MODUS OPERANDI – ELUCUBRAÇÕES EM TORNO DOS TRABALHOS RECENTES DE RAFAEL ASSEF
Por Denise Gadelha
A fotografia, por ser uma imagem-técnica, fruto da ciência aplicada, está fatalmente impregnada pela sensação de veracidade. Entretanto, apesar de sua aparente natureza objetiva, toda fotografia é em última instância produto de uma construção circunstancial que induz sua significação, em maior ou menor grau. Mesmo quando não há intervenção deliberada por parte do criador (i.e. manipulação de cena, iluminação, recorte, montagem, etc.) o conteúdo da imagem fotográfica não é neutro nem estável, pois sua mensagem também é construída pela situação específica em que é apresentada.
Tomemos como exemplo as fotografias de Eadweard Muybridge, peças-chave para uma mudança no paradigma visual moderno. Ainda que este nome não seja familiar ao leitor, provavelmente a imagem estará armazenada em sua memória: quem não se recorda de um conjunto de fotografias vintage mostrando passo a passo cada etapa do movimento de um ser (humano, cavalos, pássaros, etc.) diante de um fundo neutro? Muybridge foi pioneiro na exibição de fotografias em série e na disposição em formato de grade, e, embora estes artifícios sejam muito simples, o impacto causado na visualidade da época foi inestimável. Inicialmente esta investigação fotográfica foi encomendada pelo lendário magnata Stanford que era aficionado por cavalos de corrida e havia apostado que o animal teria as quatro patas no ar em algum momento do galope. Esta demanda específica viabilizou o financiamento de pesquisas para o aperfeiçoamento técnico necessário capaz de decompor o registro do movimento em frações mínimas. Apesar da missão objetiva de produzir evidências irrefutáveis, o método de Muybridge não costumava seguir a imparcialidade do rigor científico. Aparentemente, sabe-se através dos seus contatos fotográficos que a sequência apresentada não estava necessariamente na ordem direta da captura. Poderia ser editada para realçar a representação ideal do movimento. Portanto, tais imagens possuem objetividade sem neutralidade. Podem ser consideradas como documentos verídicos, mas também podem ser vistas como criação estética revolucionária, por exemplo, como precursoras da sétima arte – o cinema.
Mais do que um instrumento que registra o passado, a fotografia colabora para a sedimentação de uma versão de outra realidade temporal ecoando no agora. Um testemunho sempre será a apresentação da possibilidade de um testemunho. Com a fotografia não temos o índice em si, mas a potência de um índice. Nesse sentido, o filósofo Vilém Flusser declarou acreditar que a postura das pessoas diante da imagem fotográfica está mudando, pois não vemos mais as fotografias como representações do mundo, mas sim como articulações de pensamento.
A representação sempre foi uma ferramenta para consolidar opiniões sobre a realidade, capaz de incutir certa versão dos fatos na memória coletiva. Esta característica é ainda mais eficaz no caso das imagens-técnicas cuja objetividade mecânica tende à sua associação com a veracidade documental. No âmbito social, historicamente aqueles que detêm os meios para produzir representações exercem o poder de propagar sua verdade. Até o surgimento da fotografia a capacidade de produção de imagens estava restrita à elite. A invenção da fotografia proporcionou uma democratização de fato, de ordem prática, ao possibilitar que um número cada vez maior de pessoas pudesse documentar sua existência. A multiplicação do acesso ao registro visual serviu como veículo para mediar uma revolução social efetiva que ultrapassa o alcance das formulações teóricas, causando impacto direto sobre a realidade cotidiana de grande parte da população. Progressivamente cada vez mais sujeitos passaram a ser incluídos na composição do imaginário coletivo. Além das narrativas dominantes, as fotografias também passaram a monumentalizar pequenas histórias.
Rafael Assef é um artista assombrado pelo questionamento a respeito da construção da imagem como construção de identidade. Utiliza a fotografia para registrar símbolos que representam um tipo de persona. Inicialmente sua obra apresentava a manifestação do “eu” identificado com um grupo íntimo que compartilha mesmos gostos. Fotografava a si mesmo e seus amigos usando o corpo do outro como suporte para expressar sua própria autoimagem, pois neste caso o retrato não é de um indivíduo em particular, mas de um arquétipo com o qual o artista se identifica. Ao documentar seu grupo o valida perante a sociedade e o afirma como uma representação emblemática da sua geração. Reforça e produz a relevância da sua existência na esfera coletiva.
