection of her work.
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Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
Enquanto assinava meu exemplar do seu encarte para a Bravo!, Carmela lembrava da aula daquela tarde com um sorriso entre cúmplice e provocador: tinha sido boa, não tinha? Horas antes, a apresentação do meu projeto em classe fora recebida com exclamações como “Isso eu não engulo!”.
Tinha sido boa a aula. Porque o que se discutia, tendo aquele projeto como escusa, eram os limites da arte e o papel do artista, os lugares sociais de uma e de outro, as fronteiras que os definem e encerram e outras questões de igual calibre ou fundamento. E se debatiam desde posições que muito tinham que negociar para encontrar uma linguagem comum a partir da qual nomear as discordâncias; o que nos obrigava, a todos, a reformular pensamentos que já se tinham solidificado e a buscar novas formas para dizê-los.
E, em grande parte, era disso que tratava a matéria (palavra preferível ao termo disciplina se compararmos seus sentidos colaterais). Na primeira aula, Desenho, desenhos nos tinha sido apresentada não tanto como um plano de conteúdos, mas como um plano de Carmela para nos fazer trabalhar devagar e passo a passo. Uma proposta de dissecção do processo de concepção e desenvolvimento de um trabalho, para vê-lo e tratá-lo quadro a quadro. A ideia era razoavelmente simples: cada um propunha um projeto e se comprometia a desenvolvê-lo ao longo do semestre. A condição era o tempo: o tempo dilatado. Não teríamos um prazo para chegar a um resultado, como de costume, condição que nos faz sentir o tempo escapando desde o início até que se esgota – mas, ao contrário, seria preciso elaborar demoradamente cada etapa e esclarecer as decisões tomadas a cada bifurcação que encontrássemos. E, cada vez que o projeto parecesse resolver-se antes do fim do curso, era preciso desconstruí-lo para remontá-lo começando por uma outra peça, agarrá-lo por outro lado, dar-lhe a volta.
O curso era resultante, explicava, de sua preocupação diante da impressão (repetida, como outras impressões) de que muitas obras que ela via expostas não estavam prontas, ou tinham sido aprontadas às pressas. Como se não tivesse havido tempo suficiente de maturação, de exercício, de ensaio. Como se, entre a primeira ideia e a forma final, faltassem estágios de destilação; umas vezes, ebulição; outras, condensação; no pior dos casos, ambas. E o curso era resultante também de uma aposta ou uma vontade de pôr à prova a hipótese de que adensar o processo modificaria o resultado visível.
Expor o processo durante seu andamento o altera, quanto a isso não há dúvidas. Transformam-se o pensamento e as ações de antemão, para compartilhá-los com sentido por meio do discurso; e transformam-se de novo, de volta, em resposta a questões que surgem durante a fala e a escuta. Mas o que estava em jogo era, também, o quanto as idas e vindas e os caminhos circulares que podem compor um processo dilatado se percebem gravados, talvez invisíveis ou indizíveis, mas sempre presentes, naquilo que dali resulta.[1]
Se, por um lado, tratava-se de dilatar o tempo de elaboração de um trabalho como uma estratégia para adensá-lo; por outro lado, interessava pensar na coerência entre a construção do processo e a concepção da obra (ou como se queira recombinar essas quatro palavras). Investigar como a estrutura do resultado se vê estampada nos procedimentos que o desencadeiam e vice-versa; como o processo reflete e informa suas consequências, como os caminhos tomados anunciam e ecoam o lugar de chegada. Como, enfim, a obra se define e redefine em cada momento de sua construção, a partir dos mesmos desejos e das mesmas obsessões, dos mesmos sintomas, das mesmas perguntas; em uma palavra, de uma mesma posição.
Pensando de forma ampliada, tratava-se também de encontrar uma certa coerência (certa como relativa, não como correta) que, com sorte, reverbera em cada concreção do discurso de um artista: em suas obras de diferentes escalas e suportes, em cada etapa do processo que as constitui, em sua fala para diferentes públicos, em suas escolhas, em seus escritos, em seus cursos (nas várias acepções do termo).
POR QUE ESCREVO: NÃO UMA JUSTIFICATIVA, MAS UMA INTRODUÇÃO
Por isso, imagino, a bibliografia de Desenho, desenhos era composta por escritos de artistas que relatavam seu processo de trabalho. Lembro especialmente da autobiografia de Akira Kurosawa e das cartas de Gustave Flaubert. O mais revelador era encontrar nesses textos metáforas semelhantes às dos filmes de um, ou um rigor descritivo característico dos livros de outro; ver tomar forma, perpassando esses relatos, um modo de ver e de narrar que reconhecemos das obras terminadas. Talvez tenha sido essa constatação que me fez tomar gosto por esse gênero e iniciar uma coleção de escritos de artistas sobre arte que ocupa uma estante inteira, e bem à altura dos olhos, na minha biblioteca.
Agora estou lendo uma reunião de ensaios de George Orwell[2] e acabei de ler um texto intitulado Por que escrevo, originalmente publicado em 1946. Deixando de lado a necessidade de subsistência, Orwell reconhece quatro grandes motivos para sua atividade, que coabitam, em diferentes graus, e proporções oscilantes de acordo com o contexto, em todo e qualquer escritor (podendo este termo ser ampliado a artista, acredito, com alguns ajustes paralelos no texto). São eles:
1. Puro egoísmo. Desejo de parecer inteligente, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de revanche com relação aos adultos que nos desdenharam na infância etc. etc.
2. Entusiasmo estético. Percepção da beleza no mundo externo ou, por outro lado, nas palavras e sua combinação acertada. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza da boa prosa ou no ritmo de uma boa estória. Desejo de compartilhar uma experiência que parece valiosa e que não deveria se perder.
3. Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como são, de descobrir fatos verdadeiros e armazená-los a serviço da posteridade.
4. Propósito político – usando a palavra “político” no sentido mais amplo possível. Desejo de empurrar o mundo numa certa direção, de alterar a ideia de outras pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar por alcançar.
Com exceção do terceiro, que é mesmo assim sintético, cada um desses motivos tem suas descrições seguidas de esclarecimentos sobre suas formas de manifestação, que excluo deste relato sem deixar de recomendar a leitura completa do ensaio, onde transparece em forma e conteúdo a busca do autor por ver satisfeitas suas quatro razões.
O interessante aqui, me parece, é pensar nesses desejos de diversas ordens e nas suas combinações, todas impuras. Como se mescla esse desejo de vingança quase amorosa com o desejo de provocar uma experiência estética capaz de recriar o entusiasmo que sentimos nós diante do belo; como se mesclam os dois ao desejo de registrar fatos, acontecimentos, episódios ou hábitos para uma posterior análise apta a reescrever a história; como se combinam estes com o desejo de alterar a consciência política do outro e portanto sua vontade e suas ações? Como é que a mistura desses desejos, às vezes manifestos, outras latentes, resulta no movimento que se condensa ora em obra, ora em texto, ora em aula? E como cada um desses desejos podem estar mais e menos aguçados, num mesmo artista, em momentos diferentes.
Numa presumível confissão com algo de falso testemunho, Orwell diz que por natureza, e entende “natureza” como o estado em que se chega à idade adulta, os três primeiros motivos teriam nele peso maior que o último. “Mas então veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola etc.” e, desde 1936, cada linha sua foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo.
PERO NADA PUEDEN BOMBAS, RUMBA LA RUMBA LA RUMBA LA,
DONDE SOBRA CORAZÓN, ¡AY CARMELA! ¡AY CARMELA![3]
É curioso como há figuras que só são possíveis num texto, que se constroem à medida que vão moldando a linguagem, desenhando os parágrafos e desencadeando conclusões ou novas hipóteses delineadas de dentro da lógica, temporária e tênue, que vai sendo criada por uma palavra depois da outra e reinaugurada a cada nova frase que, ao mesmo tempo, a permite e a demanda. Cada afirmação escrita resulta do terreno preparado pelas anteriores e as redefine, limita as possibilidades do que pode ser dito depois e permite dizer ideias que antes não teriam lugar onde se concretizar. Desenho, desenhos, desenhos, desenhos etc.
Quando comecei este texto pelo relato daquelas aulas, não sabia que ele desembocaria no livro de Orwell nem, muito menos, que por este chegaria à canção da Guerra Civil Espanhola que comecei a escutar como distração e que agora se apresenta como uma chave para o entendimento da obra a que se dedica este escrito, que por ora falava de outras coisas.
Talvez tenha sido por ter visto antes, sem perceber, o LP Chansons de la guerre d’Espagne, com Guernica na capa e as letras vermelhas, pousado de enfeite na biblioteca quase vazia deste apartamento emprestado. Claro que a lembrança da música se fez presente porque ressoava o nome: Carmela. Fui procurar para ver quem era a personagem aclamada na canção de combate e resistência, mas não se sabe, parece. Ou não importa.
A evocação de um primeiro nome, nesse lamento repetido e ritmado, parece cumprir aqui uma função: remete às relações cotidianas e assim redimensiona a guerra. Canta-se o medo dos bombardeios (“Ay Carmela!”), canta-se a força das tropas (“Ay Carmela!”), cantam-se as vitórias recentes e as próximas batalhas (“Ay Carmela! Ay Carmela!”). É Carmela por um motivo que não se fez histórico. É Carmela como poderia ser Pilar ou Dolores.
![projeto_LOW](https://carmelagross.files.wordpress.com/2019/05/projeto_low.jpg?w=740)
Em 2002, Carmela Gross escreveu com lâmpadas fluorescentes vermelhas, daquelas que lembram a sinalização rapidamente decodificável do grande comércio, e todas as letras maiúsculas: EU SOU DOLORES. A frase, maior do que a sala que ocupava, saía pela janela ultrapassando os limites do prédio e aqueles que existem entre o espaço público e o privado. De memória, poderia dizer que Dolores é o nome de uma vidente, das que oferecem serviços com garantia em folhetos distribuídos nas ruas, entregues em mãos e lidos nos pontos de ônibus.
Mas talvez também não importe, aqui, a ocupação dessa outra personagem. O que importa é essa alteração na escala e no suporte, essa transmutação de anúncio a enunciado, essa mudança nos mecanismos de comunicação e a transformação na leitura que, por essa mudança, se opera. A mesma Dolores que todos nós não somos, que passamos a não ser quando a afirmação da identidade ganha visualidade pública, assim como a mesma Carmela a que todo um exército dirige seu lamento, tem a dimensão de uma ponte entre espaços irreconciliáveis.
Não somente coexistem aqui, sem por isso firmar trégua, o público e o privado; também o referencial e o abstrato coabitam ou definem esse lugar de potência ambivalente que se pode reconhecer como formador deste e de outros trabalhos da artista. Os QUASARES (1983), por exemplo, ou o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (1980-1981). Este último talvez seja o que mais diretamente se refere às relações entre o ato de ver e as outras ações capazes de criar imagens.
O PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU é das obras que habitam meu museu imaginário, lembrei desses desenhos uma vez, subitamente, voltando para casa de bicicleta, numa tarde muito branca como podem ser ao norte. Meu caminho atravessava uma área portuária, com um horizonte regular em que uma grande chaminé tinha destaque ao longe, bem mais alta e robusta do que os guindastes que pontuavam a linha d’água. A cor da fumaça sólida, ligeiramente mais escura que o fundo do céu, mimetizava a das nuvens. Pensei: “Agora sim, a fábrica da Carmela”, ou alguma frase parecida, e tirei uma foto menos elucidativa do que este parágrafo.
Não somente o título, mas também parte dos meios de representação utilizados nessa série pertencem ao repertório do desenho técnico. Linhas verticais e horizontais em intervalos regulares e notações em nanquim no pé da página remetem a esses desenhos cuja função é garantir uma leitura inequívoca, com instruções mais precisas que as palavras, de forma a dirigir a construção ou a montagem de uma estrutura assegurando o resultado previsto. Sejam desenhos de arquitetos, ou aqueles que acompanham móveis industriais para armar em casa, informações de segurança em voo ou kits de aeromodelismo.
Por outro lado, somam-se às anotações e linhas em nanquim, áreas preenchidas com lápis de cor, de poucas cores. Um material associado principalmente ao desenho feito por ou para crianças. O desenho infantil tem com o mundo externo à superfície do papel uma relação quase antagônica àquela estabelecida pelo desenho técnico. Onde este último é icônico, o outro é metonímico. O desenho técnico se aproxima daquilo que quer retratar mediante abreviações e sínteses inconfundíveis, que derivarão necessariamente numa consequência dada, ou melhor, preconcebida. O desenho infantil generaliza, não retrata este ou aquele indivíduo específico e sim um grupo, uma espécie, um conjunto de indivíduos sob o mesmo nome, pondo foco num detalhe que o caracteriza como símbolo: a boca enorme e cheia de dentes do jacaré, a casa espiralada às costas do caracol, o cocar na cabeça do índio.
Há também uma diferença temporal ou, ainda, de causalidade entre esses dois modos de representação. Enquanto a criança deseja reconhecer e poder nomear, sobre o papel, um ser como outros que já viu antes, seja no zoológico, no jardim, na televisão ou em livros; o arquiteto projeta o que deseja ver construído, e com sorte terá certo ineditismo. No primeiro caso, é a experiência diante do tigre ou de uma imagem do tigre que se procura reproduzir (talvez movidos pelo mesmo entusiasmo com a beleza descrito por Orwell); no segundo caso, o desenho é ferramenta inaugural, regulador de ações e causador de concreções antes inexistentes. No primeiro caso, o desenho persegue o referente, quer alcançá-lo, caça o tigre, o jacaré, o caracol e o índio (e é provável que agarre primeiro o caracol). No segundo caso, o desenho é comando, palavra de ordem.
Em PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU o desenho é esses dois desenhos, um junto ao outro. Esse projeto é retrato. Talvez sejam 33 retratos do céu em momentos precisos e fugidios. Talvez resulte da experiência (repetida cotidianamente) de olhar e comparar as cores e formas difusas que reconhecemos como sendo o mesmo céu, apesar de suas variações, e seja, assim, a representação de uma somatória de céus justapostos; o retrato de um céu contado de memória. Nesse sentido aproxima-se do desenho infantil. Mas esse retrato é também um plano, como o desenho do arquiteto. O plano para uma sequência (espacial ou temporal) de céu, numerada de 1 a 33 nas diferentes pranchas que compõem a série. Esse projeto para construção é representação de céus já vistos e, ao mesmo tempo, indica as formas e cores, difusas ainda, mas determinadas, de céus subsequentes.
E é impossível afirmar que o projeto não tenha terminado por ser construído passo a passo, que o céu não tenha assumido ou adotado, em 33 instantes posteriores, cada uma dessas configurações. Seria bonito procurar sistematicamente e fotografar 33 céus ou detalhes de céus que reproduzam os desenhos. Posso começar a fazê-lo, embora este, como tantos outros, talvez seja um plano com falhas (de registro e interpretação), que resulte em céus ligeiramente diferentes do previsto. E portanto irreconhecíveis.
Ao contrário desses desenhos que se inserem num tempo indefinido, que ocorre antes e depois do real concomitantemente, as presumíveis fotos congelariam o instante em que as nuvens tivessem a forma buscada e em que a incidência da luz lhes desse as cores necessárias ou desejáveis. Já vimos nuvens assim congeladas antes. Mas NUVENS, de 1967, é, de fato, uma construção projetada, cada parte cuidadosamente recortada uma a uma em material rígido, com espessura de cenário e uma suposta interioridade cor de carne.
Formadas por ondulações quase regulares em um azul turquesa e encerado, as NUVENS se aproximam mais dos cúmulos-nimbos feitos à mão do que daqueles que anunciam tempestades. Têm algo daquele desenho infantil, em que se faz da nuvem uma forma fechada, facilmente reconhecível, num tom de azul que salta sobre o branco. Uma nuvem exemplar, quase. Sua construção é como a espacialização agigantada de nuvens desenhadas com o papel deitado sobre a mesa, que teriam caído em pé ao sacudirmos a folha para livrá-la dos restos deixados pela borracha, ao apagar outras tantas nuvens reprovadas.
Mas é também como se as outras nuvens, as que são conjuntos visíveis de partículas diminutas de água em suspensão na atmosfera, tivessem repentinamente se tornado sólidas e caído imediatamente no chão com o aumento de densidade. E deve ser dessa queda, uma ou outra forma de queda, que resulta a base reta das NUVENS, sua face inferior alisada no impacto com o piso concreto, que não permite as flutuações aéreas, nem aquelas sempre possíveis sobre o papel. A segunda hipótese, a da solidificação súbita de uma forma difusa e transitória é algo parecido com o que se pode ver nos CARIMBOS (1977-1978): a cristalização do gesto expressivo e sua repetição mecanizada.Os 80 carimbos que compõem essa série reproduzem traços, linhas curtas, retas tortas, riscos, rabiscos, grafismos, garatujas, gatafunhos, garranchos, manchas, máculas, nódoas, borrões, pinceladas, e gostaria de encontrar outras 66 palavras para descrever as diferentes consequências dos gestos típicos ou inusitados de quem empunha um lápis ou uma lapiseira, uma caneta tinteiro ou esferográfica ou hidrográfica, um bastão de pastel seco ou oleoso, um carvão, um giz ou um pincel.
A materialização desses gestos efêmeros numa matriz de borracha com caráter burocrático, e suas impressões exaustivamente repetidas, lado a lado, como para preencher metodicamente a folha de papel, põem em jogo sobre a mesma superfície meios de representação característicos da arte conceitual e do abstracionismo informal. Há algo irônico na combinação desses dois legados, mas há também, de novo ou já, o estabelecimento de uma convivência de espaços (ou momentos históricos) irreconciliáveis, no mesmo ambiente potencial.
E há, me parece, uma percepção de potência na abstração, e de potência política, me atrevo a dizer. A repetição dos elementos gráficos reproduzidos nos carimbos tem uma função análoga ao “rumba la rumba la rumba la” na canção republicana espanhola. Naquela música, “rumba la rumba la rumba la” é uma pontuação rítmica e melódica que poderia ser dada por violões ou tambores, mas é cantada em coro, talvez por soar ou se ouvir melhor assim, talvez porque as mãos estariam ocupadas com outros instrumentos. Mas a recorrência desse elemento abstrato serve também como mecanismo inclusivo, todos podemos cantar – “rumba la rumba la rumba la” – mesmo sem saber a letra e mesmo sem falar a língua.
Assim são também as formas nos CARIMBOS: abstratas, repetidas e comuns (ao menos em duas acepções do termo). É como se tratasse, aqui também, de diminuir a distância entre quem fala e quem não fala a língua, quem conhece e não conhece a letra. Esses desenhos não têm nem aludem ao poder de comando dos desenhos técnicos, remetem, se tanto, ao poder limitado e monótono do burocrata senhor dos carimbos que permitem ou negam entrada, saída e permanência. Nem contêm, por outro lado, a admiração que nos despertam os desenhos capazes de nos levar de volta ao lugar da criança, atônita diante de uma representação que lhe entrega o referente como numa experiência sem intermediários.
A simplicidade reconhecível das formas e a tecnicalidade sem surpresas nem segredos dos carimbos de escritório arma uma ponte entre quem detém o discurso e quem ouve ou vê. Somos todos capazes de pinceladas, borrões, nódoas, máculas, manchas, garranchos, gatafunhos, garatujas, grafismos, rabiscos, riscos, retas tortas, linhas curtas ou traços como esses. E o sabemos. Seria bonito, talvez, copiar à mão as carimbadas, usando os diferentes materiais e gestos a que cada carimbo faz referência.
Construir um espaço de trânsito entre aquele que gera o discurso abrigado pelas instituições, selado e aprovado pelos senhores dos carimbos, e aquele que ali entra como ouvinte ou observador é, acredito, fundar um campo de potência política. Um território onde as subjetividades têm que ser renegociadas, onde a história tem que ser revista; um espaço de alerta.
ILUMINURAS (2010), a obra que Carmela Gross idealizou e realizou para a exposição que este catálogo originalmente acompanha, transforma, com um gesto único, o edifício ocupado pelo museu em um espaço de alerta, colocando em evidência ambígua tudo aquilo que ele abriga. Cuidado com o que se guarda e se dá a ver aqui dentro! Mas não só. Neste caso, trata-se também e principalmente daquilo que esse edifício já abrigou.
ILUMINURAS consiste na instalação de 66 sinalizadores giratórios na fachada do prédio hoje ocupado pela Estação Pinacoteca, o mesmo que o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS) ocupou entre 1940 e 1983. A ação é simples e o objeto conhecido. Todos já vimos mais de uma vez viaturas ou ambulâncias com essas luzes acesas e um barulho ensurdecedor. Mas elas passam, quase sempre, e o mais rápido possível.
Aqui a urgência é estática, não se move dali. Dia e noite as luzes permanecem acesas iluminando a rua e o prédio, a rua e o prédio, a rua e o prédio, enquanto giram. Mais visíveis depois que o Sol se põe e o museu fecha, à hora em que os fantasmas, dizem, andam soltos. Mas numa afirmação permanente. E silenciosa. O som que costumamos escutar cada vez que vemos, pela cidade ou em filmes, essas outras luzes de emergência não as acompanha aqui. É um grito mudo. Uma urgência sem tempo, uma urgência em relação ao passado, sem solução nenhuma.
As luzes amarelas giram e o prédio pulsa pulsa pulsa, “rumba la rumba la rumba la”. “…pero nada pueden bombas (rumba la rumba la rumba la) donde sobra corazón…” Difícil acreditar, de fato. Mas canções como esta contribuíram para formar e manter uma ação de resistência.
“Parece-me uma tolice, num período como o nosso, pensar que se pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todos escrevemos sobre eles, de uma forma ou de outra. É simplesmente uma questão do lado que se escolhe e da abordagem que se segue. E quanto mais conscientes formos de nossas tendências políticas, mais chance teremos de atuar politicamente sem sacrificar nossa integridade estética e intelectual”, escreveu Orwell em 1946, e poderia ter escrito de novo em 1964, em 1968, em 1984, em 1991, em 2001, amanhã ou ontem.
*
[1] Escrevendo agora sobre isso, que não sei se então já pensava, lembrei-me de uma obra que não conhecia e ainda não vi ao vivo: 1.000 hours of staring (1992-1997), de Tom Friedman. Será que ele olhou, fixamente, por mil horas exatas para a mesma folha de papel em branco? Seria esse olhar, sobreposto a ele mesmo ao longo de cinco anos, capaz de imprimir à superfície alguma carga que o título da obra já não lhe transfira? E, se quisermos ir mais longe, essa característica, se existe, não seria alterada pelas outras tantas mil horas de olhares fixos que pousam sobre a mesma folha, ainda branca, depois de emoldurada?
[2] George ORWELL – Why I write, Penguin Group, Londres, 2004 [trecho traduzido pela autora].