Em sua obra o retrato é indireto, feito através de marcas singulares que evocam o sujeito. A tensão entre o particular e o genérico é muito evidente em séries de fotos que catalogam diversas peles em close-up. A extrema proximidade em relação ao objeto fotografado beira à abstração generalizante, porém o detalhe do traçado único de cada epiderme identifica um ser específico. Em um dos seus trabalhos recentes, Assef pediu a alguns amigos que tatuassem um quadrado preenchido na cor da pele. Ou melhor, na cor mais aproximada que o tatuador possuía em sua cartela que simulasse a caracterização daquela pele. O fracasso em atingir o mesmo tom ilustra a impossibilidade de reproduzir a singularidade do indivíduo. Por outro lado, ao participar da obra o colaborador incorpora este simulacro de aparência à sua própria identidade.
A catalogação é um procedimento recorrente na pesquisa visual de Rafael Assef. Serve como estratégia para construir tipologias, séries de imagens de uma mesma família seguindo um determinado protocolo. Há uma especificação para a criação de uma unidade mínima que será repetida muitas vezes com variações dentro deste determinado padrão. Assim como nas fotos de Muybridge, a distribuição geométrica regular das unidades produz uma comparação visual que nos oferece uma leitura do todo possível de ser generalizada.
No trabalho Nomes de Hashi o exercício de catalogação atinge a proporções épicas. Noventa e oito fotografias documentam nomes marcados em caixas para hashi de um restaurante japonês que o artista frequenta no bairro da Liberdade. Como em seus trabalhos anteriores, Assef ainda parte de algo vinculado com seu cotidiano, mas esta catalogação vai muito além da sua tribo ou círculo social ao qual se identifica; abrange pessoas das mais variadas idades, profissões, orientações políticas, religiosas, etc. O traço em comum que as une é a predileção pelo mesmo restaurante. Mas o que significa ter o nome marcado em um porta-hashi, além da comprovação de fidelidade ao estabelecimento? Certamente este gesto é acompanhado por um tratamento especial, característico de um serviço customizado. Em nossa sociedade massificada a exclusividade é altamente desejada, pois alimenta a vontade de ser alguém peculiar em determinado contexto. É um símbolo que afirma a importância daquele indivíduo naquele ambiente, proporcionando algo que o distinga dos demais.
Outra característica marcante na documentação fotográfica que constitui o trabalho Nomes de Hashi (bem como os demais da série Branding) é o uso da imagem precária; talvez um contraponto ao rigor técnico que Assef se comprometia a seguir quando desempenhava outro papel social, o de fotógrafo profissional. Além da sua atuação como artista, no passado Assef prestou serviços fotográficos ao mundo da moda, da publicidade e também ao próprio circuito artístico, documentando obras e exposições. Entretanto, Assef demonstra ter clareza na distinção entre esses papéis. A atividade de fotógrafo profissional requer um domínio técnico preciso, tanto no manuseio do aparelho quanto na construção da melhor situação ambiental que possibilite gerar uma imagem de alta qualidade. Contudo, para a arte contemporânea o preciosismo técnico não é tão relevante, ao contrário, pode desviar o foco do elemento principal que é a articulação de ideias para a construção de um discurso estético. A aparência de um trabalho artístico deve estar em sintonia com o pensamento que propõe formular por meio da sua existência física. Neste caso, Assef escolheu abordar o assunto em questão apresentando suas fotografias em uma situação efêmera. Como se estivéssemos em seu atelier diante de estudos provisórios, ao invés de uma formalização definitiva. No momento em que as imagens são instaladas na parede de maneira precária − sem moldura, presas diretamente com fita adesiva – passam a incorporar uma postura que simbolicamente aciona uma espécie de cronômetro regressivo. O trabalho então assume a dimensão de sua finitude. Transforma-se em alegoria, encarnando a inexorável decadência da matéria presente em todo ciclo de vida, como um Memento Mori nos lembrando de que a vida cresce em direção à morte. Este modo de apresentação é totalmente condizente com o assunto da construção da identidade na esfera pública como uma tentativa de imprimir certa aura no nome que sobreviva ao corpo do indivíduo.