[3] Verso de El paso del Ebro, canção republicana da Guerra Civil Espanhola.
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Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
While she was signing my copy of her insert for Bravo! magazine, Carmela remembered that afternoon’s class with a smile, between accomplice and provocative, playing on her lips: It had been good, right? A few hours before, the presentation of my project had been received in class with exclamations of “I won’t swallow that!”.
The class had indeed been good. Because of what was discussed, having that project as an excuse: the limits of art and the role of an artist, the social places of the one and the other, the boundaries that define and delimit them and embrace other issues of the same caliber or fundament. And we were even debating stands that had a great deal to negotiate before they found a common language through which nominate discordances; this forced us all to re-elaborate thoughts that had already solidified and to find new ways of expressing them.
And, largely, that was what the matter (this word is preferable to the term discipline if we compare their collateral meanings) was about. On the first class, Desenho, desenhos (Drawing, drawings), we had been presented with not so much a contents plan, but a Carmela plan designed to make us work slowly, step by step. A proposal of dissection of the conception and development process of a work, in order to see it and treat it frame by frame. The idea was fairly simple: each person would propose a project and commit her/himself to develop it throughout the semester. The condition was the time: the dilated time. We would not have any time frame to attain any result, as it usually happens, a condition that make us feel time flying by since the beginning until the moment when it is over – we would have, however and differently, to slowly elaborate each phase and clarify decisions we took in each fork of the road we encountered. And, every time the project seemed to get to its end before the course was over, we would have to disassemble it and reassemble it again by starting with a different piece, tackling it from another side, giving it a spin.
That course resulted, she explained, from her concern relative to her impression (repeated, as it happens with other impressions) that the works she saw in exhibitions were not ready, or had been finished in a hurry. As if there had not been enough time to mature, to exercise, to experiment. As if, between the first idea and the final form, distilling stages were missing; sometimes ebullition; other times, condensation; in the worst of instances, both. And her course resulted also from a bet or a will to prove that by thickening the process, the visible result would be modified.
There is no doubt that exposing the process while it is in progress alters it. Thoughts and actions are transformed beforehand, in order to be shared with sense through discourse; and they change again, back again, responding to issues that emerge when we speak and listen. However, what was at play was, also, how much comings and goings and circular paths that compose a dilated path end up impressed, maybe in an invisible or unspeakable manner, but always present, in what results from them.[1]
If, on the one hand, the issue was to dilate the elaboration time of a project as a strategy to make it thicker; on the other hand, it was interesting to think about coherence between process construction and work conception (or however you want to recombine these four words). To investigate how the structure of the result finds itself impressed in the procedures that lead to it and vice-versa; how the process reflects and informs its consequences, how paths taken announce and echo the place of arrival. How, lastly, a work defines and redefines itself in each moment of its construction, departing from the same desires and the same obsessions, from the same symptoms, from the same questions; in a word, from the same position.
If we widen our thinking, it was also about finding a certain coherence (I mean it as a relative coherence) that, with any luck, echoes in each concretion of an artist’s discourse: in his/her works of different scales and supports, in each phase of the process that constitute them, in his/her speech for different viewers, in his/her choices, in his/her writings, in his/her courses (regarding the various meanings of this term).
WHY I WRITE: THIS IS NOT A JUSTIFICATION , BUT AN INTRODUCTION
This is why, I gather, the bibliography for Desenho, desenhos was composed by writings by artists describing their process of work. I remember particularly Akira Kurosawa’s autobiography and Gustave Flaubert’s letters. It was most revealing to find in these texts similar metaphors regarding the first’s films, or a descriptive rigor characteristically detailing the second’s books; to perceive a way of seeing and of narrating, that we can identify in the finished works, taking form throughout both these narrations. This realization was probably responsible for my interest in this genre and for the fact that I started a collection of artists’ writings about art, which takes a whole bookcase, on the eyes’ level, in my library.
I am currently reading a collection of essays by George Orwell[2] and I just read a text entitled Why I Write, originally published in 1946. Taking aside his need for survival, Orwell distinguishes four great motives for his activity, which cohabit, in different degrees and oscillating proportions according to context, in every and all writers (I believe the term can be expanded to artists, with a few parallel adjustments in the text). They are, as follows:
- Sheer egoism. Desire to seem clever, to be talked about, to be remembered after death, to get your own back on grown-ups who snubbed you on childhood etc. etc.
- Aesthetic enthusiasm. Perception of beauty in the external world, or, on the other hand, in words and their right arrangement. Pleasure in the impact of one sound on another, in the firmness of good prose or the rhythm of a good story. Desire to share an experience which one feels is valuable and ought not to be missed.
- Historical impulse. Desire to see things as they are, to find out true facts and store them up for the use of posterity.
- 4.Political purpose – using the word “political” in the widest possible sense. Desire to push the world in a certain direction, to alter other people’s idea of the kind of society that they should strive after.
Except the third item, which is summed-up like this, each one of these motives have their descriptions followed by clarifications about their forms of manifestation, which I excluded from this account without exempting myself from recommending the reading of the whole essay, where we can see the author’s quest in seeing his four motives fulfilled in form and content.
What is interesting here, I feel, is to think about these desires of different orders and about their many combinations, all of them impure. How can one mix this desire for revenge that is almost loving with a desire to provoke an aesthetic experience such that it is able to recreate our excitement before something beautiful; how can one mix both of them to the desire of recording facts, events, episodes or habits for posterior analysis that will be able to rewrite history; how can one combine these to a desire of altering the political consciousness of others and therefore their will and their actions? How do the mixing of these desires, sometimes manifest, other times latent, results in a movement that condenses itself sometimes in work, sometimes in text, sometimes in lecture? And how does each one of these desires can be more or less fierce, on the same artist, in different moments?
In a supposed confession with a touch of false testimony, Orwell says that by nature, and he understands “nature” to be state you have attained when you are first adult, the first three motives would outweigh the fourth. “Then came Hitler, the Spanish Civil War etc.” and, from 1936 on, each line he wrote was against totalitarianism.
PERO NADA PUEDEN BOMBAS, RUMBA LA RUMBA LA RUMBA LA,
DONDE SOBRA CORAZÓN, ¡AY CARMELA! ¡AY CARMELA![3]
The fact that there are figures that are only possible in text is curious; they build themselves as they mold language, they outline paragraphs and trigger conclusions or new assumptions traced within their logic, temporary and tenuous, which is created by one word followed by another and reopened with each new phrase that, at the same time, allows and asks for it. Each written affirmation results from a field prepared by those that came before it and redefines them, limiting possibilities of what can be said after, allowing ideas that could not become material before. Drawing, drawings, drawings, drawings etc.
When I started this text with accounts from those classes, I did not know it was going to end up with Orwell’s book; even less that through it I would get to a Spanish Civil War song I started to listen to as a distraction and which now presents itself as key to understanding the work to which this writing is dedicated, which had been discussing other things up until now.
Maybe this happened because I saw before, without realizing it, the Chansons de la guerre d’Espagne LP, with Guernica on the cover and red letters, propped as a decoration piece in the almost empty library in this apartment someone let me borrow. Of course the memory of the song was present because of the echoing name: Carmela. I researched to find out who that character praised on the song of combat and resistance was, but apparently no one knows. Or it does not matter.
To evoke a first name, in this repeated and rhythmic lament, seems to have a function here: it reminds us of daily relationships and resizes the war in this manner. They sing about dread for bombardments (“Ay Carmela!”), they sing about the power of their troops (“Ay Carmela!”), they sing about recent victories and the next battles (“Ay Carmela! Ay Carmela!”). It is Carmela for some reason that did not become history. It is Carmela, but it could be either Pilar or Dolores.
![projeto_LOW](https://carmelagross.files.wordpress.com/2019/05/projeto_low.jpg?w=740)
In 2002, Carmela Gross wrote in red fluorescent bulbs, those that quickly make us think of signs used in large stores, and with all capitals: EU SOU DOLORES (I AM DOLORES). The phrase, larger that the room it occupied, went out through the window, going beyond the boundaries of the building and those existing between public and private spaces. From memory, I could say that Dolores was the name of a fortuneteller, one of those who offer services with a warranty on pamphlets distributed on the streets, delivered by hand and read at bus stops.
But the occupation of this second character probably does not matter here either. What matters is the alteration in scale and support, the transmutation between announce and enunciation, a change in communication mechanics and a transformation in the reading that operates through this change. The same Dolores who all of us are not, which we cease to be when her identity affirmation gains public view, just like that same Carmela to whom a whole army direct their laments, she has a dimension of being a bridge between irreconcilable spaces.
Public and private co-exist here, though without agreeing on a truce; but not only that: there are also references and abstractions co-habiting or defining this place with its ambivalent power that can be identified as forming this and other works by Carmela. Her QUASARES (QUASARS, 1983), for instance, or her PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU (PROJECT FOR THE CONSTRUCTION OF A SKY, 1980-1981). The last is probably her work that most directly refers to relationships between the act of seeing and other actions capable of creating images.
Her PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU is among the works that occupy my imaginary museum. I once remembered these drawings, suddenly, when I was going back home by bicycle, in a very white afternoon – as they can be in the north. My path went through a port area, with a regular horizon in which a great smokestack was highlighted in the distance, much taller and vigorous than the cranes marking the waterline. The color of the smoke, solid, slightly darker than the background sky, mimicked the clouds. I thought: “This is it, Carmela’s factory,” or something to that effect, and took a picture less clarifying than this chapter.
Not only the title, but also part of the means of representation used in this series belongs to the repertoire of technical drawing. Vertical and horizontal lines in regular intervals and notes written in black ink on the bottom of the page remind us of those drawings whose aim is to guarantee an unmistaken comprehension, with instructions that are more precise than words, so that they can direct the construction or building of a certain structure in a way that it will have the anticipated result. They can be architects’ plans, or those that come with industrial furniture to be assembled at home, safety information on flights or instructions on aircraft model kits.
On the other hand, to the notes and lines in black ink, she added areas filled in color pencil, using just a few shades. This material is associated mainly to drawing made by or for children. Children’s drawings have a relationship with the world external to the paper’s surface that is almost antagonistic to that of technical drawings. Where the last is iconic, the first is metonymic. Technical drawings get closer to what is portrayed through unmistakable abbreviations and summaries, which will forcefully derive on a given, or, better yet, preconceived consequence. Children’s drawings are generalizations, they do not portray this or that specific individual, but a group, a species, a set of individuals under the same name, focusing on some specific detail that characterizes them as symbols: the alligator’s great mouth with many teeth, the snail’s spiraled home on its back, a feather headdress on an Indian’s head.
There is also a time or, yet, a causality difference between these two styles of representation. While a child aims at recognizing and being able to give a name, on paper, to a being like others he/she has seen before, either in a zoo, in a garden, in the television or in books; an architect plans something he/she wants to see built, and with luck it will bring some kind of novelty. In the first case, it is the experience before a tiger or a tiger image that one seeks to reproduce (maybe moved by the same excitement before beauty described by Orwell); in the last, the drawing is an inaugural tool that regulates actions and causes concretions that did not exist before. In the first case, the drawing goes after its reference, it aims at getting to it, it hunts a tiger, an alligator, a snail, and an Indian (and it is likely that the snail will be the first to be captured). In the last case, a drawing is a command, a word of order.
In PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, her drawing is these two drawings at the same time, one together with the other. That project is portrait. Maybe it is thirty three different portraits of the sky in precise and fleeting moments. Maybe it results from an experience (repeated on a daily basis) of watching and comparing colors and diffuse forms we recognize as being the one sky, despite its variations, and thus being the representation of a sum of juxtaposed skies; a portrait of a sky told from memory. In that sense, it gets closer to a children’s drawing. However, this portrait is also a plan, just like the architect’s drawing. A plan for a (special or temporal) sky, numbered from 1 to 33, on the various boards composing the series. This construction project is a representation of skies previously seen and, at the same time, it indicates shapes and colors, still diffuse, but fierce, of subsequent skies.
It is impossible to affirm that the project has not been finished because it was built step by step, that the sky has not assumed or adopted, in thirty three posterior instants, each one of those configurations. It would be beautiful to look for and photograph thirty three skies or sky details that would reproduce those drawings. I may start to do it, even though this probably is, as many others, a plan with faults (of record and interpretation), which will result on skies slightly different from those that were expected. And, therefore, unrecognizable.
Differently form these drawings that are inserted into indefinite time, which happens before and after a concomitant reality, these supposed pictures would freeze the instant in which the clouds would assume the shape to be sought after, in which light would give them the necessary or desired colors. We have seen clouds thus frozen before. However, NUVENS (CLOUDS), from 1967, is, actually, a planned construction, each part was meticulously cut, one by one, in rigid material, with a thickness adequate for a stage set and supposedly flesh-colored in their interior.
Formed by almost regular undulations in waxed turquoise blue, these Nuvens are closer to cumulus- nimbus drawn by hand than to those announcing a storm. Their bear a certain character borrowed from children’s drawings in which clouds become a closed outline, easily identifiable, in a blue tone that jumps from the white background. An exemplary cloud, almost. Its construction is like transforming into gigantic tridimensional shapes some clouds that were drawn onto paper on a table and then they fell upright from the sheet when we shook the paper to cast off eraser bits, after erasing so many other clouds that were not approved.
However, it is as if the other clouds, which are visible groups of minute water particles suspended on the atmosphere, had suddenly become solid and fell immediately on the ground with their increased density. And the straight base of those NUVENS must result from this fall, or from some other form of fall, with their lower face smooth against the concrete floor, which does not allow aerial fluctuations nor those that are always possible on paper. The second hypothesis, that of sudden solidification of a diffuse and transitory form, is something similar to what we see in CARIMBOS (STAMPS, 1977-1978): expressive gestures crystallized and their mechanical repetition.
The eighty stamps composing this series reproduce streaks, short lines, bent straight lines, traces, scribbles, graphisms, scrawls, doodles, hurried writings, stains, smudges, blemishes, spots, brush strokes, and I wish I could find sixty six more words to describe the various consequences of typical or unexpected gestures of someone holding a pencil or an mechanical pencil, an ink pen, a ballpoint pen en or a water-based pen, a dry or an oily pastel stick, charcoal, chalk or a brush.
Materializing these fleeting gestures on a rubber matrix with a bureaucratic character, and their exhaustively repeated impressions, side by side, as if to methodically fill a sheet of paper, present on a sole surface representation means typical of conceptual art and informal abstractionism. There is some irony in the combination of these two legacies, but there is also, again or already, the act of establishing a co-habitation of irreconcilable spaces (or historic moments) in the same potential environment.
And there is, it seems to me, a certain perception of power in abstraction, and of political power, I dare say. The repetition of graphic elements reproduced on stamps has an analogous function to that of “rumba la rumba la rumba la” in the Republican Spanish song. In that song, “rumba la rumba la rumba la” is a rhythmic and melodic punctuation that could be marked by guitars or drums; however, it is chanted in a choir, maybe because it sounds better or it is better to listen to it like this, maybe because the musicians’ hands would be busy with other instruments. However, the recurrence of this abstract element also works as inclusion mechanism, we all can sing – “rumba la rumba la rumba la” – even if we do not know the lyrics, even if we do not speak the language.
And so are the shapes of CARIMBOS: abstract, repeated, and common (at least according to two meanings of this term). It is as if the aim here was to shorten the distance between those who speak the language and those who do not; those who know the lyrics and those who do not. These drawings do not have or allude to the commandeering power of technical drawings; they remind us, at most, the limited and boring power of a bureaucrat who masters the stamps that allow or deny entry, exit and stay. On the other hand, they do not contain, either, the admiration prompted by drawings capable of taking us back to a child’s position, amazed before some representation that presents him/her with a reference in an experience that has no intermediaries.
A recognizable simplicity of forms and a technicality related to office stamps that does not present any surprises or secrets build a bridge between the person who detains the discourse and those who hear or see it. We are all capable of producing brush strokes, spots, blemishes, smudges, stains, hurried writings, doodles, scrawls, graphisms, scribbles, traces, bent straight lines, short lines, or streaks such as those. And we know that. It would be beautiful, maybe, to copy the Carimbos by hand, using the various materials and gestures each one of them refers to.
To build a transit space between the one who generates the discourse sheltered by institutions, sealed and approved by the masters of stamps, and those who go there as listeners or observers is, I believe, to inaugurate a field of political power. A territory where subjectivities must be renegotiated, where history must be reviewed; a space of awareness.
ILUMINURAS (ILLUMINATIONS, 2010), the work Carmela Gross idealized and accomplished for the exhibition this catalogue originally accompanies, transforms, with one sole gesture, the building occupied by the museum in an awareness space, by putting into ambiguous evidence everything it shelters. Be careful about what you keep and exhibit in here! But it is not only that. In this case, it regards also what this building has sheltered in the past.
ILUMINURAS consists in the installation of sixty six revolving signalization devices on the façade of the building currently occupied by Estação Pinacoteca, the same one Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS)[4] occupied between 1940 and 1983. The action is simple and the object is well known. We all have seen, more than once, police cars or ambulances with those lights on, accompanied by a deafening sound. However they pass by, most times, the fastest they can.
Here, the urgency is static, it does not move from where it is. Day and night the lights are on, lighting up the street and the building, the street and the building, the street and the building, while they revolve. Most visible after the sun sets and the museum closes, when, it is said, ghosts wander. However, the affirmation is permanent. And silent. The sound we are used to hear whenever we see, in town or in a movie, these and other emergency lights, does not go together with them here. It is a silent scream. Urgency without any time frame, urgency regarding the past, without any possible solution.
The yellow lights revolve and the building throbs throbs throbs “rumba la rumba la rumba la”. “…pero nada pueden bombas (rumba la rumba la rumba la) donde sobra corazón…” It is hard to believe, actually. However, songs such as this one have contributed to form and to maintain resistance actions.
“It seems to me nonsense, in a period like our own, to think that one can avoid writing of such subjects. Everyone writes of them in one guise or another. It is simply a question of which side one takes and what approach one follows. And the more one is conscious of one’s political bias, the more chance one has of acting politically without sacrificing one’s aesthetic and intellectual integrity,” Orwell wrote in 1946, and he could have written it again in 1964, in 1968, in 1984, in 1991, in 2001, tomorrow, or yesterday.
*
[1] Writing now about this, which I cannot say I thought before, I remembered a work I did not know and I have not yet seen up close: 1,000 hours of staring (1992-1997), by Tom Friedman. Did he stare, exactly a thousand hours, at the same blank sheet of paper? Would this regard, juxtaposed to itself during five years, be capable of marking the surface with some charge that is not already transferred by the piece’s title? And would this character, if we want to go further, if it exists, be altered by the many other thousands of hours of stares aimed at the same sheet of paper, still blank, after it was framed?
[2] George ORWELL – Why I Write, Penguin Group, London, 2004.
[3] Verse from El paso del Ebro, Republican song from the Spanish Civil War.
[4] The State Department of Public and Social Order was a government organ for political repression, whose brutal activities had their heyday during the military regime in Brazil (1964-1985).
Published in:
Carmela Gross: um corpo de ideias. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2011. Catálogo de exposição.
Não, a luz não se fez. Foi construída, escolhida. Quando descoberta e emancipada por Dan Flavin, a lâmpada fluorescente era uma emanação de cor, vermelha, azul, branca, reduzindo seu campo de sentido a um grau zero, e isolava o significante à solidão absoluta. Fugia da eloqüência de significados da pop. Nem sempre. Existem as homenagens a Tatlin. O ascético minimalismo se rende à História e presta um tributo ao encontro da Razão com a Arte, mais que isso, sublinha um momento no qual a arte não aspirava estar só, mas cumprindo uma utópica função de encontro com a sociedade e suas urgências revolucionárias. Hoje, as belíssimas homenagens de Flavin, tão bem expostas em Beacon, ressoam como memória rala de um passado longínquo, no mundo governado, como diz Sandra Bondarovsky, pelas “análises de economia de elevador”, onde só contam os números e índices que sobem e descem.
Carmela Gross retomou os módulos fluorescentes em sua rigidez infernal; nada a ver com a submissão flácida do neon, tão sutil e tão avesso à resistência. Carmela preferiu essas barras de luz que se encontram à mão nas prateleiras das lojas, tal qual as encontrou Flavin. Seus fonemas seriam ready-mades, não fosse tão impróprio o uso do conceito lingüístico, posto que, na verdade, a lâmpada é partícula da letra, não do som. É uma tipografia luminescente que não se imprime, mas literalmente se exprime radiante quando forma as palavras no ambiente, HOTEL ou AURORA, num plano irrisório, superfície técnica solicitada pela energia elétrica. Espalha-se em fachadas, abriga-se em salas, emana dos tetos; essa poesia de morfemas é quase pictórica.
Agora flutua. É uma morada de luz no ar. Inverte-se o processo do trabalho. Não temos o significante irradiante em busca do significado, mas imagem que irradia em busca da palavra CASA que não se escreve, mas se inscreve, se esculpe como luz, lâmpadas, fios, reatores, suportes, no espaço. Não temos o plano da palavra, mas volume inefável, vazio cercado de luz. A casa é esculpida na sua arquitetura elementar, num desenho infantil como o faria Klee se a ele fosse dado o tempo de escapar da cilada moderna e de suas investigações formais. Vejam que, como na canção, não tem teto, nem tem parede, não tem chão, ninguém nela irá deitar na rede e, no entanto, ela nos habita. Essa casa de Carmela não é nossa morada, edifício de luz no ar, ela vem nos habitar. Elogio do desenho suspenso nas três dimensões poderia nos abrigar, mas, na sua seca candura, nos penetra, e quanto mais o olhamos tanto mais o incorporamos e pensamos: quantas casas nos habitam e não percebemos. No lugar da casa que nos resguarda e na qual moramos, o tugúrio de Carmela, bruto nas lâmpadas e seus intestinos de fios e dispositivos expostos, é coisa delicada em busca da palavra que logo encontramos. E por isso a guardamos: essa casa é pedaço de nós mesmos, espelho perfeito desse ser malfeito.
Publicado em:
Carmela Gross: Uma Casa. São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud, 2007. Folder de exposição.
Let there be light? No – build light or choose it. When discovered and emancipated by Dan Flavin, the fluorescent light bulb was an emanation of red, white or blue color, its field of meaning reduced to zero, isolating the signifier to utter solitude. It eluded the eloquent meanings of Pop. Not always. There are tributes to Tatlin. Ascetic minimalism surrenders to History and pays tribute to the meeting of Reason and Art; beyond that, it emphasizes a moment in which art did not aspire to be alone but to achieve a utopian function of alliance with society and its revolutionary urgencies. Nowadays, Flavin’s extremely beautiful tributes, so well exhibited at Beacon, resonate as shallow memories of a distant past in a world governed, according to Sandra Bondarovsky, by “elevator economic analyses” in which the only thing that matters are numbers and indexes that go up and down.