O trânsito entre os universos da arte, da publicidade e da moda desafia Assef a questionar sua posição no mundo. A princípio, a arte se diferencia por ser considerada como um campo de total liberdade, no qual o sujeito tem o direito de se expressar como quiser sobre qualquer assunto que lhe pareça relevante. Porém, esta tão apreciada liberdade, ainda que passível de ser alcançada talvez no ato criativo, também é submetida às restrições impostas pela dinâmica social que estrutura o campo artístico. Não é apenas a qualidade da obra que garante seu acesso ao sistema da arte; as oportunidades para sua circulação também dependem da sua consonância ao padrão compartilhado pelos grandes agentes que detém o poder de validar o gosto estético na esfera pública. Naturalmente, o risco implícito nesse processo é a criação de códigos a priori que acabam por filtrar e determinar as possibilidades de apresentação de proposições artísticas em um dado contexto. Ao mesmo tempo, esta tendência reforça a presença recorrente daquelas produções que estão em sintonia com o gosto vigente a ponto da repetição de sua visibilidade transformá-las em grandes marcas. Neste cenário, a reputação de um artista parece preceder suas obras. Seu nome passa a significar mais do que o conteúdo particular formulado em cada proposta.
Na série Branding Rafael Assef exemplifica visualmente tal problemática recorrendo novamente à estratégia de catalogação para nos apresentar uma sequência de nomes de artistas. Fotografou a marcação no piso que indicava a distribuição espacial das obras durante a montagem da 29a Bienal de São Paulo. Não era o nome da obra que constava na etiqueta improvisada com fita crepe, mas o nome do artista. A despeito do óbvio caráter prático desta opção, afinal é muito mais fácil lembrar o nome do artista do que de um trabalho, ainda assim, este gesto ilustra uma mecânica recorrente nos processos de seleção: primeiro elege-se um “autor-alvo”, para depois avaliar quais seriam as obras mais pertinentes ao foco da exposição.
Ao equiparar esta catalogação de nomes de artistas representativos numa Bienal a outra série que nomeia vestígios coletados em roupas de diversos estilistas, Assef amplia a discussão sobre o modus operandi implicado na valorização dos bens simbólicos. Tanto na arte quanto na moda, o autor é a peça-chave na diferenciação qualitativa do produto. Em ambos os casos, o objeto é associado a uma identidade criativa, mesmo que cumpra uma finalidade utilitária, no caso da moda. A receptividade e apreciação coletiva destes produtos estão diretamente vinculadas à reputação de seu autor. Portanto, além do conhecimento e sensibilidade requeridos para desempenhar estas atividades, o sujeito também deve se ocupar em forjar uma identidade reconhecida que possa ser agregada ao produto resultante de sua prática. A viabilização da produção dos profissionais criativos como artistas e estilistas, bem como a possibilidade da manutenção ao longo dos anos, dependem de estratégias que consolidem a imagem pública do autor. Ou seja, a fim de sobreviver no espaço público, a atividade criativa está atrelada à criação/projeção de uma marca pessoal, senão correrá o risco de ficar restrita ao círculo privado, e tornar-se apenas um hobby.
Em um movimento contrário a tal imperativo descrito acima, o modo como Branding é apresentado proporciona a equiparação das unidades em um formato padronizado acarretando a perda de foco em detalhes que caracterizam a individualidade. As grades compostas por “imagens-título” que Assef seleciona não nos fornecem nenhuma pista a respeito da natureza do objeto/realização que distingue aquele personagem em específico e que eleva seu nome à categoria de marca. A visualização conjunta de uma grande quantidade de nomes provoca uma sensação de indistinção generalizada. Se, inicialmente, o caráter múltiplo da fotografia representou a concretização de uma importante forma de democratização pela inclusão de todas as classes que anteriormente eram anônimas perante a história, no trabalho de Assef a multiplicação aponta para uma situação oposta. Aqui, o artista sublinha a tendência de homogeneização inerente ao crescimento populacional contínuo que conduz à gradual massificação de todas as esferas da sociedade. Vivemos em tempos em que, apesar da enorme democratização proporcionada pela internet, sobretudo pela possibilidade de compartilhar a intimidade em espaço público nas redes sociais, ainda assim, parece que o excesso induz à anulação do indivíduo. A multiplicação excessiva diminui a relevância das unidades particulares. Neste caso, testemunhamos uma inversão onde mais é menos.