Carmela Gross has revisited the fluorescent modules in their infernal rigidity; nothing to do with the flaccid submission of neon, so subtle and so opposed to resistance. Carmela preferred these store-bought rods of light, as did Flavin. Her phonemes might be ready-mades, were not the use of the linguistic conceit so inappropriate, since the light bulb is actually a particle of a letter, not a sound. This is an unprintable, luminescent typography, albeit one that expresses itself radiantly when it forms words such as HOTEL or AURORA within an irrelevant environment, a technological surface elicited by electric power. It spreads across façades, finding shelter in rooms, and emanating from ceilings; this poetry of morphemes is almost pictorial.
Now it floats; a dwelling place of light in air. The work process is inverted – not a radiant signifier in search of meaning, but an image that radiates in search of the word HOUSE – unwritten yet inscribed, sculpted in light, bulbs, wires, reactors, supports; in space. Instead of the plane of the word, we have an ineffable, empty mass surrounded by light. The house is sculpted from its architecture of elements, a childish drawing such as Klee might have made had he been given time to escape the modern ambush and its formal investigations. See how, as in the song, there is no roof, there are no walls, there is no floor, no one resting in a hammock and, yet, it inhabits us. This house of Carmela’s is not our dwelling place, a building of light in air – it inhabits us, its praise of drawing suspended in three dimensions may give us shelter, yet its dry whiteness penetrates us and the more we look at it, the more we incorporate it and think of the many unperceived houses that inhabit us. Instead of the ‘house’ that protects us, one in which we live, Carmela’s crude hideaway of light bulbs, with its wire intestines and exposed devices, is a delicate thing in search of a word we soon find. Which is why we keep it: this house is a piece of our very self, a perfect mirror of this imperfectly made being.
Published in:
Carmela Gros: Uma Casa. São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud, 2007. Exhibition folder.
Carmela Gross tem uma relação muito peculiar com o desenho. Desenhar, para ela, não é reproduzir o mundo, ou uma idéia. Desenhar é refazer o mundo, imitar, no pulso e no traço, o movimento com que o mundo se faz. É um processo de transformação. Por isso, nas obras de Carmela, raramente o desenho permanece desenho. Ele é repetido, destrinchado, decalcado, até que vire outra coisa: volume (como em A NEGRA, de 1997), superfície (como nos ALAGADOS, de 2000), textura e cor (como nos COMPACTOS do começo da década de 1990, ou como numa série recente de gravuras), luz (como no COMEDOR DE LUZ, em EU SOU DOLORES e outros trabalhos com lâmpadas fluorescentes). Para que essa transformação seja possível, é necessário que na obra acabada o desenho desapareça enquanto modalidade específica (enquanto gênero), mas permaneça como traço – e por traço aqui quero dizer rastro: marca dos gestos, dos pensamentos e dos processos que se solidificaram na obra.
Ao olharmos para um objeto, de certa maneira o desenhamos: traçamos mentalmente – e até fisicamente, no movimento do olho – contornos e distâncias. Ao colorirmos uma superfície, também a desenhamos, no vai e vem do lápis ou do pincel. Cor é desenho, e o olhar também é um fazer. Nos COMPACTOS, por exemplo, a compacidade não está tanto na simplicidade da cor, quanto na insistência com que o objeto é arredondado e recoberto de uma textura de traços, repetidos e superpostos a ponto de se tornarem indiferenciados. É uma compacidade da intenção, mais do que da coisa.
Da mesma maneira com que Carmela Gross desenha objetos e cores, pode se dizer que desenha operações, procedimentos de construção da obra de arte. Busca a transparência dos processos que levam à forma final, evidenciando todas as etapas e a maneira com que elas se articulam entre si: projeto, resolução de problemas técnicos, execução, colocação no espaço. As obras de Carmela são generosas com o público: falam de como foram concebidas e executadas, e de como podemos usá-las. Este é outro ponto importante: são obras que permanecem feitas para serem manuseadas, tateadas, mesmo que esse manuseio permaneça apenas mental. São projetos, à espera de alguém que se aproprie deles. A NEGRA (1997) tem rodas, para poder ser empurrada de cá pra lá; FECHE A PORTA (1997) gira sobre dobradiças, podendo ser mostrada aberta ou fechada; os ALAGADOS (2000) têm contornos variáveis. Não se trata de “obras abertas”, no sentido que se dava ao termo na década de 1960, porque as variações possíveis em geral são pouco significativas, do ponto de vista formal. É, mais, transformar uma operação em forma, ou melhor: encontrar a forma específica de cada operação (abrir, fechar, empurrar, delimitar uma área), de maneira que o público, ao olhar para a obra ou manipulá-la, intua o valor formal de ações simples, que estruturam ao mesmo tempo a obra e sua própria existência.
CARNE tem a ver com todas essas questões, mas carrega outras também. Em primeiro lugar, há a peculiaridade do processo de trabalho: Arte Passageira é um projeto elaborado pelo setor Educativo do Centro Universitário Maria Antonia, antes mesmo de contatar a artista. Portanto, o suporte (o ônibus) e a forma de exibição (um ano de circulação em escolas e instituições culturais da cidade) já estavam estabelecidos. Tratava-se, portanto, de encontrar um nó que amarrasse uma trama de fios já parcialmente estabelecida, ou seja, de reinventar um processo de produção e de fruição já dado, mediante uma solução formal que lhe proporcionasse coerência. Esse tipo de problema não é novidade para Carmela Gross.
Já em 1999, com EM VÃO, a artista transformara uma oficina de arte em uma obra de forte cunho autoral. A solução final (uma série de faixas elásticas esticadas em zigue-zague no vão central do Centro Cultural Mário de Andrade) partia da observação coletiva, junto aos estudantes, de um dado muito banal da paisagem urbana de São Paulo: as gambiarras de fios nos postes públicos. E chegava a um resultado que, na forma geral e nas soluções técnicas específicas, era tanto o retrato de um processo coletivo de trabalho, quanto uma nova organização da circulação e do uso do espaço.
CARNE surge de um processo similar: uma vez escolhido um leque de cores, todos com dominante vermelha (do roxo ao rosa), as soluções locais (interior, exterior, piso, teto, assentos, luzes, etc.) foram encontradas passo a passo pela artista junto ao grupo de estagiários que trabalhavam contemporaneamente à produção da obra e ao desenvolvimento do projeto educativo. Decidiu-se documentar esse trabalho em vídeo. O material utilizado (plástico adesivo) e a composição de recortes em patchwork remetem a práticas comuns das oficinas de arte escolares, e com isso já criaram um gancho para desdobramentos didáticos. A experiência intensa de uma única cor, para quem está dentro do ônibus, e o efeito ótico ainda mais intenso de uma virada para o verde da luz natural, ao sair dele, também são coisas que nenhuma aula sobre cores complementares poderia proporcionar. O que foi dito até aqui diz respeito às capacidades de identificação e articulação da artista em relação à proposta que é chamada a realizar. Mas o artista não é só um organizador, é também um transformador: há de saber executar o pulo do gato, o salto pelo qual a idéia, a se realizar, vira outra coisa. E aí entra a carne.
Recobrir um objeto é uma maneira de se apropriar dele. É por isso que encapávamos livros e cadernos, na escola, e botamos toalhas nas mesas ou mantas em sofás. Recobrir, encapar o ônibus, portanto, é uma forma do trabalho, o ato inicial que desencadeou o processo: a apropriação de um velho ônibus circular desativado da USP. Mas revestir, nesse caso, é esfolar. A intervenção revela algo que o ônibus já carregava, mas não estava à flor da pele. Os meios de transporte costumam ser recobertos por cores frias, brilhantes e esmaltadas, que dêem a impressão de deslizar no espaço sem resistências ou asperezas; cores duras, que cortem o ar. E CARNE assume a cor mole e quente daquilo que transporta: corpos humanos. A máquina se torna solidária com eles e, ao envelhecer, parecida com eles: carro em desmanche, carne de matadouro. Se tivéssemos que encontrar um arquétipo para CARNE, seria O Boi Esfolado de Rembrandt. Ao retratar a carcaça do bicho com a mesma intensidade e ênfase luminosa com que pintaria uma cena bíblica, Rembrandt se torna solidário com ele, e lhe confere a dignidade que todo ser vivo merece. Os bois de hoje são de ferro.
O ônibus de CARNE encarna sua história, as muitas mãos e corpos pelos quais foi tocado, atravessado, modificado. Mas há um outro aspecto, mais leve e lúdico (e aqui a linhagem da Harmonia em Vermelho ou o Ateliê Vermelho de Matisse ao Desvio para o Vermelho de Cildo Meirelles): a alteração de uma vivência cotidiana e banal mediante uma experiência da cor, intensa até a saturação. Porque a cor é o elemento mais imprevisível da percepção visual: não pode ser quantificada nem medida intuitivamente, altera a percepção da distância, influi sobre o equilíbrio físico e emocional. Preenche os olhos, literalmente. Não tem governo.
Encarnar a história, no sentido de torná-la intuitivamente evidente, é justamente uma função da arte; outra é sugerir a possibilidade de outra vida, outra história. Um ônibus de carne, que circule entre os ônibus de metal cromado, um ônibus que impõe a seus passageiros uma percepção alterada do mundo e de sua própria condição humana, talvez seja a metáfora perfeita da obra de arte: um objeto construído como os outros, aparentemente igual, ou quase, aos outros. Mas que, em algum momento, por alguma razão, encarnou um significado. Tornou-se um corpo.
Publicado em/ Published in:
Carmela Gross: CARNE. São Paulo: Centro Universitário Maria Antonia, 2006. Catálogo de exposição.
a/e – Seu trabalho começa no final dos anos 60. Você era próxima ao pessoal do Grupo Rex, e participa de um momento muito importante da arte brasileira, com intervenção urbana, por exemplo, a ESCADA (1968), e também da manifestação das bandeiras na rua (Bandeiras na Praça – 1968). Como você, Carmela, recebeu essa cena, se inseriu nela e qual era a sua visão? E como era a relação entre os artistas do Rio de Janeiro e de São Paulo?
Carmela Gross – Aqui no Brasil o ambiente muitas vezes escamoteia a posição do artista. E isso vale para qualquer um: para críticos, estudantes de arte, artistas. No final dos anos 1960 acontece uma efervescência no plano da produção, do coletivo e das instituições. É uma grande fogueira: o Brasil se mostrando, se pensando, se refazendo. O artista aparece nessa cena. Como jovens estudantes achávamos que ao pensar a cidade se podia tudo. Saíamos pela rua pichando, fazendo coisas… intervenção urbana. A cidade era um grande plano onde a gente podia desenhar: se podíamos desenhar no pequeno, podíamos também no grande. Tudo podia.
a/e – Você participa de duas edições emblemáticas da Bienal de São Paulo: a de 1967, com todo o embate com a Pop Art, e a de 1969, que é um marco de resistência política.
CG – Isso também acontece no plano da instituição. A Bienal de 1967 é o grande aporte da Arte Pop, com uma retrospectiva inteira do Edward Hopper e com todos os artistas do início da Pop – o Rauschenberg, o Jasper Johns, o Rosenquist, o Oldenburg, o Andy Warhol… Eu era estudante de arte e nunca havia ouvido falar disso. Uma extroversão da arte naquela escala nunca havia acontecido… era como se fosse a Bossa Nova. A Pop virou o universo da arte. Nem precisava estudar história da arte ou prestar atenção em outros movimentos, porque a Pop entrou na veia. Veio direto, total, amplificada, organizada e para ser vista, deglutida, consumida, em uma escala monumental mesmo. Nunca vi uma representação internacional com essa escala. A Bienal de 1969, ao contrário, já prenunciava os anos negros que viriam depois. Participar também foi importante porque aí pensávamos o embate entre a arte e o popular, as manifestações urbanas, a arte na vida cotidiana, na vida em geral. Era essa a proposta, na rua, na escola, no movimento com as crianças em praças públicas.
a/e – Em 1965, quando você entra na escola, tem o Grupo Rex, acontecem a Proposta 65 e Opinião 65…Como era a relação com o Grupo Rex, e com os artistas do Rio?
CG – Estudo em uma nova escola de arte, a Fundação Armando Alvares Penteado, hoje considerada até uma escola careta, fechada, mas que naquele momento era a única escola de arte. Não existia ainda a Escola de Comunicação e Artes da USP. Existia a Escola de Belas Artes, considerada completamente passada e muito acadêmica mesmo. Na FAAP, criou-se o “Curso para a Formação de Professores de Desenho” (que já existia no antigo MASP e foi transferido para a FAAP). Conduzido basicamente pelo Flávio Motta, e outros alunos dele da FAU – o Flávio Império, o Sérgio Ferro, o Rui Ohtake, o pessoal da Politécnica, se desenvolvia por quatro ano. Tínhamos matemática superior, desenho geométrico e descritiva. Saíamos pela cidade fazendo documentação de pintura popular, de pintura de borracheiro e até as pinturas nos muros da periferia da cidade. O Flávio Motta morava tempos no Rio de Janeiro e tinha contato com o Hélio Oiticica, com a Lygia Clark, com a Lygia Pape, e com outros artistas daqui, e, também, com críticos de arte, como Mario Barata e Clarival do Prado Valladares. Foi ele, junto com o Nelson Leirner, que imaginou o “Bandeiras na Rua”: eles mesmos fizeram bandeiras e resolveram vendê-las nos sinais da cidade, como uma festa de bandeiras na rua. Depois Flávio Motta touxe essa manifestação para o Rio de Janeiro, juntando vários artistas daqui e de São Paulo. Fizemos um grande desfile de bandeiras na Praça General Osório.
a/e – É através de palestras na FAAP que vocês conhecem o Wesley Duke Lee, integrante do Grupo Rex. Você fez parte do grupo de jovens artistas que expuseram na Rex Gallery, aliás, na única exposição feita com obras que não eram do grupo. Como foi essa experiência, o convite e o que você apresentou na exposição?
CG – Quando falo da cena e dos artistas, acho importante se guardar certas distâncias. Eu era simplesmente uma aluna. Não era uma artista conhecida ou que tivesse grandes atuações, nem nada desse tipo. Houve uma série de seminários na faculdade, organizada pelos alunos e pelo Sérgio Ferro basicamente, com pessoas de outras áreas: com o Roberto Schwarz, Walter Lourenção, Aziz Ab Saber, entre outros. O Wesley foi um dos artistas chamados e achou interessante fazer uma ponte entre os alunos e a galeria, na qual participava junto com Geraldo de Barros, Nelson Leirner, e o grupo recém incorporado (Carlos Fajardo, José Resende, Baravelli e Nasser). Junto com Diva Taddei, Iza Ribeiro, Mario Ishikawa, Marcello Nitsche, Yoshihiro Hashimoto, fizemos a exposição na Rex, que não se configurava de fato como uma galeria. A parte da frente era ocupada pela Hobjeto, loja de móveis do Geraldo de Barros; e na parte de trás existia um espaço, não tão grande, onde faziam as exposições. O meu trabalho eram moldes de esculturas – ao invés de apresentar a escultura terminada, pintei os moldes e os coloquei lá.
a/e – Qual foi, para você, o aporte do Grupo Rex? Ele teve de fato uma repercussão, uma interferência naquela cena paulista? E na brasileira?
CG – Era tudo muito pequeno. Não consigo hoje nem falar direito disso, primeiro porque era muito jovem naquele momento: tudo era novo. Desconhecia as manifestações do Rio de Janeiro como o Neoconcretismo, ou a relação entre neoconcretos e concretos. Isso era uma cena anterior a minha e eu, como um jovem de 18/20 anos, não conseguia fazer essas relações, nem avaliar o peso de um acontecimento como esse na cena de São Paulo. O fato é que mobilizava muitos artistas, a imprensa, os críticos. Foi importante porque quebrava todos os critérios de galeria, de exposição de obras de arte, principalmente pela atuação do Nelson Leirner e do Geraldo de Barros. Quem atuava no sentido iconoclasta, no sentido Dadá, ou no sentido demolidor, era muito mais o Nelson Leirner. O Wesley ficava em uma coisa mais erudita, mais sabedor… Era o dono do Marcel Duchamp em São Paulo. (risos) Não sei se eu estou fazendo as coisas ficarem um pouco provincianas, mas era mais ou menos isso o que acontecia.
a/e – Você começa com o desenho…
CG – O desenho era importante para mim. Não sabia nada muito. A diferença da cena é importante. Talvez não dê para generalizar, mas hoje as pessoas falam assim: “Eu quero ser artista”. E aí procuram os canais para de fato concretizar esse desejo. Nesse período, não havia essa demarcação clara. Sabia que queria ficar perto da arte, dizer coisas através de um material visual. Mas não dava para falar “Eu sou artista”, “Eu quero ser artista”, “Eu vou fazer isto porque os canais são estes” e se articular e expor… Não era isso. Eu dava aula para criança, fazia intervenção urbana, expunha na Rex, estudava um pouco de História da Arte… um campo de conhecimento, aberto para muitas vertentes, mas sem demarcação a priori. O desenho para mim sempre foi instrumento, uma forma de escrita, acho. É onde de fato você discute conceitos, faz proposições, e constrói o pensamento. É o mais próximo do pensamento porque lida com relações mais abstratas, mais construtivas, mais conceituais mesmo. Pode se desdobrar em uma obra, em outro material, outro meio, ou pode, em si mesmo, ser uma questão de discussão, ou uma ponte para se pensar até a história da arte. Isso foi muito valorizado na minha formação, pelos professores que tive, e por uma prática. A arte como pensamento, como pensar o real. O desenho é um instrumento importante porque está pensando esse real. Torna real a realidade.
a/e – Segundo Ana Maria Beluzzo, você começa seus trabalhos com as nuvens e depois tem um outro marco que é o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, de 1981. Mas, ao mesmo tempo, existe tanto essa questão do desenho mesmo, que é um projeto para um céu, quanto por um outro lado, dado uma materialidade, há um objeto, uma forma como o céu.
CG – É, na verdade, uma construção em cima do desenho. E não se pode esquecer a cena… Foi sendo desenvolvido a partir do meu mestrado, para o qual havia apresentado o projeto de estudar teoricamente o desenho; estudar o desenho na arte brasileira, desde a Semana de 22, do que se chamou de modernidade, e pensar como ele era constitutivo dessa linguagem brasileira. Naquele momento não imaginava que um projeto artístico pudesse ser avaliado como tese. E no decorrer dos estudos, fui desenvolvendo a questão do desenho de observação. O que fazia esse desenho reverter esse processo, passando a ser não só um apontamento, uma assimilação do real, mas um projeto para uma realidade. É por isso que o desenho de observação é proposto como um projeto arquitetônico: para dizer que o desenho é sempre construção, e mesmo quando está decalcado no real, ele está reconstruindo, refazendo o real de um outro modo. É nesse sentido. E daí tem a anotação de vários fragmentos da Carta Celeste do Hemisfério Sul e de projeções topográficas daquilo que tinha sido desenhado com lápis de cor. Por fim, um carimbo lateral assinado atestava que aquilo era um PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU. Exatamente pensando o desenho como projeto.
a/e – Você vinha da experiência com os CARIMBOS, onde o pensamento e a subjetividade são duas coisas muito presentes. O carimbo é o projeto para a construção de uma pincelada.
CG – Nos CARIMBOS também era essa coisa da analítica do desenho, de buscar, de isolar na produção de uma obra o que é o elemento estruturante da construção. Analiticamente tiro esse pequeno fragmento e aí, é claro, há toda uma construção de pensar o momento, a cena dura e burocrática vigorando no país. Aquela pincelada que antes fazia parte de um universo que forma um todo, que é um desenho, que é uma pintura, que se posiciona frente ao mundo com uma integridade, vira um fragmento, vira repetição, um gesto burocrático.
a/e – Sempre há permeado na diversidade dos seus meios (desenho, pintura, mídias eletrônicas etc.) a idéia de um desconcerto do olhar: de tirar o prumo do espectador com uma pincelada que é pronta, artificial: uma disponibilidade para a experiência. No HOTEL, no caso da Bienal, e sua relação com a espetacularização do evento, ou ainda do próprio espaço, da cidade, é anti-monumental porque só visto no momento em que se está em trânsito. Quando você o apresenta na Galeria Raquel Arnaud, solicita um outro tipo de posicionamento do espectador: a obra é imóvel e o espectador móvel, ainda mais tendo o dispositivo mecânico de uma esteira. Há toda uma conotação irônica também, enquanto na AURORA talvez se coloque a questão da imagem especulativa. Como você lida com essas questões, com esse nó que faz um desvio de rota nesse hábito do espectador, no que ele espera?
CG – Isso está, acho, inscrito em um momento geracional. Muitos artistas como eu também trabalharam em muitas frentes diferentes com esse sentido de, usando a sua palavra, desmontar, desconcertar o olhar, porque se está pensando o mundo. E para pensar o mundo em um determinado momento é importante desmontar, desconcertar, desarticular, se penso na atuação do artista como esse cara que pode tornar real a realidade. Colocar aspas, no sentido “experimental” de pensar na resistência dos materiais e a do olhar. Tem esses desvios pela materialidade, mas a linha que costura é esse desconcerto mesmo, porque se a realidade é desconcertante, não tem porque arrumar tudo em uma obra que signifique a obra do artista, com começo, meio e fim… Nunca acredito nisso.
a/e – Nos anos 1960, havia todo um discurso político que orientava as intervenções urbanas. Você estava falando da Pop, que “entrou na veia”. Hoje o Pop deu um grande passo: está totalmente na nossa vida e pode ser pensado com relação ao espetáculo. O HOTEL, na Bienal, também já dá a entender essa faceta espetacular das grandes mostras e eventos de arte, com esse apanhado de artistas. A geração atual, também está falando de intervenção urbana, mas não fala da Pop, e sim de espetáculo, de desconcertar o olhar, de desviar o olhar, ações urbanas… Visita-se o Situacionismo. Como você vê o paralelo entre os anos 1960 e hoje?