Em outro grupo de trabalhos distinto intitulado Fita Crepe Rafael Assef direciona nosso olhar para uma situação residual. A série é composta por imagens de resquícios de marcações acumuladas no piso ao longo de vários dias de atividade em um estúdio fotográfico profissional. O local foi fotografado antes de ser limpo, ainda com várias sinalizações feitas em fitas adesivas que tem a função de orientar a distribuição espacial dos instrumentos utilizados na construção do set. As marcas servem como guias para o posicionamento de elementos operacionais tais como fontes de luz, refletores, rebatedores, ou então, para assinalar a posição da câmera e a especificação da lente ideal para aquela determinada posição, por exemplo. Ainda que seja possível ler de perto algumas destas anotações, tais palavras, números, e códigos, se referem à linguagem técnica característica do cotidiano de um estúdio, e, portanto, provavelmente parecerão abstratas para o leigo. Com este trabalho, Assef retoma uma velha questão, ainda pertinente no universo da representação: quão instável pode ser a fronteira entre o reconhecimento da informação de ordem prática e a pura abstração?
Outro aspecto que contribui para evidenciar ainda mais a tensão entre objetividade x abstração é o inquietante efeito causado pela inversão do plano da imagem, que originariamente era horizontal e agora nos é apresentado na vertical. A cena foi registrada capturando o chão de forma quase perpendicular, assim, ao verticalizar esta situação temos a sugestão de um plano pictórico. Portanto, estas fotografias causam certa ambiguidade na percepção do espectador que tende a alternar repetidamente entre o reconhecimento da imagem do chão com fitas coloridas e a visualização de um campo de cor neutra pontuado por elementos quase geométricos que saltam ao primeiro plano.
Enquanto na série Branding Rafael Assef nos convida à ponderar sobre processos de constituição simbólica da identidade na esfera pública, já em Fita Crepe o modus operandi por trás da construção da fotografia em si é enfocado de maneira explícita. Este trabalho expõe evidências materiais que integraram a estratégia envolvida na fabricação de uma imagem publicitária. Apresenta-nos os bastidores da manipulação do código fotográfico em uma situação ambiental com a meta de criar imagens destinadas a influenciar outras pessoas a desejar ou se identificar com aquilo que apresentam. Assef nos oferece, então, memórias de cenas montadas para arquitetar imagens icônicas. O artista captura reminiscências de marcações que agora já foram desfeitas e, portanto, pertencem ao passado, porém que fizeram parte de um complexo aparato instrumental/ambiental cuja função é gerar imagens com mensagens subliminares capazes de induzir ações no futuro.
Por último, em Questões Relativas, um trabalho simples e preciso – como a clareza de um insight – Assef presta homenagem à dúvida. Neste pequeno díptico faz ode à relatividade, um assunto que de certa forma sublinha o restante de sua produção. Em Quadrados na cor da pele a relatividade instaura a dúvida se o “ato performático” que serviu de mote inicial para o trabalho é guiado pela tentativa de simular a identidade visual da pele (cópia/síntese) ou ao contrário, para agregar significado a esta identidade (produção/intervenção). Em Branding há a dualidade entre a construção de uma personalidade que exerça influência pública, porém este mesmo processo torna a identidade refém da adequação aos valores externos. Nas fotografias intituladas Fita Crepe, além da relatividade das possibilidades de “ler” a imagem ora como uma abstração ou como um registro documental, temos ainda flexibilidade para enquadrá-las ambiguamente em termos temporais. Partem do registro de uma ação no passado, porém se referem a um modo de construir imagens que é totalmente voltado ao futuro. Assim, apesar de Questões Relativas ser um trabalho que nasceu de maneira muito espontânea (pode-se até dizer que “brotou” de um impasse numa situação cotidiana), a natureza de seu assunto o mantém totalmente conectado com o restante do pensamento elaborado na produção de Assef.
O artista pediu a um pedreiro fazer um rebaixamento no piso. Quando o serviço ficou pronto ele teve uma desagradável surpresa ao constatar que o rebaixo estava desalinhado e rotacionado em relação às paredes. Ao reclamar para o pedreiro de que o trabalho estava mal feito, Assef se surpreendeu ainda mais ao perceber que o sujeito simplesmente não fazia a menor ideia do que ele estava falando. O artista então foi até o local da obra para medir diante do funcionário de modo que ele pudesse visualizar claramente qual era o motivo da reclamação. Quando finalmente o pedreiro compreendeu que as distâncias das linhas traçadas pelo rebaixo não eram regulares até as paredes opostas, veio a pérola em forma de comentário: “ – Mas é claro que não estão [parelhas]; eu não tinha a referência da parede para poder fazer certinho!”
Diante de uma situação de total incomunicabilidade como esta, uma boa alternativa para a irritação e frustração é a lembrança de que no campo da arte é possível tolerar a ambiguidade de soluções opostas considerando-as igualmente válidas. Após traçar as linhas corretas para guiar o trabalho do pedreiro, Assef buscou a câmera e pôs-se também a trabalhar. Fotografou a mesma cena duas vezes alterando a guia para o alinhamento, em uma das imagens o enquadramento segue as paralelas da parede, na outra se orienta pelo rebaixo. Ao transformar esta cena em imagem bidimensional descontextualizada, suas referências tornam-se totalmente relativas.
MODUS OPERANDI – ELUCUBRAÇÕES EM TORNO DOS TRABALHOS RECENTES DE RAFAEL ASSEF
Por Denise Gadelha
A fotografia, por ser uma imagem-técnica, fruto da ciência aplicada, está fatalmente impregnada pela sensação de veracidade. Entretanto, apesar de sua aparente natureza objetiva, toda fotografia é em última instância produto de uma construção circunstancial que induz sua significação, em maior ou menor grau. Mesmo quando não há intervenção deliberada por parte do criador (i.e. manipulação de cena, iluminação, recorte, montagem, etc.) o conteúdo da imagem fotográfica não é neutro nem estável, pois sua mensagem também é construída pela situação específica em que é apresentada.
Tomemos como exemplo as fotografias de Eadweard Muybridge, peças-chave para uma mudança no paradigma visual moderno. Ainda que este nome não seja familiar ao leitor, provavelmente a imagem estará armazenada em sua memória: quem não se recorda de um conjunto de fotografias vintage mostrando passo a passo cada etapa do movimento de um ser (humano, cavalos, pássaros, etc.) diante de um fundo neutro? Muybridge foi pioneiro na exibição de fotografias em série e na disposição em formato de grade, e, embora estes artifícios sejam muito simples, o impacto causado na visualidade da época foi inestimável. Inicialmente esta investigação fotográfica foi encomendada pelo lendário magnata Stanford que era aficionado por cavalos de corrida e havia apostado que o animal teria as quatro patas no ar em algum momento do galope. Esta demanda específica viabilizou o financiamento de pesquisas para o aperfeiçoamento técnico necessário capaz de decompor o registro do movimento em frações mínimas. Apesar da missão objetiva de produzir evidências irrefutáveis, o método de Muybridge não costumava seguir a imparcialidade do rigor científico. Aparentemente, sabe-se através dos seus contatos fotográficos que a sequência apresentada não estava necessariamente na ordem direta da captura. Poderia ser editada para realçar a representação ideal do movimento. Portanto, tais imagens possuem objetividade sem neutralidade. Podem ser consideradas como documentos verídicos, mas também podem ser vistas como criação estética revolucionária, por exemplo, como precursoras da sétima arte – o cinema.
Mais do que um instrumento que registra o passado, a fotografia colabora para a sedimentação de uma versão de outra realidade temporal ecoando no agora. Um testemunho sempre será a apresentação da possibilidade de um testemunho. Com a fotografia não temos o índice em si, mas a potência de um índice. Nesse sentido, o filósofo Vilém Flusser declarou acreditar que a postura das pessoas diante da imagem fotográfica está mudando, pois não vemos mais as fotografias como representações do mundo, mas sim como articulações de pensamento.
A representação sempre foi uma ferramenta para consolidar opiniões sobre a realidade, capaz de incutir certa versão dos fatos na memória coletiva. Esta característica é ainda mais eficaz no caso das imagens-técnicas cuja objetividade mecânica tende à sua associação com a veracidade documental. No âmbito social, historicamente aqueles que detêm os meios para produzir representações exercem o poder de propagar sua verdade. Até o surgimento da fotografia a capacidade de produção de imagens estava restrita à elite. A invenção da fotografia proporcionou uma democratização de fato, de ordem prática, ao possibilitar que um número cada vez maior de pessoas pudesse documentar sua existência. A multiplicação do acesso ao registro visual serviu como veículo para mediar uma revolução social efetiva que ultrapassa o alcance das formulações teóricas, causando impacto direto sobre a realidade cotidiana de grande parte da população. Progressivamente cada vez mais sujeitos passaram a ser incluídos na composição do imaginário coletivo. Além das narrativas dominantes, as fotografias também passaram a monumentalizar pequenas histórias.
Rafael Assef é um artista assombrado pelo questionamento a respeito da construção da imagem como construção de identidade. Utiliza a fotografia para registrar símbolos que representam um tipo de persona. Inicialmente sua obra apresentava a manifestação do “eu” identificado com um grupo íntimo que compartilha mesmos gostos. Fotografava a si mesmo e seus amigos usando o corpo do outro como suporte para expressar sua própria autoimagem, pois neste caso o retrato não é de um indivíduo em particular, mas de um arquétipo com o qual o artista se identifica. Ao documentar seu grupo o valida perante a sociedade e o afirma como uma representação emblemática da sua geração. Reforça e produz a relevância da sua existência na esfera coletiva.