CG – É difícil equacionar todos esses elementos, porque são componentes que estão aí, online, que você usa como puder… é tão difuso, é tudo tão possível que você só precisa esperar o momento certo para armar. Não pensei o HOTEL como espetáculo, ainda que ele tenha exatamente esse caráter pelo próprio fato de ser um luminoso em uma fachada de um edifício. Está mais ligado à linguagem urbana, que é a do luminoso, a do anúncio, a da formulação sintética através de um embate direto. O HOTEL, na verdade havia sido pensado para uma Bienal anterior, em um momento em que toda a estrutura estava um pouco desmontada com a dispersão da diretoria, e sem curador… Por ter sido anulada a Bienal internacional, resolveram então fazer uma bienal intermediária. Fui convidada, mas depois de algumas reuniões se apresentou a questão de que aquilo era uma bienal nacional, 50 anos da bienal. Não havia nenhum sentido fazer um trabalho daquele em uma Bienal na qual a fotografia do Ciccillo Matarazzo ocupava a fachada do prédio inteiro. A questão da atuação do artista hoje é pensar o momento de dizer uma coisa, o momento de colocar um trabalho, o momento de você fazer um corte ou abrir uma fenda ou por uma cunha. Não fiz trabalho algum. Foi uma decisão muito difícil, porque queria muito fazer esse trabalho. No momento seguinte, quando fui convidada pelo Agnaldo Farias e a Bienal novamente se estruturou para uma mostra internacional, aí você pode fazer o comentário e aí ele forma sentido.
a/e – Há em seu trabalho uma reflexão conceitual sobre a questão da escala, quer seja pelo o meu desenho, na escolha de planos, como também no HOTEL. Há uma certa passagem.
CG – Essa passagem é importante. Importantíssima. Já falei isso, acho, alguma vez, em algum lugar. No final dos anos 1960, e não só com o meu trabalho, os trabalhos eram monumentais, mesmo em exposições ou salas especiais da Bienal, ou ainda em outros eventos, como as Bandeiras na Rua. Existia uma extroversão. Nos anos 1970, com todo o processo de repressão, e o isolamento do Brasil (de fato os artistas estrangeiros não mandavam trabalhos nem para a Bienal nem para nenhum outro tipo de exposição, como boicote à ditadura militar) o que sobrou para a gente foi o espaço exíguo da folha de papel, do desenho, da gravura, do pequeno formato. Na arte brasileira em geral e talvez na internacional também: há um encolhimento de escala, há uma proposição que se introverte, há uma relação do mais próximo possível… Depois retoma-se, de novo, o problema da escala, não como espetáculo, mas como uma possibilidade quase dessa coisa Pop, ou em termos gerais, da cultura de massa. É uma amplificação mesmo, de embate direto com o passante, com o desavisado, com aquele sujeito que não é formatado para a discussão, que a instituição representa sempre.
a/e – Em seu trabalho é latente a coisa da cidade. Você não se assusta com a cidade grande. Como é a aceitação, a reverberação do seu trabalho até por conta da escala, do dinamismo em cidades menores, porque o seu trabalho passa muito São Paulo, como se viesse com uma placa do lado escrito “São Paulo”.
CG – São Paulo é uma cidade construída do nada. Sem paisagem, sem encantamento. É um aglomerado de possibilidades, não ligado a vida mas a um pólo econômico. Não se constitui de fato como uma cidade estável, desenhada em conformidade com uma determinada topografia, com uma certa luz. A luz é artificial, os caminhos são os possíveis, onde tem lago se aterra, onde tem rio se canaliza. É uma interferência quase truculenta em cima de toda uma paisagem natural. Como artista, vivendo e absorvendo esse universo, é claro que a articulação de linguagem passa por aí também. Outra coisa é fazer interferência em outro lugar. Por exemplo, no Projeto Fronteiras [Itaú Cultural – 1998-2001] onde 10 artistas foram convidados para fazer interferências nas fronteiras do sul do Brasil: Argentina, Paraguai e Uruguai. Antes de pensar o projeto, escrevi um texto sobre o que significava a interferência do artista no espaço, nesse espaço indeterminado da fronteira – o que é uma fronteira, senão uma demarcação? Está no mapa, mas não na realidade. Só aceitaria fazer uma interferência em uma cidade porque não via arte nessa geografia anônima de uma fronteira bucólica, natural, mapeada. Queria uma relação com as pessoas, com o espaço urbano ainda que fosse o menor possível, ainda que fosse uma micro-cidade de fronteira, das várias que percorri. Se houvesse algum tipo de interferência e algum tipo de troca aí, seria o artista, a cidade, a praça: o lugar do encontro, da passagem, o lugar onde fazem a festa folclórica que quiserem, a quermesse, o bar, a criança que vai passear… Não vejo o artista fazendo escultura no meio do mato para Deus, nem estava com vontade de fazer uma escultura no meio do mato, nem que fosse uma grande interferência ou um grande caracol. (risos). E depois documentar e apresentar na galeria, no museu, e falar “olha como eu sou um grande artista”. Não me interessa.
a/e – E com o exterior, como se dá a sua relação? Do momento do Brasil isolado, ao qual você se referiu, a essa situação atual na qual, embora rarefeita, há uma significativa presença da arte brasileira…
CG – É que hoje tudo ficou tudo. (risos) Tudo é tudo. Tenho poucos trabalhos fora. Fui convidada para algumas exposições fora, em situações muito rarefeitas, as quais. inclusive não visitei. Algumas nos EUA, duas ou três na Europa e várias na América Latina – Venezuela, Colômbia, Argentina e Chile. Depois fui chamada para fazer esse trabalho na França e agora para fazer um trabalho em Istambul, mas… O mainstream da coisa internacional ficou mais no conhecimento pelo livro, pela leitura, e não em uma experiência direta da obra. Ao vê-la reduzida em um espaço de 30x30cm, em um catálogo de 50 folhas, você absorve daquilo muito mais as artes gráficas (risos) do que a obra. A minha relação com a cena internacional, eu diria que é quase precária. E, hoje, pelo contrário, os artistas jovens são completamente presentes nos museus europeus, americanos. Nos anos 60, os artistas estavam engajados no processo político brasileiro, depois tem uma grande vala de isolamento, depois nos anos 80 tem de novo uma extroversão, e uma extroversão principalmente da pintura e da imagem. E isso é imediatamente exportado como sendo a grande formulação dos jovens artistas: todos vão expor fora. Faço parte de um outro contexto, o do artista reflexivo, que pontua. Agora, passado o grande boom, começa a haver uma relação talvez mais reflexiva em torno desse tipo de trabalho. Não sei… Em todas as partes do mundo, existem hoje intercâmbios, ocupações de museus, artistas que vêm e que vão. Às vezes, parece-me como um confinamento, exportação de matéria bruta. (risos) Produto interno bruto, vai para lá, vai para cá, ocupa o museu… depois aqui vira moda também ocupar o museu. Mas ocupar o museu lá tem um sentido, intervir em uma instituição completamente cristalizada, fechada, voltada para muitas camadas de história da arte propostas dentro de uma organização completamente estrita. Aqui no Brasil, ocupar museu… o museu já não existe, nunca ficou em pé sozinho, coitado. É a mesma coisa que ocupar aqui a praia, porque não tem cara de nada, não tem uma ação de fato política, ou cultural, ou uma intervenção de fato. Parece que as coisas todas ficaram muito fluídas e amolecidas. Quando digo “tudo é tudo”, é porque é assim: tudo se troca por tudo, tudo vai para qualquer museu, todo museu vem para cá, qualquer artista se exporta e depois se importa, em contrapartida, um outro artista estrangeiro. É tudo muito esquisito.
a/e – Você começa na área de ensino em uma época em que a Escola Brasil está atuando também. Como você vê essa sua experiência e a possibilidade de se desmontar padrões através do ensino?
CG – Comecei a dar aula na universidade em 1972. Antes, dei aula na Escola de Belas Artes por dois anos, e o Zanini me convidou para a recém-formada Escola de Comunicações e Artes da USP, onde ele estava formando o Departamento de Artes Plásticas dentro dessa grande escola, com outros seis departamentos ligados à comunicações e às artes (Teatro, Música, Cinema, Jornalismo e Biblioteconomia e Comunicações). É um projeto dos anos 1960. Logo depois que se formou a cidade universitária em São Paulo, eles partiram da idéia, e isso é uma ideologia dos anos 60, da arte não ser arte, mas parte da cultura e a cultura ser informação – e neste formato foi criada a ECA. O Zanini convidou então um conjunto de artistas que atuavam como professores em outras escolas. É engraçado: ele pediu o meu currículo através de um amigo meu, Mario Ishikawa, que dava aula comigo na Escola de Belas Artes. Eu disse tudo bem, depois de 15 dias, 1 mês, 2 meses, o Mario falou: “Mas cadê o currículo? O Zanini está precisando”. Aí eu falei: “Ah é, esqueci…”, e escrevi, à mão, três, quatro linhas. Imagina se hoje seria possível.
a/e – Você conhecia o Zanini, não?
CG – Eu o via raramente, apesar de ter participado da Jovem Arte Contemporânea (JAC), e ter ganho prêmio inclusive. Dava aula para sustentar uma família. Não era nem uma decisão, uma opção, era uma possibilidade de emprego, de trabalho. O Departamento de Artes Plásticas, ainda nem se configurava como um departamento, porque para isso precisava ter não sei quantos mestres, doutores e titulares, e a única pessoa com titulação era o Zanini. Era simplesmente um aglutinado de professores. E dar aula durante esse período era inclusive muito contra-producente em relação à atividade artística. Havia uma discriminação do artista que dava aula.
a/e – Isso mudou completamente… (risos)
CG – Havia um adesivo, acho que feito pelo Granato, dizendo: “Adote um artista antes que ele vire um professor”. (risos) Era completamente horrível. Isso nos anos 1970. Muitos artistas entraram lá, a cada três meses havia um artista novo dando aula lá (Baravelli, Vlavianos, Mario Ishikawa, Donato Ferrari, Tomoshigue e Marcello Nitsche entre outros). Digo que faço parte da resistência, com Regina Silveira, Julio Plaza… Dar aula na Universidade nessas alturas, era por não servir para nada.
a/e – Nesse momento os artistas também tendem cada vez a ser formar mais…
CG – Aqui no Brasil, só começa nos anos 80. Quando defendi a minha tese de mestrado em 1981, eu era a terceira de Artes Plásticas (a primeira foi a Renina Katz e a segunda, acho, a Regina Silveira). Comecei a pós-graduação, que tinha uma duração de cinco anos, em 1975, mas ainda não havia o curso específico de Artes, pelo desejo de pesquisa, de pensar o que estava fazendo. Até porque a carreira universitária não estava desenhada ainda, com esse aparato atual, com curso específico de arte, linha de pesquisa em Poéticas Visuais.
a/e – A presença da poesia concreta, da poesia visual foi importante para você?
CG – Não… Sempre fez parte da formação. Pensar pelo literário, pelo poético, pelo musical e pelo cinema, para mim são coisas muito, muito importante. É quase um pudor em relação às artes plásticas, medo às vezes de uma contaminação, de uma certa corrente, de certa uma certa linha. Incorporar a poesia, a palavra encenada, certamente vem da poesia, não só concreta, mas da poesia como um todo. Nesse sentido, sou mais duchampiana do que os duchampianos.
a/e – Em uma série de trabalhos seus há a presença da matéria, mas que nega o gesto. Nos trabalhos em MICA, por exemplo, tem a presença de alguma material escultórico, mas que, assim como nos CARIMBOS, prescinde do gesto escultórico… Coloca-se a questão de como o trabalho pensa, em sua construção, a experiência da obra de arte. Se uma pintura é a experiência que se dá através do gesto, porque na pincelada se denota um certo estado expressivo ou sentimental, ou seja lá o que for, o que acontece quando isso é negado nesse objeto, como na escultura? Você discute a idéia da experiência da obra, e juntando com sua experiência como professora, o que é transmitir uma relação com a arte?
CG – Avestruz! Que complicação! Mas tem toda razão: mesmo quando o trabalho, que chamo de PINTURA-OBJETO (objetos de parede pintados, onde a questão não é da pintura, do gesto), ou quando faço acúmulo, com superposição de camadas de MICA (material industrial, usado – ou era usado – para resistência de ferro, de calor) ou ainda o próprio carimbo, que é um apagamento do gesto por um outro gesto endurecido, de um gesto expressivo pelo gesto repetitivo e uniforme, é sair dessa matéria expressiva. É muito mais uma construção: amalgamar as coisas com um sentido que não é o esperado, o rotulado para ser assim. É um pensamento analítico e construtivo. Nas aulas, que são um reflexo de fato do meu trabalho, é sempre essa mesma questão. Sempre digo que não se está fazendo arte, mas exercícios em direção à arte, a um pensamento capaz de formular criticamente ou de pôr de pé um tipo de realidade mas que, são simplesmente exercícios e sempre mais ligados ao desenho e ao projeto. Nunca é no sentido de ensinar uma técnica, um domínio sobre uma determinada materialidade.
a/e – O problema é essa idéia de um objeto artístico como algo portador de valor. Em outras palavras, é a concepção clássica de que um objeto artístico tem uma imanência, que talvez seja a aura da obra. E aí um trabalho como COMEDOR DE LUZ, com todo esse caráter iluminista e se chama “comedor de luz”, remetendo à idéia de um gasto, desperdício… A integridade com a qual ele se dá não é tão neutra, enquanto no objeto artístico clássico…
CG – Há um duplo sentido, o do desperdício, de comer a luz só para comer a luz, de gastar energia, e, por outro lado, ele tem uma superfície nele mesmo. A própria luz, a estrutura de ferro, os fios que ficam embaraçados pelo chão, trazem de fato uma superfície vibrante que faz com que tenha, nem discuto se é ou não obra de arte, uma presença. É um acontecimento visível (para não dizer que é visual), e a essa força, com essa materialidade que está aí. Por que os fios sobram? Por que o ferro é extremamente espesso e pesado? E por que a luz é amarela? Todos esses elementos estão ali na superfície vibrando com o mesmo sentido de um objeto nada “comedor de luz”.
a/e – Pode ser um jogo de palavras, mas você faz o COMEDOR DE LUZ e você faz o AURORA. São duas questões de luz e quando você fala da luz, você fala de pintura.
CG – Da luz como a possibilidade dessa pintura ser o mais forte possível, o mais eletrificada possível, a menos ligada exatamente à pincelada e à competência, mas mais ligada a esse jogo ilusório de força.
a/e – Você falou algumas vezes de construção do desenho, do real. Sua formação, participação na JAC e entrada na ECA se dão em um momento muito forte do que foi a arte conceitual no Brasil, e esse pensamento conceitual parece sempre presente em seu trabalho. Como se dá essa relação, até mesmo o seu cuidado no uso da palavra “conceitual”, que parece vir, na sua fala, sempre como “construção”?
CG – Chamo de construção e de análise, por serem, talvez, os dois princípios básicos. Construção e análise são dois elementos que são do desenho, são pertinentes à arte conceitual, mas saem um pouco desse parêntese, que ficou uma categoria de arte. O sensorial que vem à tona, eu gosto muito. Ainda que a obra passe por um processo rigoroso de análise, de idas e vindas, de construção, de possibilidades (tenho alguns textos falando disso), é um querer. É um desejo de que haja uma extroversão. Há um poema, quase um hai-kai, muito bonito do Leminski: “Viver é super difícil. O mais fundo está sempre na superfície”. Acho que se pode dizer: “A arte é super difícil. O mais fundo está sempre na superfície”. Gosto desse primeiro embate direto com a obra. Tem que haver esse apelo sensório direto, ainda que isso venha amarrado por toda a questão conceitual. Mesmo o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU é isso. Desavisadamente, você pode olhá-lo como se fosse um desenho de céu, de nuvens, de luzes e cores. Esse lado sensorial, é, basicamente, o que informa. Depois pode-se ir separando as outras camadas subjacentes. Mas, se se quiser deixá-las de fora, se deixa.
a/e – O trabalho de Paris [BLEUJAUNEROUGEROUGE, 2004] lida, mais uma vez, com a questão do estar urbano, do estar público. Diferente do HOTEL, que se vê a distância, a cor não só se espraia em todo o espaço, como envolve também.
CG – O trabalho de Paris é diferente, por exemplo, do HOTEL, ligado a um comentário histórico sobre uma situação específica. Muda a geografia e os códigos: não consigo decifrar rapidamente a coisa. Fui chamada para pensar um painel na fachada de um edifício de três andares e quando cheguei, o edifício, era paginado, diagramado por janelas. O que havia imagiando (um painel) não era mais possível. Era um edifício. Um desenho. Uma arquitetura. Pareceu-me extremamente complexo. Propus inicialmente a pintura do chão, porque era plano, e gosto muito dessa coisa do desenho no chão direto. Era a possibilidade, então, de fazer alguma coisa em um caminho que tem 100m, por 8m ou 10m de largura. Em um segundo momento, usei o módulo arquitetônico das janelas na fechada para projetar planos de cor, que, na verdade, já estão diagramados pelas janelas. Não se trata de uma citação ao Mondrian, ou ao “Boogie-Woogie”, ou ao que possa parecer dentro dessa linha. Mas, de dentro da fachada, respeitar a arquitetura, a sua construção básica, e simplesmente colocar um ritmo de cores, uma música possível.
a/e – Como é a sua relação com a imagem, tanto como registro, no caso das instalações, ou na utilização de meios imagéticos, como o vídeo, tal como o dos anos 70 em que a imagem era velada, ou ainda em Encontros, 2000, sobre São Paulo? Os QUASARES, dos anos 80, por exemplo, são, de certa maneira, imagens destituídas desse caráter.
CG – No vídeo dos anos 70, vou fechando uma televisão com estrias pretas: fechando, fechando, até a tela ficar preta. Trabalhei muito pouco com a questão da imagem no sentido do que hoje é entendido como imagem. Em EU SOU DOLORES, AURORA, ou em HOTEL, a imagem vem como subproduto da palavra. A imagem se constitui porque a própria estrutura do trabalho carrega junto aquilo que está com ela, seja o espaço, seja a visão da janela no EU SOU DOLORES, seja a fachada do edifício da Bienal. Não é um alvo determinado em um primeiro momento, mesmo no vídeo da cidade. É claro, o vídeo é completamente sedutor e se constitui como a própria imagem. Mas o que está ali amalgamado é uma experiência urbana, cotidiana, um sentimento de cidade, de passagem, de fluxo. Há uma certa narrativa onde a imagem faz parte. Claro que quando você põe um luminoso escrito hotel, ele puxa, carrega os luminosos de hotéis. Aliás, tenho uma coleção de fotos de hotel que os amigos me mandam. Não é lindo?! É a palavra que já carrega uma história inteira da imagem. Pode-se chamar de um trabalho conceitual onde a imagem é subjacente.
a/e – E a relação entre a palavra e a imagem, como em AURORA…
CG – É principalmente por causa da cor e da luminescência, e do espaço onde ela se reflete. Então, tem todos esses elementos subjacentes, conceituais, estruturantes pela palavra, etc., mas de qualquer modo isso precisa estar em uma chave sensorial porque esse é embate, o face a face. E é claro que esse sensório, ligado ao conceito, ao que a palavra está dizendo, é que carrega junto a questão da imagem.
a/e – … há também um outro luminoso: Os cara fugiu…
CG – US CARA FUGIU CORRENDO. Foi montado pela primeira vez na parede do MAM de São Paulo, no âmbito do Projeto Parede, para o qual Tadeu Chiarelli, convidava a cada três meses um artista para fazer um trabalho na parede de entrada do museu. Isso daí é uma frase de rua, que eu catei e transformei em um desenho materializado em néon e colocado no alto da parede, que tem quase 5m de altura, pintada de cor-de-rosa, forrando uma faixa de desenho luminoso. É uma pichação de rua, com esse sentido da cena, da urgência. Conversa de tribos urbanas. No MAM, ele carregava junto toda a cena do museu, do muro e da rua. Existia esse trânsito que carrega de novo a imagem e tudo o que está junto com ela.
a/e – Nos anos 60, você realizou intervenções escritas nas ruas, antes do grafite está, em parte, absolutamente institucionalizado, cooptado pelo marketing, etc. (embora continue com força muito grande, como a pichação). Você continua se nutrindo desses elementos urbanos, de comunicação?
CG – Claro que sim. O grafite completamente emoldurado, decoração de muro, não me interessa. Mas gosto do grafite selvagem, que manda recado, exterioriza uma exasperação do anônimo, do encontro desse universo anônimo, da pintura de borracheiro, do pequeno anúncio, do luminoso em cima do edifício. Todos esses elementos urbanos que se cruzam são para mim do maior interesse.
a/e – A questão do anonimato é bem presente em seu trabalho, nos néons ou, mesmo quando tem matéria, como o metal ou a pedra. Sempre há essa sensação de esvanescência (talvez não seja a melhor palavra). Até o próprio luminoso: ele depende do tempo da luz, do suporte, precisa ser gerado. Apaga-se a luz e o trabalho desaparece. São os tecidos se desfazendo. É o alumínio derretido. Em alguns objeto-pintura a matéria escorre, se esvanesce. Tem sempre essa dualidade: a matéria dura, a pedra, o mineral presente, os grandes luminosos, mas ao mesmo tempo com a sensação de efêmero, volátil. É um paradoxo. É uma sensação super ambígua. E remete à coisa do anonimato: a veladura do vídeo, as facas [FACAS, 1994] ou EU SOU DOLORES. Quem é Dolores? Dolores saindo pela parede, pela janela, ganhando a cidade, dando a sensação que saía e não entrava…
CG – De fato o anônimo é um aspecto importante, sim. As pedras, no arco desenhado na parede [PEDRAS, 1996] são catadas. Nenhuma foi feita, construída, esculpida, raspada. É a pedra bruta catada na rua, na porta, em um resto de lixo de uma pedreira. As facas são feitas. Uma a uma. O que parece ser feito, é muito acaso. Quando cheguei na Holanda, tive que trabalhar com a cerâmica. Cheguei a conclusão que não ia dominar técnica nenhuma por não ser possível. A proposição, então foi a do gesto. Enrolar. De tanto fazer o gesto de enrolar… enrolar, enrolar, ele mesmo se esgotava. Depois achatar o rolo… rasgar… bater… prensar. Todos são gestos mecânicos, embora, é claro, com a intenção de que fosse, com todos esses gestos, mais ou menos uma lâmina, um material perfurante, uma cunha. De qualquer forma, tem esse itinerário básico, como um roteiro. E o resultado é gestual, de experiências com o material. Não é um formato. É o que resta do gesto muito primitivo. Em nenhum momento ali tem forma, ou depois polimento e acertos. O que saía, saía. Tanto que as FACAS estão em séries de formatos diferentes. Em um determinado momento aquele gesto se esgotava e nascia um outro daquele próprio esgotamento daquele mesmo gesto. É como se você mecanicamente aprendesse, e de tanto aprender, desaprendesse e desembocasse em uma outra coisa.
a/e – As FACAS dão a sensação mais de primitividade, de construir de novo mais do que dar conta do já construído, como também a série de BURACOS no Arte/Cidade, em 1994. É quase como uma negação à cidade…
CG – De certo modo… Mas aqueles buracos, em um matadouro, na primeira edição do ArteCidade, nada têm de primitivo. Nascem do desenho mesmo: pequenas anotações, em um caderno de papel de 20x20cm, do espaço, onde tínhamos reuniões toda a semana para se formular de fato o que seria o Arte/Cidade (que nesse momento ainda tinha um formato mais aberto, aonde os artistas iam, a cada semana, discutir, formular e pensar coisas). Durante essas reuniões fiz um desenho de anotações de uma seriação de furos, de interferências, de rompimento daquela superfície, que foi ampliado mecanicamente por sucessivas reproduções e ampliações. É o que resta desse gesto muito primitivo que está no chão. Não tem nada de muito casual, nem de primitivo. A matéria primitiva é o cimento no chão. A visualidade, a experiência do espaço com aqueles buracos, parece uma coisa primitiva, ou vamos dizer, rude. Mas não tem nada disso: é estruturante, construído pelo desenho como projeto.
a/e – Você teve filhos muito jovem e uma experiência de trabalho social. Até que ponto podemos dizer que esse seu rigor estruturante, seu rigor analítico, construtivo do trabalho e a presença do sensório…
CG – … é feminino. A mão direita e a mão esquerda. É claro que existe uma consciência subjacente, impressa no corpo, na subjetividade, na sua estruturação no mundo. Esses dois elementos do trabalho, tanto o sensório quanto o extremamente projetado, armado e articulado, é uma posição exigida da gente enquanto mulher hoje em dia, e que se encontra multiplicado em todas as artistas mulheres. Não sei se em todas, mas enfim é a disciplina do pensamento que depois transborda no sensório, mas ele tem esse osso duro também.
a/e – E a sua experiência com crianças?
CG – Foi bastante longa. Como disse antes, entro em uma escola de arte, mas sem saber bem o que quero ser. O curso tinha também uma vertente muito forte de ensino da arte, do desenho. Então um grupo de alunos, do qual eu fazia parte, começou a dar aula para criança, e depois decidiu ir para praça pública. Durante sete, quase oito anos desenvolvemos atividades com crianças na Praça Dom José Gaspar, perto da Praça da República.. Isso era todo o domingo. Foi uma atividade muito importante e que me deu muito gás. E junto com isso eu dava aula em uma escola de arte para crianças (com três salinhas de escritório no centro comercial do Bom Retiro) dirigida pela Fanny Abramovich. Foi muito estimulante até que descobri que aquilo lá não tinha muito a ver com arte. E a minha questão era arte. Foi quase traumático, não conseguia mais ir às aulas. Na praça, tinha mais a coisa pública, aberta, a cada domingo chegavam crianças diferentes, por vezes se juntavam 200 crianças. Era uma coisa muito intensa e muito bonita, mas também solta, aberta, sem a limitação da escola, da arte educação
a/e – Elevada como elemento de linguagem no seu trabalho, sua relação com a cidade é quase uma ode, tal a intimidade. E não é o espetáculo, como nos atuais trabalhos de interferência que necessitam um grau maior de explosão, para que grite. Você já carrega tranqüilamente essa relação com a cidade, o tempo todo. Mesmo lá nos confins do Brasil, você procura a praça, o urbano, exacerba inclusive, mas de uma maneira super orgânica. Como uma digital sua, algo que você imprime na cidade. Então como se dá essa relação da pequena cidade com a cidade grande e como você negocia essa linguagem sem virar espetáculo, como no Projeto Fronteiras? Quase se poderia dizer: o espaço público como um objeto.
CG – Para conseguir fazer uma inserção em escala urbana, sem ser espetaculoso, têm muitas histórias. No caso do HOTEL, podia ser o letreiro de qualquer hotel da cidade. E na mesma escala. Pertence, se comunica e se estabelece na própria condição urbana onde o trabalho nasce. Mas dito assim, parece tudo fácil. Como se põe números nesse trabalho? 5m, 7m, 8m, que tamanho vai ter? Sempre uso “número” para não falar em escala, dimensão ou medida. Parto, então, de uma questão bem objetiva, que é o tamanho da lâmpada industrial – 1,20m e 60cm – para projetar a letra. Agora, se essa palavra hotel tivesse 50m de comprimento, o trabalho perdia completamente a força. Sua força está em pertencer à escala da cidade. Ele precisa entrar na escala do edifício, na da avenida que passa do lado, na do outro hotel que tem o letreiro ali, daquele outro hotel que você viu no centro da cidade à distância. Quase uma camuflagem. E não é esse o sentido. Toda essa orquestração de números, é completamente difícil e eu me sinto toda vez na beira do abismo. Um trabalho não me ajuda a pensar o outro e a saber o outro. Se fiz EU SOU DOLORES com 25m de cumprimento, dentro de uma sala, HOTEL não podia ter 25 ou 50m de cumprimento porque perderia seu sentido de anúncio de um hotel e passaria a ser anúncio de si mesmo, como a Coca-Cola é anúncio de si mesma. Até a hora que acende eu ainda não tenho certeza. O trabalho da praça de Laguna ficou sendo discutido por três anos e meio, quase quatro. Nada me garantia que os proponentes do projeto aceitariam ou não as minhas premissas. Foi difícil andar pelas cidades de fronteira para descobrir um lugar para fazer isso, até sair uma praça generosamente desenhada, onde trabalhei durante dois meses, colocando pedra por pedra com os operários, trocando conversa com eles. Você entra em uma outra sintonia para que o trabalho saia daquele modo. Mas nada é ameno, simples. É quase como decidir que quer entrar naquela batalha, ou não. Quando está pronto, parece que foi assim, fácil.
a/e – O trabalho de Laguna (SC) é permanente…
CG – É a discussão da obra pública. Toda vez que se está diante do espaço público, já não se está protegido por nenhuma cena institucional ou etiqueta que diga que aquilo é arte. Você pode achar até uma coisa esdrúxula, incompreensível, intransitável, mas você aceita: “Ah, isso é arte”. No espaço público, sem esse tipo de demarcação, essa etiqueta “arte” fica muito, muito, muito apagada. Diria quase inexistente. A interferência no espaço público tem a ver muito mais com as pessoas, com o que pode ser discutido com a pessoa anônima, que passa e não presta atenção, que tropeça na obra, que não vai entender nem perceber nada. A arte entra, então, na mesma cena de uma utilidade urbana, como uma calçada ou uma escada. São relações do espaço e da arquitetura, da circulação e da passagem. Desse tipo de coisa que não está no léxico dos artistas quando se faz uma obra dentro do espaço já protegido. O que a arte tem que ter é essa passagem entre o pessoal, o subjetivo e o coletivo, porque senão não se trata de arte, nem de nada, mas de uma expressão pessoal. Posso fazer o que eu quiser, onde quiser. A arte é pública por definição, mas a escala pública, no sentido de ser visível, experimentada, visitada ou indiferentemente traduzida na linguagem popular, não é em qualquer lugar, de qualquer jeito. Porque aí não estou falando de mim, mas tentando estabelecer um elo entre aquilo que é a minha subjetividade e o coletivo que está ali, incluindo o que pertence àquele trabalho, àquele lugar. E não necessariamente tem a ver com saber alguma coisa daquela comunidade. A arte tem que levar no seu bojo esse saber logo de cara. Não quero o esquadrinhamento sócio-político para saber então que aquela é uma comunidade de pescadores e que então eu vou fazer uma rede de pescar. Não. Não vou fazer rede para ninguém pescar. Qualquer de nós pode fazer uma intervenção aqui e agora, saindo pela rua, dançando, se fantasiando ou inventando um acontecimento. Não se trata disso e nem por outro lado responder fielmente aos anseios daquele espaço-tempo ali. É outra coisa. É uma síntese dessa relação do que eu, como artista, penso desse real, como é esse esforço de fazer a realidade virar real. É esse o grande esforço da arte. Tornar a realidade real, é você trazer para fora aquilo que já está ali pulsando de desejo de sair e você vai lá e carrega nas tintas. Coloca isso aí expresso com mais clareza. É todo o esforço da arte, seja na literatura, na música, no cinema. É esse o esforço, de você calcar no elemento da realidade, que já está ali, e fazer isso virar para fora. Ou seja, tornar real a realidade. E mais real, e mais visível, e mais experimentável, e aquilo que te faz pensar, aquilo que altere o fluxo normal. Pulsar junto com essa realidade, não necessariamente para fazer um mapeamento estrito ou uma expressão individual: é desse pulsar dessas duas vertentes aí que o trabalho sai. Nunca sei como se dá direito, poucas vezes um trabalho anterior ajuda em um próximo. No caso de Istambul, por exemplo, vou ter que me refazer, me refundar, me repensar. Não tenho reserva técnica na minha cabeça. A coisa vai se fundar desse embate com a cena proposta. Para o sim e para o não. É isso que chamo de tornar real o real. Todo o esforço da arte é esse. O tempo inteiro.
Graças a Carmela Gross, o público que durante este segundo semestre visitar o terceiro andar da Galeria Olido irá encontrá-lo ocupado pela palavra AURORA. Um lindo nome de mulher, hoje inexplicavelmente em desuso, talvez porque associado a coisas antigas e ingênuas, como a marchinha do mesmo nome que Mario Lago consagrou no carnaval de 41, ou como as moças que vestiam suas melhores roupas, pintavam seus lábios com cores vivas e, ávidas de ilusão, freqüentavam as concorridas sessões dos grandes cinemas do centro de São Paulo, como por exemplo, as do Cine Olido, reconhecidamente um dos seus pontos mais chiques. Mas AURORA é também um dos substantivos com os quais se designa o amanhecer. Sem o tom orvalhado, que o til garante ao segundo “a” de manhã, AURORA possui uma sonoridade aberta e reverberante, mas que se contrai na sílaba do meio, à maneira do sol que, antes de romper na linha do horizonte, se faz anunciar por sua luminosidade.
E não se trata de força de expressão dizer que a sala estará habitada por AURORA. O público a encontrará enorme, atravessando diagonalmente o espaço, engenhosamente escrita numa caligrafia dura e volátil de lâmpadas fluorescentes, uma sucessão de garatujas róseas das quais pendem a cabeleira de fios brancos por onde flui a energia que as alimenta. Um corpo luminoso a ocupar o ambiente, tingindo sua penumbra de rosa e a derramar-se pelas grandes janelas da sala sobre os transeuntes que, incautos e inconscientes de tanta beleza, transitarão durante todos os meses da primavera, pelas calçadas da São João, esquina com Dom José de Barros e do Largo do Paissandu.
AURORA é um exercício radical de poesia, uma demontração do que pode um poeta, como Carmela Gross, que, ao invés do espaço bidimensional do papel, toma para si a volumetria do espaço ambiente. Se a palavra poética é aquela dotada de espessura, a palavra que não se curva às demandas da comunicação imediata, oferecendo, em lugar disso, por força de sua carne ampliada, como neste caso, outros sentidos, o que dizer de uma palavra que assume a nossa dimensão física, para atravessar uma sala como essa da Galeria Olido, interditando-a quase por completo? Como nos demonstra a artista, basta uma única palavra, desde que revisitada sob um ângulo original, re-escrita em relação à arquitetura ou ao próprio espaço da cidade, para que ela se renove por completo, para que passe a verter por novos significados, inaugurando mundos e dias novos.
Publicado em:
FARIAS, Agnaldo. “AURORA”. In: São Paulo das Mil e Uma Faces. São Paulo: Galeria Olido, 2004.
During the second half of the year, thanks to Carmela Gross, visitors to the third floor of the Galeria Olido will find it occupied by the word AURORA. A beautiful woman’s name that has currently fallen inexplicably out of use, perhaps because it has been overly associated with old-fashioned, innocent things such as the tune of that title made famous by songwriter Mario Lago during the carnival of 1941; or with the way girls wore their best outfits, painted their lips brightly and, eagerly seeking after illusion, frequented sold-out showings at São Paulo’s downtown film palaces such as, for example, the notoriously fashionable Cine Olido. But AURORA is also one of the nouns used to designate daybreak. Without the dewy tone that the [diacritic] tilde ensures to the second “a” in manhã (the Portuguese word for morning), AURORA possesses an open, reverberating sonority, the middle syllable of which contracts like the sun –before it rises above the horizon– is heralded by its luminosity.
And it would be no exaggeration to say that the room shall be inhabited by AURORA. The public will come across her; enormous, crossing the space diagonally, ingeniously spelled out in the hard, volatile calligraphy of fluorescent lamps, a succession of rosy scrawls from which hangs a head of hair made up of white wires through which flows the energy that feeds them. A body of light that occupies the environment, tinting its shadows pink and spilling through the large windows of the room out onto heedless passersby, unaware of so much beauty as they move across the sidewalks of the Avenida São João –on the corner of Dom José De Barros and the Largo do Paissandu– throughout the months of Spring.
AURORA is a radical exercise in poetry, a demonstration of what a poet such as Carmela Gross can do when she chooses volumetric ambient space over the two-dimensionality of paper. If, when endowed with density, the poetic word does not acquiesce to the demands of instant communication; offering up other meanings in its stead –and because of its expanded fleshliness, as is the case here –; what can be said of a word that takes on our physical dimension in order to traverse a room such as the one in the Galeria Olido, interdicting it almost completely? As the artist shows us, a single word may suffice, as long as it is revisited from an original perspective, rewritten in relation to the city’s architecture or its very space, in order that it may renew itself fully so as to yield new meanings, inaugurating new worlds and days.
Published in:
FARIAS, Agnaldo. “AURORA”. In: São Paulo das Mil e Uma Faces. São Paulo: Galeria Olido, 2004.
A palavra
Hotel e aeroporto. Tanto faz. Salvo raros espécimes, ninguém habita esses espaços (falo dos diversos “espécimes” humanos, óbvio, não dos vírus, bactérias e insetos). Hotel é lugar do ser em trânsito. O hotel parece ser o não-lugar de todos, seria a própria suspensão do espaço da existência. Para alguns, suspensão definitiva, pois, conta-se, é também um local de preferência de certos suicidas. Inspirou canções de amor melancólicas como aquela interpretada por Edith Piaf, depois cantada por Ornella Vanoni. No hotel vive-se num lapso muito curto de tempo. Às vezes, apenas, por uma noite. Entretanto, diz-se, que, na verdade, habitamos outro lugar: a linguagem, nela estaria nossa morada. É pena que dela devamos sair para trabalhar. E, H O T E L, a palavra, é uma mínima partícula dessa morada; nem tão pequena quanto um fonema, já que é significante. Se não chega a ser átomo, é uma molécula, um morfema; não consegue ser menos que isso. Essa molécula urbana globalizada funciona nos cinco continentes produzindo o mesmo sentido. Interessante e coisa rara nos dias de hoje, sua origem é francesa. Carmela Gross seqüestrou-a e nela deu um trato. Primeiro fez um uso público escrevendo-a com lâmpadas fluorescentes vermelhas no alto da fachada do prédio de Oscar Niemeyer, no Ibirapuera, durante a Bienal de São Paulo de 2002. Tratou, de certo modo, da transitoriedade do evento e da arte, colocando seu trabalho, a palavra luminosa, um pouco de fora de tudo isso.
Agora, nessa instalação, tomou da cultura digital a forma. Para facilitar a composição visual por comandos cibernéticos, engenheiros e designers partiram de um retângulo ou quadrado secionado ao meio. Com eles são passíveis de se representar os dez dígitos numéricos e todo o alfabeto. Essa representação gráfica, herdada da eletrônica, há muito tempo faz parte do cotidiano. Dos relógios de pulso às tabelas de preços de supermercados, nos habituamos a ler as letras e números aos pedaços. Pobres palavras, paupérrimos números. É assim que está o mundo: feito em pedaços, para que a gente construa a gestalt que o torna legível.
Carmela estabeleceu dois pólos nos quais a palavra H O T E L é corpo e imagem. Escreveu a palavra aos pedaços. No entanto, atenção, não obedeceu às regras do universo digital, foi mais longe e despedaçou-a ainda mais e construiu duas esculturas. A feita de luz se materializa, tem volume, é uma espécie de pintura em branco sem tinta ou tela. Irradia poderosa sobre a sala, e, num certo sentido, parece governar a cena. É mestra, enquanto a outra, escrava, passiva, parece apenas refletir a cena. Feita de espelhos, esguia, plana, é muito discreta. Uma atua luminosa e se exibe, a outra é testemunha. H O T E L–L U Z é corpo sedutor pronto para ser possuído pelo olhar. H O T E L–E S P E L H O recolhe a cena inteira e nos devolve o instante real. Sem ofuscar ou atrair, a palavra-espelho nos reflete diante daqueles fragmentos que acaba por nos fazer aos pedaços, tal como a palavra ou como somos. Nessa pousada, por alguns instantes, temos um pequeno momento de verdade. Construímos totalidades precárias para costurar esses pedaços, sonhamos com conflitos estruturais que poderiam inaugurar um novo campo de problemas mais inteligentes e mais produtivos, e logo somos devolvidos ao mundo despedaçado.
O deslocamento
Na instalação, Carmela introduziu um veículo que substitui as nossas pernas. O veículo tem a gratuidade de um verso num poema. A distância pela qual nos transporta é muito pequena. São apenas alguns metros da galeria. Por isso posso imaginá-la como segmento de um corredor muito longo. Um metrô, por exemplo. Vi anúncios, num desses metrôs de uma grande cidade, pensados para funcionar como um filme: a publicidade impressa nas paredes do túnel desfilava para os passageiros como uma imagem em movimento. Graças a persistência retiniana, a parede do túnel virava um écran de cinema. Carmela subtraiu espaço e tempo. Estão contraídos de tal forma que, libertados de nossa experiência cotidiana, somos lançados na experiência da arte.
Em qualquer grande cidade estamos submetidos, pelo menos, a três tempos e três espaços – além daqueles subjetivos, é claro. O privado ou doméstico, o público ou profissional, e aquele ditado pela necessidade de nos deslocarmos de um para o outro. Se fizermos abstração dos sujeitos que são profissionais condutores de veículos de transporte e seus auxiliares – de pilotos de avião aos moto-boys –, o resto da humanidade urbana tem parte de sua vida consumida no interregno do deslocamento da casa-trabalho / trabalho-casa. O espaço será sempre o do veículo: do helicóptero, do carro blindado, à van, ônibus ou trens lotados. O tempo é inútil na vida nômade da pura geografia: todos estarão com a vida suspensa apesar do telefone celular, do piloto, do chofer, dos negócios fechados, da antecipação da reunião de diretoria, do sofisticado som do CD, da conversa com o companheiro de trajeto cotidiano, ou do sarro de corpos em intimidade forçada. Espécie de trailer da morte. Morre-se mais indo e vindo do que dormindo, porque durante o sono, ao menos, alguns ainda sonham. No trânsito das grandes cidades há sempre presente um grande assassino que nos mata aos pedaços, tal como trucidaram as palavras nos segmentos digitais. É a sentença branca de morte, aquela sem cadeira elétrica, mas com banco de couro e ar condicionado, ou pendurado nas portas dos trens ou nas argolas dos metrôs. São todos, temporariamente, cadáveres que falam, que fantasiam, mas mortos-vivos – pobres nômades compulsórios da jornada de trabalho. E há os que se divertem nesses trajetos, fazem amigos, agendam churrascos – zumbis alegres, mas zumbis.
Carmela subtraiu espaço e tempo. Nos deixou sozinhos, sem a experiência do trânsito ou das viagens às quais estávamos viciados, tão anestesiados e preparados que estamos para morrer aos pouquinhos. E ela nos sugere esse outro trânsito, tão curto e em outro tempo. Retirados do inferno nômade da vida contemporânea, a instalação de Carmela nos oferece um limbo para que possamos nos dar conta dos pedaços em que foi feita a existência, sem os demônios da vida exterior, estamos cercados pelo H O T E L–L U Z e o H O T E L–E S P E L H O, por alguns segundos, nossas moradas.
Sombra e reflexo
No parque de diversões as sensações corporais extremas dominam os brinquedos mais procurados. A vertigem da montanha-russa, a pressão da força centrífuga do rotor ou do bicho-da-seda, as cambalhotas do avião, neles somos jogados, no movimento, às sensações que o cotidiano não nos oferece. O pequeno passeio de Carmela não mexe com o corpo, mas é diversão porque diverge e nos redireciona. Nenhuma sensação extrema; isto nos remete às “pequenas sensações” de que nos falava Cézanne. São estas que estão restauradas no pequeno passeio porque as únicas compatíveis com a reflexão. Só que, agora, não podem mais ser oferecidas numa natureza-morta com maçãs.
Quando vi, na porta do atelier da artista, o trole que ela havia mandado fabricar para nos “transportar” no curto espaço da galeria, imaginei aquilo como um acessório supérfluo. O já velho olho moderno não percebe o quanto é necessário deslocar e subverter a prática cotidiana das pessoas, para que elas não tenham a experiência da arte reduzida à contemplação de objetos nas paredes. Sozinho ou em pequenos grupos, sobre o trole, o espectador agrega a experiência comum, por contraste e, mesmo, por oposição, ao pequeno e estranho passeio, e temos, numa espécie de câmara lenta, a possibilidade de nos isolar das leituras cotidianas e involuntárias que fazemos na cidade ocupada pelas marcas das mercadorias.
Seremos sombra e reflexo na rápida hospedagem no H O T E L–L U Z e no H O T E L–E S P E L H O. Atuaremos inteiros como personagens da rigorosa e simples geometria, construída, também, para termos certeza que o mundo ou as palavras feitos em pedaços estão assim para que possamos reconquistá-los na sua integridade durante a percepção em movimento e, recuperando e resolvendo as partes no todo, de novo as palavras e o mundo voltem a fazer sentido.
[Na madrugada os pássaros ainda cantam como se ouve o caminhar dos pedestres noturnos em certas cidades.]
Publicado em:
Carmela Gross: Hotel Balsa. São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud, 2003. Folder da exposição.
The word
Hotels and Airports. They’re all the same. Except for rare specimens, no one inhabits these spaces (I’m obviously talking about human “specimens”, not viruses, bacteria or insects). A hotel is a place of being-in-transit. Hotels would appear to be everybody’s non-place, the very suspension of a space for existing – a definitive suspension for some, as they are also said to be the preferred place for certain suicides. They have inspired melancholy love songs like the one sung by Edith Piaf and later by Ornella Vanoni. One lives for a very short time in a hotel – sometimes for just a night. Nevertheless, it is said that, in fact, we inhabit another place. Language is our true dwelling place and it is too bad we need to leave it in order to work. And the word H O T E L is a minimal particle of this dwelling place; not as small as a phoneme, which is already significant. Not quite an atom, but a molecule, a morpheme. Less than this it cannot be. This globalized, urban molecule functions in five continents, producing the same meaning. It is French in origin – a rare and interesting thing nowadays. Carmela Gross has sequestered it and given it a makeover. She initially made public use of it by writing with red fluorescent lights across the top of Oscar Niemeyer’s Ibirapuera building during the 2002 São Paulo Biennial. In a way, she was dealing with the transience of that event and of art, by setting her work, the luminous word, somewhat outside all that.