Em sua obra o retrato é indireto, feito através de marcas singulares que evocam o sujeito. A tensão entre o particular e o genérico é muito evidente em séries de fotos que catalogam diversas peles em close-up. A extrema proximidade em relação ao objeto fotografado beira à abstração generalizante, porém o detalhe do traçado único de cada epiderme identifica um ser específico. Em um dos seus trabalhos recentes, Assef pediu a alguns amigos que tatuassem um quadrado preenchido na cor da pele. Ou melhor, na cor mais aproximada que o tatuador possuía em sua cartela que simulasse a caracterização daquela pele. O fracasso em atingir o mesmo tom ilustra a impossibilidade de reproduzir a singularidade do indivíduo. Por outro lado, ao participar da obra o colaborador incorpora este simulacro de aparência à sua própria identidade.
A catalogação é um procedimento recorrente na pesquisa visual de Rafael Assef. Serve como estratégia para construir tipologias, séries de imagens de uma mesma família seguindo um determinado protocolo. Há uma especificação para a criação de uma unidade mínima que será repetida muitas vezes com variações dentro deste determinado padrão. Assim como nas fotos de Muybridge, a distribuição geométrica regular das unidades produz uma comparação visual que nos oferece uma leitura do todo possível de ser generalizada.
No trabalho Nomes de Hashi o exercício de catalogação atinge a proporções épicas. Noventa e oito fotografias documentam nomes marcados em caixas para hashi de um restaurante japonês que o artista frequenta no bairro da Liberdade. Como em seus trabalhos anteriores, Assef ainda parte de algo vinculado com seu cotidiano, mas esta catalogação vai muito além da sua tribo ou círculo social ao qual se identifica; abrange pessoas das mais variadas idades, profissões, orientações políticas, religiosas, etc. O traço em comum que as une é a predileção pelo mesmo restaurante. Mas o que significa ter o nome marcado em um porta-hashi, além da comprovação de fidelidade ao estabelecimento? Certamente este gesto é acompanhado por um tratamento especial, característico de um serviço customizado. Em nossa sociedade massificada a exclusividade é altamente desejada, pois alimenta a vontade de ser alguém peculiar em determinado contexto. É um símbolo que afirma a importância daquele indivíduo naquele ambiente, proporcionando algo que o distinga dos demais.
Outra característica marcante na documentação fotográfica que constitui o trabalho Nomes de Hashi (bem como os demais da série Branding) é o uso da imagem precária; talvez um contraponto ao rigor técnico que Assef se comprometia a seguir quando desempenhava outro papel social, o de fotógrafo profissional. Além da sua atuação como artista, no passado Assef prestou serviços fotográficos ao mundo da moda, da publicidade e também ao próprio circuito artístico, documentando obras e exposições. Entretanto, Assef demonstra ter clareza na distinção entre esses papéis. A atividade de fotógrafo profissional requer um domínio técnico preciso, tanto no manuseio do aparelho quanto na construção da melhor situação ambiental que possibilite gerar uma imagem de alta qualidade. Contudo, para a arte contemporânea o preciosismo técnico não é tão relevante, ao contrário, pode desviar o foco do elemento principal que é a articulação de ideias para a construção de um discurso estético. A aparência de um trabalho artístico deve estar em sintonia com o pensamento que propõe formular por meio da sua existência física. Neste caso, Assef escolheu abordar o assunto em questão apresentando suas fotografias em uma situação efêmera. Como se estivéssemos em seu atelier diante de estudos provisórios, ao invés de uma formalização definitiva. No momento em que as imagens são instaladas na parede de maneira precária − sem moldura, presas diretamente com fita adesiva – passam a incorporar uma postura que simbolicamente aciona uma espécie de cronômetro regressivo. O trabalho então assume a dimensão de sua finitude. Transforma-se em alegoria, encarnando a inexorável decadência da matéria presente em todo ciclo de vida, como um Memento Mori nos lembrando de que a vida cresce em direção à morte. Este modo de apresentação é totalmente condizente com o assunto da construção da identidade na esfera pública como uma tentativa de imprimir certa aura no nome que sobreviva ao corpo do indivíduo.
O trânsito entre os universos da arte, da publicidade e da moda desafia Assef a questionar sua posição no mundo. A princípio, a arte se diferencia por ser considerada como um campo de total liberdade, no qual o sujeito tem o direito de se expressar como quiser sobre qualquer assunto que lhe pareça relevante. Porém, esta tão apreciada liberdade, ainda que passível de ser alcançada talvez no ato criativo, também é submetida às restrições impostas pela dinâmica social que estrutura o campo artístico. Não é apenas a qualidade da obra que garante seu acesso ao sistema da arte; as oportunidades para sua circulação também dependem da sua consonância ao padrão compartilhado pelos grandes agentes que detém o poder de validar o gosto estético na esfera pública. Naturalmente, o risco implícito nesse processo é a criação de códigos a priori que acabam por filtrar e determinar as possibilidades de apresentação de proposições artísticas em um dado contexto. Ao mesmo tempo, esta tendência reforça a presença recorrente daquelas produções que estão em sintonia com o gosto vigente a ponto da repetição de sua visibilidade transformá-las em grandes marcas. Neste cenário, a reputação de um artista parece preceder suas obras. Seu nome passa a significar mais do que o conteúdo particular formulado em cada proposta.
Na série Branding Rafael Assef exemplifica visualmente tal problemática recorrendo novamente à estratégia de catalogação para nos apresentar uma sequência de nomes de artistas. Fotografou a marcação no piso que indicava a distribuição espacial das obras durante a montagem da 29a Bienal de São Paulo. Não era o nome da obra que constava na etiqueta improvisada com fita crepe, mas o nome do artista. A despeito do óbvio caráter prático desta opção, afinal é muito mais fácil lembrar o nome do artista do que de um trabalho, ainda assim, este gesto ilustra uma mecânica recorrente nos processos de seleção: primeiro elege-se um “autor-alvo”, para depois avaliar quais seriam as obras mais pertinentes ao foco da exposição.
Ao equiparar esta catalogação de nomes de artistas representativos numa Bienal a outra série que nomeia vestígios coletados em roupas de diversos estilistas, Assef amplia a discussão sobre o modus operandi implicado na valorização dos bens simbólicos. Tanto na arte quanto na moda, o autor é a peça-chave na diferenciação qualitativa do produto. Em ambos os casos, o objeto é associado a uma identidade criativa, mesmo que cumpra uma finalidade utilitária, no caso da moda. A receptividade e apreciação coletiva destes produtos estão diretamente vinculadas à reputação de seu autor. Portanto, além do conhecimento e sensibilidade requeridos para desempenhar estas atividades, o sujeito também deve se ocupar em forjar uma identidade reconhecida que possa ser agregada ao produto resultante de sua prática. A viabilização da produção dos profissionais criativos como artistas e estilistas, bem como a possibilidade da manutenção ao longo dos anos, dependem de estratégias que consolidem a imagem pública do autor. Ou seja, a fim de sobreviver no espaço público, a atividade criativa está atrelada à criação/projeção de uma marca pessoal, senão correrá o risco de ficar restrita ao círculo privado, e tornar-se apenas um hobby.
Em um movimento contrário a tal imperativo descrito acima, o modo como Branding é apresentado proporciona a equiparação das unidades em um formato padronizado acarretando a perda de foco em detalhes que caracterizam a individualidade. As grades compostas por “imagens-título” que Assef seleciona não nos fornecem nenhuma pista a respeito da natureza do objeto/realização que distingue aquele personagem em específico e que eleva seu nome à categoria de marca. A visualização conjunta de uma grande quantidade de nomes provoca uma sensação de indistinção generalizada. Se, inicialmente, o caráter múltiplo da fotografia representou a concretização de uma importante forma de democratização pela inclusão de todas as classes que anteriormente eram anônimas perante a história, no trabalho de Assef a multiplicação aponta para uma situação oposta. Aqui, o artista sublinha a tendência de homogeneização inerente ao crescimento populacional contínuo que conduz à gradual massificação de todas as esferas da sociedade. Vivemos em tempos em que, apesar da enorme democratização proporcionada pela internet, sobretudo pela possibilidade de compartilhar a intimidade em espaço público nas redes sociais, ainda assim, parece que o excesso induz à anulação do indivíduo. A multiplicação excessiva diminui a relevância das unidades particulares. Neste caso, testemunhamos uma inversão onde mais é menos.