The present installation takes its form from digital culture. In order to facilitate visual composition through cybernetic commands, engineers and designers started from a rectangle or square sectioned in half. The ten numerical digits and the entire alphabet may be represented by these. This graphic representation, inherited from the electronic one, has long since been a part of everyday life. We have grown used to reading letters and numbers in pieces on everything from wristwatches to supermarket price charts. Poor words, indigent numbers. Such is the state of the world – in pieces, that we may build the gestalt, which makes it legible.
Carmela has established two poles in which the word H O T E L is body and image. It should be noted, however, that she did not follow the rules of the digital universe but, instead, has gone beyond them, further fragmenting it in order to build two sculptures. The one made of light materializes, it has volume, a sort of blank painting without paint or canvas. It radiates powerfully over the room and, in a sense, seems to dominate the scene. It is masterly, whilst the other one is passive and slave-like, appearing to merely reflect the scene. Thin, flat and made of mirrors, it is very discreet. One is luminous and shows itself off, the other is a witness. L I G H T–H O T E L is a seductive body ready to be possessed by the gaze. M I R R O R–H O T E L takes in the entire scene to return us to the real moment. Without dazzling or attracting us, the mirror-word reflects before us those fragments in which we wind up in pieces, as the word or as we are. For a few instants, in this resting place, we have a tiny moment of truth. We construct precarious totalities in order to sew these pieces together. We dream of structural conflicts which might inaugurate a new field of more intelligent, more productive problems and are soon returned to the shattered world.
Displacement
In the installation, Carmela introduces a vehicle as a substitute for our legs. The vehicle is as gratuitous as verse in a poem. The distance it transports us is very short, just a few meters of gallery. This is why I can imagine it as a section of a very long corridor – a subway, for instance. I have seen subway ads in metropolitan subways which were designed to work like movies – the ads printed on the tunnel walls displayed for the passengers like an image in motion. Thanks to retinal persistence, the tunnel wall became a movie screen. Carmela has subtracted space and time. They contract in such a way that, freed from our everyday experience, we are cast into the experience of art.
In any large city we are subject to at least three times and three spaces – beyond the subjective ones, of course. One is private or domestic, another public or professional and a third dictated by our need to move from one to the other. If we abstract from professional drivers of transportation vehicles and their auxiliaries (from airplane pilots to motorcycle delivery boys), the rest of urban humanity spends part of its life in the interregnum of displacement from home to work and from work back home. Space will always belong to vehicles – to the helicopter, the armored car, the shuttle, bus or packed trains. Time is useless in the nomadic life of pure geography – everyone’s life is suspended in spite of mobile phones and pilots and drivers, in business deals that have gone through, in anticipation of board meetings, in the sophisticated sound of CDs, in conversations with everyday fellow passengers, or in bodies rubbing against one another in forced intimacy – a sort of coming attractions of death. We die more while we come and go than while we sleep because while we sleep at least some of us dream. A great murderer is always present in big city traffic, one who kills us piecemeal just as words have been killed by digital segments. It is a cold sentencing to death without an electric chair which comes with a leather seat and air conditioning or hangs from subway train doors or straps. We are all, temporarily, corpses that speak, that fantasize – the living dead, poor compulsory working day nomads. And some of us have fun during these trajectories, we make friends and plan barbecues – happy zombies, but zombies nonetheless.
Carmela has subtracted space and time. She has left us all alone, without the experience of traffic or the journeys we got hooked on, so anesthetized and prepared are we to die little by little, while suggesting to us this other, brief transit in another time. Withdrawn from the nomadic hell of contemporary life, Carmela’s installation offers us a limbo in which to become aware of the pieces into which our existence has been shattered. Without the demons of exterior life, we are surrounded by the L I G H T–H O T E L and the M I R R O R–H O T E L, our dwelling places for a few seconds.
Shadow and reflection
Extreme physical sensation dominates the most sought-after rides in an amusement park. The vertigo of the rollercoaster, the pressure of centrifugal force of the rotor or the caterpillar, the somersaults of the airplane, in these we are thrown, in movement, to the sensations which everyday life does not afford us. Carmela short ride does not affect the body, yet it is amusement because it diverges and because it redirects us. No extreme sensation; it refers us back to the “little sensations” about which Cézanne spoke to us. It is these which are restored in the small ride because the only compatible with a reflection. Only now they can no longer be offered in a still life with apples.
When, at the door of her studio, I saw the made-to-order cart she had designed for “transportation” around the gallery’s small space, I imagined it to be a superfluous accessory. Already old, the modern eye no longer perceives how important it is to displace and subvert people’s everyday practices, so that their experience of art is not reduced to the contemplation of objects on walls. On the cart, alone or in small groups, the spectator experiences this ordinary experience by contrast and even by opposition to the strange, short ride and, in a sort of slow motion, we are given the possibility of isolating ourselves from our everyday, involuntary readings in cities taken over by brand name merchandise.
In our brief stay at the L I G H T–H O T E L and the M I R R O R–H O T E L we will become both shadow and reflection. We will behave like simple, rigorously geometrical characters constructed so as to be certain that the fragmented world or words are the way they are in order that we may fully regain them as we perceive them in motion and that, by recovering and resolving the parts in the whole, words and the world will once again make sense.
[Birds still sing at dawn like the footfalls of nocturnal pedestrians in certain cities.]
Published in:
Carmela Gross: Hotel Balsa. São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud, 2003. Exhibition folder.
Antes de mais nada, o trabalho pede que encontremos um ponto de vista satisfatório – genérico, menos perceptivo, mais conceitual – para apreender este conjunto de artefatos em argila, ao qual Carmela Gross deu o nome sugestivo de FACAS. Dessa maneira, começamos por hesitar quanto ao topos em que ele efetivamente se realiza. Pois, ainda que estejamos diante de uma situação cingindo elementos variados, dispostos de certa maneira e numa determinada extensão de espaço, impondo uma escala que vai do uno ao múltiplo, do homogêneo ao heterogêneo e vice-versa – jamais poderíamos considerá-la uma instalação e, por outro lado, tampouco atribuir estatuto formal autônomo ao universo de objetos aí compreendidos.
Quer dizer, dada a posição singular – distanciada – do trabalho, parece insuficiente tentar compreendê-lo por meio de alguma coisa prévia a ele, seja seus possíveis pontos de contato com a produção contemporânea, ou seu possível diálogo com a história da arte moderna. De fato, ele nos solicita um tipo de envolvimento “fraco” com a agenda de questões que têm estado no foco de interesse da arte durante estes últimos anos, tanto no que concerne à preocupação com os “conteúdos”, que esta tem revelado, quanto aos problemas formais mais recorrentes no período. É como se o trabalho se pusesse aquém da história e da tradição, de modo a poder perscrutar, desde suas camadas mais internas, a própria experiência da historicidade e da tradição.
Além disso, os artefatos e a maneira peculiar de arranjá-los espacialmente projetam menos uma presença, uma evidência formal topicamente localizável, do que um campo de ação genérico e rigorosamente abstrato, feixe de relações descrevendo uma espécie de sistema universal de produção de objetos. A argila surge, então, não como o material que exprime determinada psicologia na história da arte, mas como cerne conceitual deste sistema, protagonizando emblematicamente a posição de “matéria prima”, uma vez que combina à sua natureza elementar e primitiva um coeficiente mínimo de “historicidade”, e desse modo pode se apresentar como memória de um mundo natural e, ao mesmo tempo, meio de passagem a um mundo histórico e social. Em outros termos: objeto e meio de passagem a outros objetos. Isto posto, nada melhor do que um significante tão formidavelmente operativo como FACAS para nos permitir o acesso às instâncias puramente motrizes que constituem a matéria real deste trabalho.
Acrescente-se, de resto, que a multiplicidade de artefatos não corresponde, em decorrência do que se acaba de dizer, a uma multiplicidade de objetos, mas diz respeito à transitividade incessante do processo de produção de objetos, no qual se perfaz, indefinida e sucessivamente, o esgotamento de um artefato precedente e o encetamento de um subseqüente.
Assim, a proliferação aparentemente serial da forma no interior do grupo de instrumentos de argila – chamemo-los assim, relevando sua dimensão simbólica e transitiva – é, de fato, desconstrução, processo analítico, que visa explorar a genealogia do objeto a um estágio em que ele ainda não se terá posto como objeto, em que o imperativo da ação subjetiva ainda está, portanto, às voltas com as infinitas possibilidades da forma. Com isto, o trabalho terá recuado a um estágio onde domina o heterogêneo, espécie de jogo de experimentações, à mercê de uma ação a princípio emancipada – voltada ao presente – e primordialmente cognitiva.
Fica claro, neste ponto, que a tendência à repetição, ao desenvolvimento meio que aleatório de uma matriz formal qualquer, remete, no caso, justo a seu contrário: à indagação por processos de individuação, de qualificação de uma ação única e irrepetível, a despeito de ter de se desenvolver em situações que acabam levando ao adestramento, à adaptação, ao desgaste e à caducidade precoce das coisas. É, pois, o próprio sistema em questão que produz, no curso de seu movimento, a consciência dos compromissos da ação, esta se pondo, a princípio, sempre como ação emancipada, conforme se disse há pouco.
Já se percebe, a esta altura, que tal sistema se refere a uma economia do objeto cultural, ainda que aqui se reverta um pouco as coisas e se disponha o objeto, continuamente, à apropriação subjetiva, que o restitui sob bases renovadas. O que está em questão, do ponto de vista desta apropriação, é reencontrar a plasticidade do objeto numa condição originária (que só pode ser, evidentemente, histórica e social – lembremos que, em seus aspectos mais óbvios FACAS evoca, de imediato, os achados arqueológicos remotos, seixos trabalhados como lâminas), uma condição que estaria, portanto, aquém das determinações publicitárias e institucionais que vêm revestir este objeto. Trata-se, enfim, de recuperar sua historicidade, seu tempo real, sem permitir que a motricidade implacável do processo produtivo o espolie, alienando sua dimensão subjetiva.
Como a idéia de série e repetição é crucial para Carmela, convém ainda examinar a relação singular que a artista mantém com o minimalismo, mesmo que seja irrelevante explicar seu trabalho como estando, de algum modo, referido a tal corrente. Pode-se dizer que a relação é desconfiada e que este trabalho, estrategicamente, se esgueira por um sutil desvio da linhagem minimalista. Se nesta os procedimentos de repetição reafirmam incessantemente a adaptabilidade do objeto ao mundo, a capacidade que tal objeto tem, de instalar desde o início um espaço público e anônimo, a artista, ao contrário, parece querer suspender provisoriamente todas as “presenças”, forçando a injunção de um foro subjetivo e lábil (pois tem a prerrogativa de se exteriorizar ou retroceder), neste espaço mesmo, convertido em pura superfície.
Dessa maneira, o trabalho introduz no sistema um inusitado fator de indeterminação, pelo qual a ação subjetiva (ou subjetivante, se é possível dizer assim) pode sempre recuar um passo dos processos de institucionalização que logo incidirão sobre ela, buscando dessincronizá-la. Este tempo dilatado não deixa de ser uma maneira de conservar a atualidade e, simultaneamente, auscultar uma temporalidade histórica.
Assim, o movimento em câmera lenta que o trabalho não cessa de perfazer, de restauração da heterogeneidade da forma e reapropriação dos objetos para novas habilidades, só se torna possível porque ele dúvida da positividade e do eterno presente destes. É como se os objetos fossem colocados entre parênteses, de sorte que o trabalho agora se produz no espaço-tempo abstrato que decorre entre eles. Daí adviria, aliás, o aspecto de dispersão molecular e de descentralização que o caracteriza.
Dado que FACAS se compõe de doses alternadas de repetição e mudança, seria o caso, finalmente, perguntar o que intervém para a mudança, já que o sistema em questão dispende todas as suas energias no sentido de vencer a inércia, de atualizar continuamente a possibilidade de mudança e, como já se disse, de fazer florescer a ação única e irrepetível. O que, então, faz a artista passar de um objeto a outro? O que pressiona o esgotamento de uma série formal e o advento de outra?
A resposta de Carmela a tal indagação é da ordem estrita da experiência, pois todas as interpelações que o trabalho faz à esfera do sujeito, toda a inquietação que revela frente aos problemas relativos à constituição da subjetividade na arte contemporânea, se expressam exclusivamente no próprio fazer deste trabalho, são imanentes à instância técnica que lhe dá origem. As coisas se passariam mais ou menos assim: o material vai acumulando um saber prático que acaba por se esgotar, fisiologicamente numa função; é quando o processo se interrompe, descreve um giro auto-reflexivo, incorpora os aprendizados anteriores e, por força da vocação discriminatória e, portanto, transformadora, da subjetividade, restaura ininterruptamente o enigma do momento indiferenciado inicial. No estado de coisas em que se encontra a arte contemporânea, isto equivale, em alguma medida, a desculturalizar o objeto estético para surpreendê-lo, desavisado, na fragilidade de sua existência cotidiana.
Publicado em:
Carmela Gross: Facas. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 5-7. Catálogo de exposição.
First of all, the work demands that we find a satisfactory approach – generic, less perceptive, more conceptual – to apprehend this group of clay artifacts, which Carmela Gross has suggestively named KNIVES. Then, we begin to hesitate about the topos in which they effectively are. For if we are facing a situation that encompasses several elements, disposed in a certain manner and in a certain space, imposing a scale that runs from one to the multiple, from the homogeneous to the heterogeneous and vice-versa – we could never consider it to be an installation, and on the other hand, neither could we confer formal autonomous status on the universe of objects included there.
That is to say, given the singular position – apart – from the work, it appears to be insufficient to try to comprehend it through anything prior to it, whatever its points of possible contact with the contemporary production or its possible dialogue with the history of modern art. In fact, the work requests a kind of “weak” involvement with the agenda of contemporary art, both concerning its “contents” and its recurrent, formal issues. It is as KNIVES had a motion outside history and tradition, as scrutinizing its inner layers, its own experience of historicity and of tradition.
Besides, the artifacts and their peculiar arrangement do not spatially point to a presence, formal evidence, but to a generic and rigorously abstract field of action, intertwined relationships depicting a kind of universal system of producing objects. The clay arises, then, not as a material, which expresses a certain psychology in the history of art, but as a conceptual kernel of this system, emblematically playing the part of “raw material”, since it combines with its primitive and elementary nature a minimum coefficient of “historicity”. Thus, it presents itself as a memory of the natural world, and at the same time, as a passage to the historical and social realm. In other words: here the object becomes the means of passage to other objects. This being said, nothing better than a so formidably operative significant as is KNIVES to allow us access to purely motive instances of which the real material of this work consists.
Not to mention the fact that the multiplicity of artifacts does not correspond to a multiplicity of objects, but concerns the incessant transitiveness of the process of production of objects, in which the exhaustion of the preceding artifact and beginning of the next takes place in endless succession.
Thus, the apparently serial proliferation of form in the interior of the group of tools – I call them so to emphasize their transitive and symbolic dimension – is actually deconstruction, an analytical process which aims to explore the genealogy of the object at a condition in which it still has not placed itself as an object, in which the urgency of subjective action is still at odds with the infinite possibilities of form. With this, the work would have withdrawn to a stage where heterogeneity dominates, a kind of experimental game, at the mercy of an initially free action, pointing to the present and primordially cognitive.
It is clear at this point that the tendency to repetition, an almost random development of a formal matrix, results, in this case, in just the opposite: an inquiry about the process of individuation, of qualification of an unique and unrepeatable action, in spite of having to develop in situations which tends to domestication, to adaptation, to consumption and the precocious senility of things. Therefore, it is the very system that produces, in the course of its turn, always presents itself, first, as a liberating action.
It can be perceived at this stage that such a system refers to an economy of the cultural object, even though here things happen differently, continually disposing the objects to a subjective appropriation that reconstitutes them on new bases. What is in question from the point of view of this appropriation, is to re-encounter the plasticity of the object in its original condition (which can only be seen historically and socially – we are reminded that in its most obvious aspects KNIVES immediately evokes the remote archaeological finds, pebbles worked as blades), a condition that would be, therefore, beneath imperatives of publicity and “institutionalization”, so to speak, that finally reach the object. It is about recovering its historicity, its real time, not allowing the implacable motive power of the productive process to spoil it, alienating its subjective dimension.
Since the idea of series and repetition is crucial for Carmela Gross, one must examine the singular relationship that the artist maintains with minimalism, even when irrelevant to explaining her work as being connected, in a certain manner, to this trend. It can be said that the relationship is suspicious and that this work steals strategically in by a subtle detour from the minimalist lineage. If the minimalist gesture of repetition incessantly reaffirms the adaptability of the object to the world, the capacity of such an object to install itself from the beginning in a public and anonymous space, the artist, on the contrary, seems to want to suspend provisionally all the “presences”, forcing the injunction of a subjective and labile recess (since it has the prerogative of exteriorizing or retreating) in this very space.
In this way, the work introduces a striking factor of indeterminateness into the system, by which the subjective action can always retreat a step in process of “institutionalization” to which it will soon fall prey, becoming an anachronism. This distension of time is but a way to preserve the actual and simultaneously to auscultate an historic temporality.
Thus, the endless slow motion of recovering the heterogeneity of form and the re-appropriation of objects for new skills, performed by the work, can only become possible because it questions the positivity and their eternal present. It is as if the objects were placed between parentheses, so that the work is now produced in the abstract time-space between them. From there come the aspects of molecular dispersion and of decentralization, which characterize it.
Given that KNIVES is comprised of alternating doses of repetition and change, would it be in order finally to ask what intervenes to make the change, since the system in question spends all its energy to overcome inertia, to continuously resume the possibility of change and, as I said, to make the unrepeatable action flourish. What then, makes the artist pass from one object to another? What pushes the consumption of one formal series into the advent of other?
Carmela Gross’ answer to such a question is on the strict order of experience, because every issue that the work summons to the sphere of the subject, its uneasiness whenever facing the struggle to constitute the subjectivity in contemporary art, are exclusively expressed in the practice of the work itself, are immanent to the technical instance that gives them origin. Things happen more or less thus: the material accumulates a practical knowledge that ends up physiologically exhausted in a function; then the process comes to a halt, describes a self-reflective turn, incorporating the previous apprenticeship, and due to a subjective action that is naturally cognitive and do, given to transforming, it rescues incessantly the enigma of the indifferent beginning. At this point of contemporary art, this means, in some sense, “de-culturing” the esthetic object, that is, peeling off its cultural layers, so as to catch it unawares, in its ordinary existence.
Published in:
Carmela Gross: Facas. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p. 5-7. Exhibition catalogue.
A individual de Carmela Gross em 1990 trouxe-nos de volta a idéia de que não se pode avaliar a contribuição de um artista através de uma única exposição. O artista vale por sua trajetória. O artista interessa pela vitalidade, resistência, garra de trabalho com que atravessa diversos períodos de sua vida, circunstâncias de seu meio cultural e do mundo em que se move. Ao ver essa exposição de Carmela Gross nos veio à mente seu início como artista no contexto de sua geração, e o modo como ela cresceu e desenvolveu seu discurso plástico-poético. Uma individual é um capítulo, não diz do percurso, verdadeiro comunicador da inteireza da validade ou não da obra desse artista.
A atuação de Carmela Gross no meio artístico brasileiro se inicia num período limite, fins dos anos 60 e começos de 70. Momento em que as técnicas tradicionais (pintura, gravura, desenho, escultura) cediam lugar às inovações mais liberadas possíveis, a partir dos exemplos das realizações dos artistas “pop” ingleses e norte-americanos, a partir do surgimento dos “happenings” e performances, da arte conceitual, da desmaterialização do fazer artístico, finalmente. Ou seja, um jovem artista que desponta nesse instante surge motivado pela arte que sempre se fez, como pintura, mas encontra a seu alcance toda a abertura possível de se imaginar no que tange a meios alternativos. Do período “pop” de Carmela conhecemos dois objetos-instalações: as NUVENS (1967), hoje na Pinacoteca do Estado, executadas em madeira laqueada, e o PRESUNTO (1969), forma mole, em lona, apresentada na II Bienal de Artes Plásticas de Salvador. A década de 70 se constituiria em experimentação contínua para artistas jovens, que nem sequer chegavam a tocar em pincéis ou óleo. É o tempo, no Brasil também, de novos media : vídeo, audiovisuais, super 8, xerox, heliografias, discos com sons concebidos por artistas, etc. É o tempo do “espaço experimental” que o MAM do Rio de Janeiro abriu para esses artistas, e, em São Paulo, da ExpoProjeção 73, sob a curadoria de Aracy Amaral, primeiro encontro nacional de artistas trabalhando com novos media, e das JAC – Jovem Arte Contemporânea – no Museu de Arte Contemporânea da USP, sob a direção de Walter Zanini.
Existiu mesmo nesses anos uma espécie de preconceito contra a pintura, ou o trabalho “realizado” pelas mãos do artista, muito embora lembremo-nos de conversa com Mira Schendel, ocasião em que nos dizia que não podia conceber arte não executada pelo artista. Pensar todos pensam. Agora, concretizar dando fisicalidade a esse pensar, cabe ao artista saber fazê-lo. Para Carmela, neste período efervescente de experimentação livre, o exercício era não apenas com imagens multiplicáveis, porém com o que também se convencionou chamar de “arte de processo”. Ou seja, a artista interferindo sobre ilustrações, imagens reproduzidas em livros, ou imagens superpostas em provas heliográficas de dimensão generosa (5m x 5m).
A característica de disciplina, no ritmo obsessivo de sua grafia surge quando a artista expõe em 1977 (Galeria Mônica Filgueiras/Raquel Arnaud), com desenhos em lápis de cor, formas delimitadas por “máscaras” de papel, racionalidade aliada à concisão, esta já implícita em seu trabalho. A partir de 1978, nos CARIMBOS, o que se observa é mais a multiplicação do gesto gráfico, em ordenação rigorosa. A superfície do papel é coberta por pequenas linhas que se repetem, ou rabiscos, grafismos, manchas ou texturas, numa tipologia única por folha. Claro que o “carimbo” possui uma conotação irônica, peculiar à época da produção múltipla, a confrontar-se com um possível mercado de arte preocupado com a unicidade da obra de arte. E ao mesmo tempo, da imagem do artista como “designer”, projetista de um módulo repetível com a mesma qualidade, em princípio, e distanciado, o criador, do fazer convencional. O mesmo motivo sobre o papel nos traz `a mente este dado sempre presente em Carmela Gross: o repetitivo, o reiterativo, obsessivo de seu gesto. A própria artista se indaga: “Não será esta uma característica do feminino, o repetitivo?” Quem sabe, embora no decorativo esteja implícito também esta qualidade própria do fazer da mulher: no motivo repetido do bordado, do friso, do arranjo diário da mesa, do vaso de flores, da arrumação de uma cama. Em todos estes gestos percebemos, não um fazer isolado, porém como rituais que se repetem continuamente ao longo da vida.
Quando surge em sua obra a sua conhecida série PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, vemos Carmela Gross já vivenciando um novo tempo, o desenho insinuando-se no meio artístico como um esboço de retorno à obra que permanece. Mas as pequenas marcações, que conferem estrutura a esses desenhos, nos remetem a certas imagens de seu período de carimbos, em sua ocupação do espaço. Estranha essa série. Essa estrutura aparente parece existir como base para medir o imensurável, a espacialidade da abóboda celeste, que imaginamos infinita. A artista se debruça sobre o papel (1m x 70cm), e em elaborados traços com lápis de cor, constrói com tenacidade seus trinta e três “céus”, número correspondente à divisão por partes feita pela artista do céu do hemisfério sul. Em seu percurso profissional igualmente esse momento assinala outras preocupações. Inserida no corpo docente da Escola de Comunicações e Artes da USP, coloca-se um desafio para a artista. O de realizar um mestrado, que seja fiel, ao mesmo tempo, a suas especulações anteriores, e neste caso, o desenho como projeto. Coube-lhe então buscar um embasamento teórico que, sem violentação na medida do possível, lhe permitisse uma realização. Um trabalho que nos fala muito de seu fazer obsessivo na elaboração de uma série extensa como esta, ao mesmo tempo carregada de poética visual, impregnada de um certo mistério em seus desígnios, que talvez hajam sido verdadeiro desafio para a artista.
A exposição QUASARES (1983), trazia um nome enigmático, a significar, segundo a artista, “vibrações sonoras captadas por sensores de sons”. Pensávamos estar novamente diante das experimentações da década anterior: impressões em off-set registravam imagens fantasmáticas, a nos transportar incorporeidade em sua imprecisão, alusivas, embora por sua própria indefinição, nada nos remetesse às fontes de onde a artista extraia essas formas interferidas pelos processos até a impressão gráfica.
Foi quando nos demos conta da importância do papel no trabalho de Carmela: o carimbo assume vida sobre o papel, as imagens superpostas exploram as possibilidades do papel heliográfico, o desenho para a construção de um céu ocupa vastos espaços sobre papel, e as impressões QUASARES eram igualmente sobre o mesmo suporte. Na verdade, essa sensibilidade/intimidade com o papel a levaria, a partir de 1987, a pesquisar e trabalhar sobre papel artesanal, produzindo texturas, ao se utilizar do grafite, pigmento e cola, diversificando seus materiais. Mesmo ao ter início sua série de pinturas e relevos pintados, mais recentes, o desenho para Carmela Gross, enfatizando o caráter conceitual de sua produção, parece desempenhar uma função de exercício, diciplina para a criação, às vezes operando junto, por vezes paralelamente, a uma obra “maior”. Mas é nessa segunda metade dos anos 80 que surgem formas fortemente geometrizadas, em contraposição ao gestualismo de factura da pintura.
A virada para a pintura seria uma influência da década de 80, quando o retorno às tintas e às cores foi tão unânime no exterior como no Brasil? É possível que sim, posto que o artista não é imune ao que sucede no meio artístico que o circunda. Embora neste caso longe do puro prazer dionisíaco das cores e gestos pictóricos, e na pintura de Carmela sempre prevaleça o conceito, fidelidade geracional. Assim, na exposição de pintura da Galeria Luisa Strina (1986) parecia transpirar algum classicismo, em suas telas cortadas em planos imperando a simetria e a centralização compositiva. Paradoxalmente, comparecia também a pincelada gestual, o curvilíneo dos formatos se contrapondo à ortogonal, ao quadrado dominante como suporte, ao lado da redução cromática como opção.
A artista refere-se a esse estágio como um período de transição (“possível encontro”) entre a pintura e o desenho: “… um desenho que delimita, projeta, arma e se enrijece na geometria rigorosa de encaixes, e uma pintura que busca o expressivo e a fluidez da matéria cromática, em descristalização do simbólico e do clichê” (catálogo MAC – USP, PINTURA / DESENHO, 1987).
A partir dessas pinturas de limites recortados, fora do retângulo pictórico convencional, assim como de planos encaixados ou justapostos, começariam a emergir concepções livres como formato, e temas conceituais embora figurativos, como labaredas, colunas de fumaça, montanhas, cascatas que vertem com violência em todas as direções desafiando a gravidade, assim como as cortinas dentro do palco dentro do quadro, da vazia cena entreaberta, espaço da representação ausente. Neste período se observa em certos trabalhos novamente a repetição de formas igualmente como tema, assim como em certos trabalhos o espaço virtual da pintura tem continuidade sobre o espaço real, o muro, sobre o qual o gesto gráfico da artista começa a complementar a imagem pictórica.
Esse talvez seja o início da presença de uma grande energia, movimento traduzido em pintura pensada, embora com fluidez de execução com transparências e grafismos a nos remeterem à poética imagem da caverna platoniana, onde parecem projetar-se luminosidades e aparências do exterior (Bienal Internacional de São Paulo, 1989). Seguir-se-iam pinturas em acrílico sobre madeira, em formato diminuto, montadas como uma gigantesca instação pariental. Essa sua produção (1988, Galeria São Paulo) pareceu-nos uma referência, estranha como diante do clima dos trabalhos de Angelo Venosa, como se estivéssemos frente a uma livre ordenação sistemática de elementos e instrumentos de era neolítica por arqueólogos pesquisadores de uma cultura extinta.
Impressão similar ainda nos causariam seus trabalhos expostos na bela exposição da Galeria São Paulo dois anos depois (1990), tanto em OBJETOS, como em TREM, já aqui em alumínio fundido; portanto, presente mais uma vez a especulação por meio de novos materiais que é, por certo, característica da artista. A densidade poética de Carmela Gross alcança um ponto alto, com PRAIA. Aqui quatro placas de alumínio fundido se justapõem, embora essa poética não deixe de remeter-nos, sem qualquer dúvida, ao trabalho do alemão Ulrich Ruckriem (exposto na XX Bienal de São Paulo, 1989), de vigoroso hieratismo, em ampla forma geométrica em pedra, composta igualmente de justaposição de elementos.
Monocromáticos, seus trabalhos a partir desta exposição (em alumínio ou madeira) parecem trazer à tona a sombra, forma virtual, voluntariamente ou não, sutil elemento constitutivo de cada obra, ao mesmo tempo que o relevo, o abandono da tela, se confirma. O monocromatismo mencionado parece refletir também sua característica acentuada como projetista, que se expressa através do desenho. Por outro lado, a artista parece buscar, a partir de então, formas orgânicas ou formas ordenadas da natureza, quase amorfas, como pertencentes ao reino das coisas aquosas; nesse primitivismo já assinalado anteriormente surgiriam em suas peças relevos a insinuar um movimento espiral circular, relevos sempre monocromáticos, “tumores” rijos prestes a explodir, a surgir do muro, misteriosos em suas formas encerradas ou a sugerir uma tentativa de perfuração central. O movimento que emergira em suas obras em 1984 reaparece agora, sob novo formato, em seus trabalhos mais recentes nas pás, ou moinhos (ou HÉLICES) placas de madeira rústica de pintura sempre monocromática, de movimento induzido pela mão do observador, movimento preguiçoso em embalo/ impulso. Nestas peças de grande espacialidade sobre a parede está quase ausente, novamente, no trabalho de Carmela, a mão da artista, projetista/ inventora destas máquinas sem função. São formas retiradas da natureza, sem angulosidade ou linhas retas, sem interferência maior por parte da artista. Em seus desenhos da mesma época a aquosidade já referida parece invadi-los também, na inexistência de uma composição racional, agora sobre papéis artesanais, com formas fecundantes como a mover-se no cosmos uterino ou oceânico, mar de elementos como águas-vivas, de transparências colantes, detidas, suspensas em sua gestação interrompida.
O trabalho de Carmela Gross pertence à contemporaneidade da arte. É de nosso tempo, identificável com as correntes conceituais e com as preocupações experimentais das últimas duas décadas. É certo que existe uma enorme similaridade entre pesquisas de artistas de meios urbanos desenvolvidos, e a obra desta artista, neste sentido, não foge à regra. Difícil seria encontrar nela características que para o meio internacional se pudessem assinalar como indo ao encontro de suas expectativas de uma arte brasileira, sul-americana. Ela bem o sabe e tem sido confrontada, ao expor na América Latina: sua arte talvez fale pouco, seja reticente, em relação ao conturbado meio social e físico brasileiro. Mas esse dado, conforme já registramos em relação a outros artistas, talvez seja consequência de nossa própria instabilidade econômica e injustiça social. O artista se encerra então em sua proposta de trabalho, buscando ouvir-se e projetar os ecos dessas circunstâncias, ou a negação delas, em seu fazer artístico. Isto é: há no Brasil uns poucos – e raros – que expressam algo da realidade social, enquanto outros negam, em rejeição eloqüente, um enfrentamento com essa mesma realidade, num país que tem dificuldade em conscientizar-se em todos os níveis da cidadania.
No caso de Carmela Gross, por outro lado, não vemos em sua trajetória a preocupação em firmar-se como presença de artista em lugar da obra, situação peculiar na arte contemporânea, quando vale o grito, o espetaculoso, o instante de projeção, e não o trabalho que permanece. Nesta artista, por trás de suas experimentações, há um trabalho em seqüência, apreciável através dos anos. Não ocorre em sua contribuição a ostensiva realização como a de execução ou mesmo de recorrência tecnológica de uma Jenny Holzer, nem tampouco a distribuição internacional de uma Cindy Sherman. Pode-se ser contemporâneo sem recorrer ao “marketing” de um Jeff Koons ou de um Christo. Paul Valéry já escreveu que “o prazer está se desvanecendo. Fruição é uma arte perdida. Agora a coisa é intensidade, enormidade, velocidade, ação direta sobre os centros nervosos pelo caminho mais curto”. É sobretudo nos eventos internacionais mais badalados que desaparece de maneira mais marcante essa possibilidade de fruição da obra, por chamar a atenção somente o clamor, por desaparecer a atenção pela obra, que não importa muito, a não ser pelo impacto com que pode atingir o visitante que flana pelo espaço, sendo visto, porém quase sem olhar, freqüentemente sem retorno posto que não há tempo. Claro que há um preço, o do reconhecimento, para o artista que opta por aparecer através de um trabalho ao longo do tempo e não percorrer as arenas do “jet set” das artes. Sobretudo quando se vive num país desamparado culturalmente como é o Brasil de hoje. Mas o fundamental, a nosso ver, é se pertencer a um lugar num determinado momento. O triste é viverem os artistas num país surdo à cultura e suas manifestações, como o Brasil nas últimas décadas. Escreveu Giulio Carlo Argan, que na civilização ocidental-cristã “a arte certamente teve um desenvolvimento histórico correspondente à estrutura historicista dessa civilização. Fez-se a arte com a intenção e a consciência de fazer arte e com a certeza de concorrer, fazendo arte, para fazer a civilização ou a história. A intencionalidade e a consciência da função histórica da arte são, indubitavelmente, os principais fatores da relação que se estabelece entre os fatos artísticos de um mesmo período, entre os períodos sucessivos, entre a atividade artística em geral e as demais atividades do mesmo sistema cultural” (G. C. Argan, História da Arte como História da Cidade, Martins Fontes, São Paulo, p.19). Essa inserção natural da arte na história das sociedades é ignorada no Brasil, onde assistimos estarrecidos a um processo de deculturação galopante, com o meio intelectual e artístico impotente em motivar os cuidados do Estado. E nessa circunstância nos sentimos todos marginais, como batalhando em área sem significação, quando deveria ocorrer uma intensa campanha de valorização da criação artística, a fim de se conferir dignidade ao vilipendiado ser brasileiro. A relação da arte com a sociedade nem se coloca no estágio em que vivemos, pois não parece que haja preocupações com a arte do passado, o que seria fundamental para assentar, criar e divulgar nossa memória, e, portanto, muito menos com o presente. Talvez a ausência de valores espirituais e artíticos no Brasil seja de tal monta que o surgimento dos meios de comunicação de massa parecem se impor como os únicos válidos, inclusive a nível político, acima das equipes governamentais, subservientes à poderosa mole televisiva. Estas considerações parecem-nos uma necessária reflexão, no momento em que abordamos o percurso da arte de Carmela Gross. Mas ela terá por certo, em dias melhores, por seu espaço conquistado, uma obra inscrita dentro do panorama da arte brasileira desta segunda metade de nosso século.
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Carmela Gross: Hélices. Rio de Janeiro: MAM, 1993. Catálogo de exposição.
Carmela Gross’ individual exhibition in 1990 once again brought the idea that the contribution if en artist cannot be evaluated based on a single exposition. When considering an artist, it is his trajectory that is important. The artist is contemplated for his trajectory that is important. The artist is contemplated for his vitality, resistance, the enthusiasm with which he works thought several periods of his life, circumstances of his cultural environment and the word in which he lives. Carmela Gross’ works reminded us of her beginning as an artist in the context of her generation, and the manner in which she grew and developed her artistic-poetic discourse. An individual exposition is a chapter; it does not refer to the trajectory, the telltale sing of the complete validity of the work of an artist.
Carmela Gross began her Brazilian artistic work at the end of a period, the late 60’s and early 70’s, a moment when traditional techniques (painting, engraving, drawing, sculpture) gave way unrestricted innovations possible, based on the examples of the works of English and North American pop artists, on the emergence of happenings and performances, of conceptual art, of the dematerialization of artistic work, lastly. In other words, a young artist who was revealing himself at that moment was motivated by age-old art such as painting, but found within his reach an opening to everything imaginable regarding alternative media. In Carmela pop period we see two objects/ installations: CLOUDS, 1967, which now belongs to the State Pinacotheca, made on lacquered wood, and HAM, 1969, a soft form, on canvas, presented at the II Art Biennial of Salvador. The 70’s would be a continuous experiment for young artists, who would not approach brushes or oil. They are the times, also in Brazil, of new media: video, audiovisuals, super 8, photocopy, heliographs, records with sounds conceived by artists etc. it is the period of “experimental space” that the Museum of Modern Art of Rio de Janeiro opened for these artists, and in São Paulo, of ExpoProjeção 73, the first national gathering of artists working with new media, organized by Aracy Amaral, and JAC- Young Contemporary Art – at the Museum of Contemporary Art of the University of São Paulo, the museum under the direction of Walter Zanini.
In these years there was actually a kind of prejudice against painting or work “done” by the hands of an artist, even though we must not disregard a conversation with Mira Schendel, who told us that art could not be conceived if not done by an artist. Thinking is something that everyone does. But only an artist can organize these thoughts and make something concrete. For Carmela, in this effervescent period of free experimentation, the exercise was not only with multipliable images but also with the so-called “art of process”. That is, the art interfering in illustrations, images reproduced in books, or superposed images on oversized (5m x 5m) heliographic proofs.
The characteristic of discipline in the obsessive pace of the artist’s style can be seen in her exhibits in 1977 (Mônica Filgueiras and Raquel Arnauld Gallery), with drawings in colored pencil, shapes outlined by paper “masks”, rationality paired with conciseness, the latter already implicit in her work. As of 1978, in STAMPS, the multiplication of the graphic gesture stands out in strict order. The surface of the paper is covered by small repeating lines, or scribbles, outlines, strokes or textures, with a typology unique to each sheet. Certainly the word “stamp” has an ironic connotation peculiar to the era of multiple production, confronting a possible marked concerned with the uniqueness of works of art, and at the same time, of the image of an artist as a designer of a module that can in principal be repeated with the same quality, a isolating the creator of conventional work. The same motive on paper brings to mind this ever-present aspect in Carmela Gross: the repetitive, the reiterative, and the obsessive of her gesture. Even the artist asks herself: “isn’t this repetitiveness a feminine characteristic?” Perhaps. This quality in women’s work is also implicit in decoration: in the repeated motive of needlework, of edgings, of the daily table arrangement, of the flower vase, of the making of a bed. In all of these acts there is not an isolated task, but rituals, which are repeated continuously throughout a life time.
During the production of her well-known series PROJECT FOR THE CONSTRUCTION OF A SKY, we find Carmela Gross already experiencing a new phase, the drawing been introduced into the artistic environment as a sketch of the work which will be permanent. But the small marks providing the structure for these drawings remind as of certain image from her period of stamps, in her occupation of space. These apparent structure seems to exist as a basis for measuring in the un-measurable, the spatiality of the top of heaven which we imagine infinite. The artist leans over the paper (1m x 70cm) and in careful lines with colored pencils, tenaciously builds her thirty-three “skies”, a number corresponding to the artist’s division of the sky of the southern hemisphere. Likewise, in her professional course this moment bring other concerns. As a professor of the School of Communication and Arts of the University of São Paulo, the artist faces a challenge: that of obtaining a master’s degree as well as remaining faithful to her previous speculation, and in this case with drawing as a project. So her task was to find a theoretical foundation, which would allow her to realize her project without major changes. It is a work that reveals a great deal about her obsessiveness in the making of an extensive series like this, at the same time laden with visual poetics and imbued with a certain mystery in its designs.
The exposition QUASARS (1983) had an enigmatic name, which according to the artist, meant “sound vibration captured by sound sensors”. Once again we are faced with experiments of the previous decade: off set prints registered apparitional images of inexact immateriality; they are allusive, despite the fact that their inherent indefiniteness did not lead us to the sources form which the artist extracted these forms interfered with by processes up to the graphic printing.
Only then were we able to realize the importance of paper in Carmela work: the stamp is brought to life on paper. Superposed images explore the possibilities of heliographic paper, the drawing for the construction of the sky occupies vast spaces on paper, and the QUASARS prints were also on paper. In fact this sensitivity/intimacy with paper would prompt her, as of 1987, to research a work with crafted paper, producing textures using lead, pigments and glue, diversifying her materials. Even after the beginning of her series of paintings and more recently, painted relieves, drawing for Carmela Gross, emphasizing the conceptual character of her production, seems to be an exercise, discipline for the creation of a “larger” work, sometimes working together, sometimes alongside. But it is in this second half of the 80’s that strongly geometrized forms appear, contrasting the gesture facture of painting.
Would the change in painting be an influence from the 80’s, when the return to paints and to colors was so widespread abroad as well as in Brazil? It may be so, given that the artist is not immune to what happens in the artistic environment that surrounds him. In spite of the fact that in this case it is far from the sheer Dionysian pleasure of colors and pictorial gestures, in Carmela painting the concept always prevails, generation loyalty. Thus, in the painting exhibition of the Luisa Strina Gallery (1986) some classicism seemed to transpire in her canvasses cut in plays dominated by symmetry and composing centralization. Paradoxically there was also a gesture stroke, the curvilinear aspect of the shapes in contrast to the orthogonal once, to the basic dominating square, with chromatic reduction as an option.
The artist refers to this stage as a period of transition (“possible meeting”) between painting and drawing: “…a drawing which delineates, designs, establishes and is solidified in the strict a geometry of connections, and a painting which searches for expressiveness and the fluidity of the chromatic material in de-crystallizations of symbols and clichés” (Museum of Contemporary Art – University of São Paulo Catalogue, PAINTING / DRAWING, 1987). From theses paintings with clipped borders outside the conventional pictorial rectangle, as well as connected or juxtaposed plays, free conceptions would begin to emerge concerning shape, and conceptual albeit figure themes such as flames, columns of smoke, mountains, waterfalls which violently flow in all directions defying gravity, as well as curtains behind curtains on a stage within the picture of the empty half-open scene, an absent space of representation. During this period the repetition of forms can also be observed as the theme in certain works, just as in others the virtual space of the painting is continued in real space, the wall, over which the graphic gesture of the artist begins to complement the pictorial image.
Perhaps this is the beginning of the presence of a great energy, a movement translated into a painting calculated but with fluidity in its execution, with transparencies and styles of drawing to refer us to the poetical image of the platonic cave, were brightness and glimpses of the exterior seem to be projected (International Biennial of São Paulo, 1989). Paintings in acrylic on canvas and wood were to follow, in a smaller form, assembled as a gigantic mural. This production (1988, São Paulo Gallery) seemed to us to be a reference, strange like the atmosphere of Angelo Venosa works, as if we were standing before a free systematic ordering of elements and instruments from the Neolithic era by archeologist researching and extinct culture.
We had a similar impression of her works in the beautiful exposition of the São Paulo Gallery two years later (1990), both in OBJECTS and in TRAIN. These works were in cast aluminum, once again an experiment with new materials that is unquestionably a characteristic of the artist. Carmela Gross’ poetic density reaches a hi point with BEACH. Her four plates of cast aluminum are juxtaposed with rare beauty of conception and result. In front of this piece it is impossible not to recall the work of Ulrich Rückriem (exhibited in the XXth International Biennial of São Paulo edition, 1989), of vigorous hieratic, in an expanded geometrical shape in stone, also composed of the juxtaposition of elements.
Her monochromatic works as of this exposition (in aluminum or wood) seem to bring out, voluntarily or not, the virtual form of the shadow, a subtle constitutive element of each work, while relief, the escape from the canvas, is confirmed. On the other hand, from here on the artist seems to search for organic forms or ordered forms of nature, almost amorphous, as members of the kingdom of aqueous thing; with in this primitivism already mentioned her pieces show relieves insinuating a circular spiral movement, always monochromatic relieves, stiff “tumors” on the verge of exploding, of emerging from the wall, mysterious in their enclosed forms or suggesting and attempt at a central perforation. The movement with had emerged in her works in 1984 reappears with a new form in her more recent work as blades, or mills (or PROPELLERS): pieces of rustic wood, always painted monochromatically, which can be moved by the hand of the observer, starting slowly. In these works occupying a larger space on the wall, again in the hand of the artist, the designer/inventor of these functionless machines, is almost totally absent. They are shapes taken from nature, without angles or straight lines, with little interference on the part of the artist. The liquidness already mentioned above also invades her drawings of the same period, in the inexistence of a rational composition, now on crafted paper with organic forms as if moving in a uterine or oceanic cosmos, an ocean of elements like jellyfish with viscous transparencies, hindered, suspended in their interrupted gestation.
Carmela Gross’ work belongs to the contemporaneity of art. It is part of our time, identifiable with the conceptual currents and with the experimental concerns of the last two decades. It is certain that there exists a great similarity among studies of artists of developed urban environments, and the work of this artist in this sense in no exception. It would be difficult to find in her the characteristics that for the international environment would fulfill expectations for Brazilian, South American Art. She knows this very well and has been confronted when exposing in Latin American: perhaps her art says little, is reticent, compared to the turbulent Brazilian social and physical environment. But this fact, as we have seen with other artist, might be a consequence of our own economic instability and social injustice. The artist therefore shuts herself in her work proposal, attempting to listen to herself and plan the echoes of these circumstances or the denial of them, in her artistic work. That is to say, in Brazil those who express a bit of the social reality are fill and far between; others deny, with eloquent rejection, confrontation with this same reality in a country in which it is difficult to inform people at all levels.
In the case of Carmela Gross, on the other hand we do not see in her trajectory the concern with establishing her personal presence in place of her work, a peculiar situation in contemporary art were what is important is a shout, the spectacular, an instant of planning, not the work which remains. Behind the experimentations of this work there is sequential work, which can be appreciate though the years. She does not contribute any ostensive realization like the hi-technologic execution of the works of Jenny Holzer, nor is the international distribution of Cindy Sherman’s art. One can be contemporary without resorting the marketing of Jeff Koons or Christo. Paul Valéry wrote that “pleasure is disappearing. Fruition is a lost art. Now it is intensity, enormity, speed, direct action on nervous centers, in the shortest way possible”. It is above all in the most talked-about international events that this possibility for fruition of work disappears most significantly, by the fact that only clamor draws attention due to the disappearance of interest in the work, which does not matter much save for the impact that it may have on the visitor who strolls though biennials or exhibition space, superficially regarding the works to know effect given the lack of time. There is surely a price, that of recognition, for the artist who chooses to appear though a work overtime and not pass though the arenas of the jet set of the arts, specially when one leaves in a culturally destitute country like Brazil today. But what is fundamental, in our point of view, is to belong to a place at a certain time (hic at nunc). It is rather the depressing for artists to live in a country oblivious to culture and its manifestations, like Brazil in the last few decades. Giulio Carlo Argan wrote that in western Christian civilization “art certainly had a historic development corresponding to the historicist structure of this civilization, art was created with the intention and awareness of creating art and with the certainty of thus contributing to the making of civilization or history. Intentionality and the awareness of the historic role of art are clearly the main factors of the relation established among the artistic facts of one period, among the successive periods, among artistic activity in general and the other activities of the same cultural system” (G. C. Argan – History of Art as History of the City, Martins Fontes, São Paulo, 1992, p.19). This natural insertion of art in the history of societies is ignored in Brazil, were aghast, we watch a swift process of de-culturing, the intellectual and artistic environment unable to obtain the assistance of the State. And under the circumstance we all feel isolated, struggling for a meaningless area, when there should be an aggressive movement for the appreciation of artistic creation in order to confer dignity to the degraded Brazilian bean. The relationship of art and society is not even present in the stage in which we live, for there does not seem to be any concern with the art of the past which is fundamental to establish create and disclosed our memory; there is even less concern with the present. Perhaps the absence of spiritual and artistic values in Brazil is of such significance that means of mass communication are imposed as the only valid ones, even at the political level above governmental teams subservience to the powerful television mass. We feel these considerations are a necessary reflection upon examining the course of the coherent art of Carmela Gross. But in better days she will certainly have her work established in the panorama of Brazilian art of the second half of this century.
Published in:
Carmela Gross: Hélices. Rio de Janeiro: MAM, 1993. Exhibition catalogue.
A obra de Carmela Gross nesta 20ª Bienal Internacional de São Paulo revela, desde a primeira aproximação, o processo pelo qual a artista submete cada uma de suas precisas intenções a todas as outras. Desvenda o campo de forças das transformações dialéticas entre agentes de um universo em interação e movimento, no interior do qual é introduzido o observador.
O gesto primordial situa o homem no espaço. Define o lugar, delimitado por claras superfícies abstratas, paredes ortogonais, muros a serem transpostos. O interior mostra-se ilimitado, de um vazio imensurável plástico, elástico, maior que o continente. Entramos assim no âmbito da própria imagem. A experiência do espaço real, imediatamente presente, deverá permanecer uma referência constante e perturbadora, enquanto a imagem poderá deslizar, percorrer o vácuo, durar no tempo, lançar-se em vôo livre e saltos no escuro.
Há muitos anos, Carmela vem intensificando as forças que animam suas formas em gravitação, tão vibrantes e oscilantes que parecem não se conter em si mesmas. Não por acaso, Carmela tem associado a constituição da matéria visível a condensações que atingem os limites da integração e da desintegração espacial, a corpos em movimento e suspensão. Suas formas pulsam e os efeitos de adensamento e rarefação das figuras vão definindo entes do universo da visualidade.
Ao longo dos anos, Carmela percorreu livremente o impalpável espaço aéreo, o imenso vazio, criou intimidade com o desconhecido e o incerto. Seu domínio se estabeleceu pela eliminação de todo vestígio tátil e de todo corpo físico, em proveito da imagem ótica, esta mais abstrata. Também pelo humor peculiar com que soube propor seus jogos óticos e enganar a vista com a ilusão e magia da imagem. O PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, de 1981, fixava manchas fugidias, imagens desmanchadas comentadas ironicamente por notações geométricas em grafia de desenho técnico. Em conjunto, formavam paisagem envolvente. Os QUASARES expunham a indefinição da imagem ótica desfocada e abreviada em mínimos meios.
As figuras que definem o universo visível de Carmela apresentam-se em momento anterior ao signo. Resistem como forma aos automatismos e às facilidades da linguagem e se impõem como presenças visuais anteriores a qualquer significação. Tudo é recriado pelo desvio do semelhante e aparece como uma revelação primeira, que guarda o encanto da forma e o frescor da garatuja infantil. A familiaridade que descobrimos em relação com os rabiscos da Carmela procede seguramente da fluência dos gestos curvos e da afetividade da forma, não provém do terreno das idéias. Carmela provoca lembranças ancestrais.
As figurações dos paíneis murais presentes nesta 20ª Bienal são densas sedimentações dessa experiência acumulada pela artista, permanências obstinadas da remota vida do homem das cavernas, ecos atravessando o tempo. Os gestos largos e simples estão agigantados numa grandeza cósmica. Cortam a continuidade de uma suave superfície de papel de fibra artesanal pintada de tinta prateada. Os riscos rasgam o espaço luminoso e espelhante como questionamentos, não-objetividades, não-aparições. São desaparições, sombras que ampliam a luminosidade e a espacialidade. As mesmas figuras projetadas ou refletidas numa parede frontal à primeira são então absorvidas, como se, filtradas por uma poeira rósea, adentrassem a porosa superfície da parede, nela se inscrevendo. São ainda visões a distância.
A apropriação da terceira parede, menor, dá-se em outra escala, numa escrita com a sugestão de um X (um X marca: aqui, um X anula: não). Trata-se de uma sugestão, não chegando a se configurar o sinal, cujos riscos, orientados para diversos sentidos espaciais, se dispersam. A rigor, não se trata de riscos, nem de pintura. Nem tampouco se deve falar em objeto, apesar do desenho ser construído com hastes de metal pintado de preto e valorizado pelas tensões obtidas por meio da ambigüidade existente entre o traçado da mão e o material fundido.
Diante da dispersão das hastes do não-objeto, sinal que não se divisa, um ponto ocupa a quarta parede. Momento de concentração, resultante da superposição de várias camadas aglomeradas. É o contraponto necessário às teias imaginárias que enrendam o homem nesse espaço.
Publicado em:
ARTISTAS brasileiros na 20ª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal: Ed. Marca D’Água, 1989. p.58-59.
Ao contrário do que se pensa, artistas não são nada invejosos do sucesso dos colegas. Digo isso porque gosto muito da atual exposição da Carmela Gross na Galeria São Paulo e gosto principalmente do modo como ela é e como encara o trabalho. Seria tão bom se aqui houvesse mais bons artistas e especialmente artistas do tipo da Carmela, se é que artistas vêm em tipos. Gostaria que a emulação fosse mais forte e deixasse todo mundo mais elétrico.
Para o artista já formado, gostar do trabalho de um outro é difícil; por um instante é preciso abdicar da própria identidade e se deixar levar por outra visão, outra cabeça. Imagine Mondrian parando um instante com o esquadro e o tira-linhas no ar e pensando: “Esse tal de Van Gogh é bom mesmo… e se ele estiver certo?” Pessoalmente duvido que tenha pensado isso e se pensou nunca disse. Se penso no trabalho da Carmela é impossível deixar de comparar com o meu. Há uma semelhança superficial: formas recortadas, materiais estranhos, um uso semelhante do preto e do branco. No essencial somos muito diferntes. O mundo visível é minha fonte e também meu limite; de certo modo, eu reajo ao mundo enquanto ela age por conta própria – temos os sinais trocados. A maluca simplesmente faz o que lhe dá na telha, com uma desenvoltura de pasmar e isso é incrível. Meu trabalho é mais tímido que o dela (mais belas-artes, se é que sou claro) e fico torcendo aqui de trás: vai, Carmela, dá neles que eu vou depois.
Arte experimental é um pleonasmo – se não é experimental, se não trás à tona uma face nova da consciência, não é arte. Por outro lado, como dizia o Charles Fort, só é novo o que está esquecido. Pensando no Picasso, no Klee, constato que neles cada obra é sempre nova e ao mesmo tempo bate em algo que já vimos antes. Ampliar o alcance da consciência, própria e dos espectadores, sem romper a rede e ser levado para o hospício é a arte do bom artista. O Picasso, malandro como ele só, fazia uma revolução por dia e em seguida vendia resíduo físico dessa revolução por uma nota, não por cupidez mas para garantir que ela sobrevivesse. Em cima de muita lareira burguesa há bombas-relógio inacreditáveis. Assim também Carmela faz peças que são simultaneamente desejáveis e desafiadoras, arte altamente experimental que não fica no gueto nem no projeto mas ocupa majestosamente uma galeria importante. Colecionadores sérios, coragem!
Publicado em:
Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 09 ago. 1988. Ilustrada, p.E1.
As formas elementares reveladas recentemente pela artista Carmela Gross provocaram a curiosidade do observador que, ultrapassando o momento inicial de estranheza, submete-se às experiências perceptivas destas configurações ativas.
Elementares, sem se parecer com objeto algum, intencionalmente desassemelhadas das referências habituais, estas formas impedem jogos associativos, que porventura possam oferecer maior comodidade ao leitor. Por isso mesmo, inusitadas, apresentam um alto teor de legibilidade. São corpos que flutuam inquietos, pairam sobre o papel. Matéria em suspensão, gravitam na dinâmica invisível dos eixos estruturais ocultos do papel. São campos de força ativos, magnéticos, suscitando uma experiência visual intensa em quem observar atento estes corpos, mutantes fixados em um momento de sua probabilidade e revelados na duração do tempo do olhar. A rigor, não são corpos, senão imagens. Silhuetas flutuantes de aparência homogênea. Indefiníveis pelos contornos, que se desmancham e irradiam a mancha visual. Sobre ela a vista pousa, como um tato, e descansa, desfocada, na apreensão geral, para acordar com a luminosidade do contorno branco, que aparece como uma aura em torno do esfumado.
Carmela chamou-as primeiro de buracos negros. Identificou-as depois com os quasares, quase-estrelas, radiofontes quase estelares recentemente descobertas por radioastrônomos. Um quasar se parece com uma galáxia e não é uma estrela. Emite ondas radioéletricas tão intensamente como as estrelas não fazem. Em torno dos quasares surgiu muita especulação e muito mistério: tão distantes da Terra, que não podemos medi-los; emitem tanta energia, a ponto de podermos receber sua radiação. Inquietam por sua aparência, por serem muito pequenos, por sua energia, por estarem muito distantes.
As sucintas descrições dos quasares, encontradas em um guia de astronomia de Colan Ronan, forneceram o nome para as experiências plásticas já concluídas por Carmela. Confirmação sensível. A artista associa o caráter enigmático dos corpos descobertos às imagens recém-criadas. Por que estas configurações plásticas se apresentam, oticamente, tão ativas? De que materal se formam? Qual teria sido sua origem?
As manchas escuras se definem como unidades elementares e aparecem sob vários formatos, mas sempre densas e compactas, em torno de sua própria centralidade, mesmo quando apresentam pequenas assimetrias e variações com relação a este centro. Esta unidade elementar é construída também pela disposição nuclear da forma no campo visual, o centro da mancha escura coincidente com um eixo imaginário da folha branca de papel, no caso, com o eixo vertical central.
Parecem resultar de cuidadosa operação cirúrgica. As etapas deste processo não são evidentes, estão ocultas. Imagens revelam-se abruptamente e não deixam indícios para a compreensão de seus nexos causais. Surpreendem. Por isso mesmo, intrigam e provocam a interrogação. São resultado de sucessivas traduções de uma imagem em outra e acabam por negar a equivalência entre os casos extremos. Uma coisa que passa a ser outra. Salto qualitativo. Mas também ironia.
Convém ressaltar que, em nenhum momento, Carmela se relaciona com o real, o diálogo se estabelece entre o olho e a imagem – este substituto. A artista se move no mundo da linguagem, dos signos que duplicam as coisas, no universo dos códigos, processos, meios e princípios de representação. Conhece bem a nova dimensão da questão advinda da industrialização recente, que ampliou espantosamente o mundo reprodutível, trocável e transferível por meio dos recursos da tecnologia. Os sons e gestos que estão no lugar das coisas, os nomes, a grafia do desenho e da palavra, a escrita. A imprensa, no lugar da escrita. As alterações tecnológicas da indústria da informação. Reprodução do som e da imagem. Fotografia. O desenho não é mais o mesmo a partir da fotogravura. Reprodução do tempo: o filme de cinema e a TV, manipulação do tempo com o vídeoteipe. O desenho na grafia eletrônica e a reprodução do espaço tridimensional. Carmela encontra-se diante da atual saturação de signos, produzidos pelas complexas operações tecnológicas. É com relação a eles que constitui imagens radicais, que retornam à raiz, a seus fundamentos. Imagens fundamentais. Usa também processos técnicos. Em contra-ataque, poetiza, fabrica ironias.
Tanto os CARIMBOS, realizados em 1978, quanto o PROJETO PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CÉU, de 1981, já demonstravam a atenção voltada para os meios técnicos, sejam meios de representação, ideação, reprodução do espaço, sejam instrumentos e meios de materialização e execução da idéia. Carmela ampliava as possibilidades de reprodução manual pelo carimbo, descorria sobre notações gráficas, critérios de projeção espacial, métodos de desenhoe e cartas para a construção do céu. O humor insurgia silencioso e mudava a pontuação. A inversão de sinal, tudo não passava de ilusão. Evidenciava-se, então, que a artista buscava a relação direta e não mediatizava com o mundo, em que um gesto imediato – sem carimbo – apontasse um mundo impalpável, sem coisas. Revelava-se então o mundo incomensurável e incorpóreo, feito de matéria gráfica e plástica e transparências que desvendam o seu fascínio pela nuvem e pelo céu. Construia signos do irreal, do estado permanente do sonho. Como a nuvem de tijolo e as casas de céu, todas as imagens eram aspirações que desmentiam as notações técnicas no interior do próprio desenho. Eram mentalizações.
Como indicam esses trabalhos ainda recentes, Carmela realizava um discurso artístico sobre a arte.
Vejamos os QUASARES. Aqui a menção ao processo de criação não é explícita. A artista parte de pequenas ilustrações, quase todas retiradas da Enciclopédia. A escolha inicial recai, portanto, sobre desenhos para reprodução, precisamente gravuras em metal do século XVIII.
Vale notar que atualmente estas ilustrações têm conquistado o interesse de editoras européias e encontram-se em reedições que reúnem exclusivamente as gravuras da Enciclopédia. Artistas gráficos contemporâneos também têm sido atraídos por esta sorte de imagem, a ponto de utilizá-la em suas soluções. Carmela nelas encontra o desenho lavado, lambido e impessoal, mais ou menos o que representaria para nossa época um catálogo de peças. É significativo que tenha partido justamente destas figuras. A visão enciclopédica, que se propõe na época como um sistema aberto de conhecimento, refletindo sobre cada aspecto do universo ordenado pela razão, chega pelas ilustrações reeditadas sob a forma de registro figuras inventariadas, cada uma em sua classe. São plantas, animais, objetos e instrumentos, cujos desenhos não resultam de fonte única de luz, nem decorrem do ponto de vista monocular, propagado pela estética do Renascimento. São perfis, descrições, anotações, arabescos, enfim, escritura sem espacialidade perspectiva. Cada figura possui uma visualidade em si, nåo se definindo nas relações de proporção e medida matemáticas. Nestes desenhos de pequeno porte, os objetos ao cerco geométrico.
As figuras simples – como uma espada ou uma planta – serão submetidas pela artista ao processo de ampliação por xerox. O xerox, como se sabe, homogeiniza o tom, elimina valores, volumes, destituindo a imagem de detalhes. Ampliar várias vezes a mesma imagem significa também aproximar mais e mais o olho, olhar com uma lupa.
Após sucessivas reproduções-ampliações, a imagem é fotografada, sendo o negativo ampliado sem foco. É esta operação que vai conduzir à seleção destas formas mutantes. É eliminada a figura que resiste à destruição semântica e cuja forma ainda seja alusiva, isto é, ofereça alguma sugestão, quer de um objeto, quer de uma forma conhecida. É selecionada a figura que perdeu qualquer referência.
As traduções sucessivas destruíram o signo, resgatando a visão direta da forma, sensação reinstaurada pela mancha escura. O processo demonstra a redução do signo às tendências estruturais de sua forma visual, tendências que não devem ser confundidas com a sua aparência, nem com a linha limite de seu contorno, tendências que apontam sentidos intrínsecos.
As duas operações básicas controladas pelo olhar seguro da artista – a aproximação da imagem, aumentando-a, e o enfraquecimento do seu teor de representação – destruíram o signo para reduzi-lo à imagem da sensação, ao momento inicial da apreensão visual – o sentir com a vista –, anterior à percepção lógica cerebral, anterior ao conceito. Este momento de sensação da forma, pode o leitor descubri-lo, por analogia, na leitura desta exata palavra, que lhe chega pela grafia, irmã do desenho, sob a forma de alfabeto de letras estruturadas por valores visuais impressos. A compreensão do texto apóia-se no gesto do olhar que, na fração de segundo, registra o detalhe da letra, forma-suporte do significado. O momento anterior à intelecção do texto, e não o texto, pode oferecer uma comparação, ainda que grosseira, ao objeto de investigação de Carmela. O que a artista ampliou e evidenciou, já era familiar, já víamos sem concentrar a atenção do olhar.
Carmela construiu as imagens primordiais, anteriores à percepção e à significação: forças visuais que constituem a forma ou estímulos que constituem as forças.
A forma de representação do espaço exterior introjetou-se em espaco interior. O espaço existente entre os homens e os quasares condensou-se nesta experiência. O olho aproximou-se tanto para investigar a figura que ela se tornou imagem mental. A imagem tão mediada por operações técnicas não passa de imagem imediata da consciência, evidência da sensação.
Publicado em:
Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 09 out. 1983. Folhetim, p.8-9.
Este gesto é um jeito de transmitir um desejo, uma decisão, que mostra como a quantidade , efetivamente, gera uma nova qualidade.
A força da repetição, a ordem em cima da mesa, a afirmação, ritmada, obsessiva, esta infiltração da burocracia no território do desenho, dá um novo rumo aos nossos signos ou estígmas.
O mais antigo carimbo de C. . . . . ., digo Carmela, era uma referência ao gesto de carimbar: era murro sobre a superfície, rija e imperturbável. Cada gesto mostrava a ação mecânica da alavanca-braço; a mecanização do ser humano e ainda assim, conotando pelo já feito, o carimbo, as maneiras de trabalhar de muita gente: desde o artesanato obstinado, repetitivo, o artesanato para turista.
Aqui está o que os burocratas chamariam de processo do processo.
Tem mais: Carmela separou fragmentos de linhas, de vistos, de chamadastipográficas. Sim, há qualquer coisa de tipográfico, onde a própria artista se faz máquina – uma espécie de Minerva, por exemplo, a serviço de uma forma de recolher o típico ou o tipo, agrupando-os, para conservar o repertório de um desenho desmanchado. Às vezes, uma pincelada em vírgula, um visto, hachuras, etc..
São como as caixas, onde o tipógrafo guarda cada letra, cada vírgula, cada estrela, cada signo, que pode significar, apesar do isolamento.
Tipografia imaginária, com espaços surpreendentes, sem pontos, sem cíceros.
Um processo sem parecer.
A reprodutibilidade da obra de arte num escritório improvisado. O quanto ela consegue manter no originariamente transmissível, o que vale dizer, do autêntico.
A fadiga interminável da situação clichê não consegue aniquilar o significado do processo.
Um modo de qualificar o meio ou de narrar.
A leitura antes da leitura.
A velocidade escondendo o imobilismo.
A saturação, enrijecida, compulsiva, de um gesto qualquer, como este gesto sem jeito de escrever.
…assim mesmo, um mais além, entre os espaços: uma organização do campo perceptivo; a busca, nesse espaço, de uma situação nova; caminho de formigas, carregando a folha verde, que é e será o suporte deste trabalho constante. Esquecemos de falar de Kafka. Mas isto é transmissão de pensamento do meu tempo de bancário e de funcionário sem função…
São Paulo, 28 de maio de 1978.
Publicado em / Published in:
Carmela Gross: Carimbos. Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1978. Folder da exposição.
Eu posso ficar dentro de casa.
Você pode ficar na rua.
Esta é uma questão que lhe compete.
Mas está tudo tão opaco!
As luzes estão apagadas.
Talvez seja necessário descolar algumas coisas. Talvez não seja apenas tirar a máscara que também é um processo per sonare – para tornar mais sonoro, mais evidente, mais pessoal.
Haverá por acaso um cenário armado? Acenderam-se as luzes coloridas para representar a cena silenciada. De repente, um canto da cidade, no perfil dos telhados.
Mas a cor vem, pouco a pouco, e vive, interiormente, tão obsessiva, no seu desejo de preencher as superfícies, como se fosse um todo homogêneo.
Mas a observação mais atenta demonstrará a riqueza do desejo.
Há uma superfície que quer voltar a ser superfície… e não pode.
A qualidade material, a ponta do lápis escreve uma outra pauta. Comprometeu tudo.
Adeus nossos cadernos escolares! Hoje o que está aqui são outros traçados, com larguras e tensões maiores. Leio esta gigantesca cartilha da artista no mundo moderno.
Minha cadeira.
Minha cidade.
Tanta similitude neste trabalho entre o cotidiano e a arte.
Cobertor carinhosamente estendido para uma criança.
E a cidade deles também se intercala.
Verticalidade e horizontalidades cinzas, quase negras, mas um drama negro, de pintor, de artista, cujo lápis faz o escuro cada vez mais colorido.
Acendam assim as luzes da cidade nova. Nas grades de ferro de nossas casas há feridas iguais às cidades caóticas em decomposição.
O mais difícil é virar o céu pelo avesso e trazê-lo azul para o lado de dentro de um labirinto transparente.
Publicado em / Published in:
Carmela Gross: Desenhos. Gabinete de Artes Gráficas, São Paulo, 1977. Folder da exposição.