Em outro grupo de trabalhos distinto intitulado Fita Crepe Rafael Assef direciona nosso olhar para uma situação residual. A série é composta por imagens de resquícios de marcações acumuladas no piso ao longo de vários dias de atividade em um estúdio fotográfico profissional. O local foi fotografado antes de ser limpo, ainda com várias sinalizações feitas em fitas adesivas que tem a função de orientar a distribuição espacial dos instrumentos utilizados na construção do set. As marcas servem como guias para o posicionamento de elementos operacionais tais como fontes de luz, refletores, rebatedores, ou então, para assinalar a posição da câmera e a especificação da lente ideal para aquela determinada posição, por exemplo. Ainda que seja possível ler de perto algumas destas anotações, tais palavras, números, e códigos, se referem à linguagem técnica característica do cotidiano de um estúdio, e, portanto, provavelmente parecerão abstratas para o leigo. Com este trabalho, Assef retoma uma velha questão, ainda pertinente no universo da representação: quão instável pode ser a fronteira entre o reconhecimento da informação de ordem prática e a pura abstração?
Outro aspecto que contribui para evidenciar ainda mais a tensão entre objetividade x abstração é o inquietante efeito causado pela inversão do plano da imagem, que originariamente era horizontal e agora nos é apresentado na vertical. A cena foi registrada capturando o chão de forma quase perpendicular, assim, ao verticalizar esta situação temos a sugestão de um plano pictórico. Portanto, estas fotografias causam certa ambiguidade na percepção do espectador que tende a alternar repetidamente entre o reconhecimento da imagem do chão com fitas coloridas e a visualização de um campo de cor neutra pontuado por elementos quase geométricos que saltam ao primeiro plano.
Enquanto na série Branding Rafael Assef nos convida à ponderar sobre processos de constituição simbólica da identidade na esfera pública, já em Fita Crepe o modus operandi por trás da construção da fotografia em si é enfocado de maneira explícita. Este trabalho expõe evidências materiais que integraram a estratégia envolvida na fabricação de uma imagem publicitária. Apresenta-nos os bastidores da manipulação do código fotográfico em uma situação ambiental com a meta de criar imagens destinadas a influenciar outras pessoas a desejar ou se identificar com aquilo que apresentam. Assef nos oferece, então, memórias de cenas montadas para arquitetar imagens icônicas. O artista captura reminiscências de marcações que agora já foram desfeitas e, portanto, pertencem ao passado, porém que fizeram parte de um complexo aparato instrumental/ambiental cuja função é gerar imagens com mensagens subliminares capazes de induzir ações no futuro.
Por último, em Questões Relativas, um trabalho simples e preciso – como a clareza de um insight – Assef presta homenagem à dúvida. Neste pequeno díptico faz ode à relatividade, um assunto que de certa forma sublinha o restante de sua produção. Em Quadrados na cor da pele a relatividade instaura a dúvida se o “ato performático” que serviu de mote inicial para o trabalho é guiado pela tentativa de simular a identidade visual da pele (cópia/síntese) ou ao contrário, para agregar significado a esta identidade (produção/intervenção). Em Branding há a dualidade entre a construção de uma personalidade que exerça influência pública, porém este mesmo processo torna a identidade refém da adequação aos valores externos. Nas fotografias intituladas Fita Crepe, além da relatividade das possibilidades de “ler” a imagem ora como uma abstração ou como um registro documental, temos ainda flexibilidade para enquadrá-las ambiguamente em termos temporais. Partem do registro de uma ação no passado, porém se referem a um modo de construir imagens que é totalmente voltado ao futuro. Assim, apesar de Questões Relativas ser um trabalho que nasceu de maneira muito espontânea (pode-se até dizer que “brotou” de um impasse numa situação cotidiana), a natureza de seu assunto o mantém totalmente conectado com o restante do pensamento elaborado na produção de Assef.
O artista pediu a um pedreiro fazer um rebaixamento no piso. Quando o serviço ficou pronto ele teve uma desagradável surpresa ao constatar que o rebaixo estava desalinhado e rotacionado em relação às paredes. Ao reclamar para o pedreiro de que o trabalho estava mal feito, Assef se surpreendeu ainda mais ao perceber que o sujeito simplesmente não fazia a menor ideia do que ele estava falando. O artista então foi até o local da obra para medir diante do funcionário de modo que ele pudesse visualizar claramente qual era o motivo da reclamação. Quando finalmente o pedreiro compreendeu que as distâncias das linhas traçadas pelo rebaixo não eram regulares até as paredes opostas, veio a pérola em forma de comentário: “ – Mas é claro que não estão [parelhas]; eu não tinha a referência da parede para poder fazer certinho!”
Diante de uma situação de total incomunicabilidade como esta, uma boa alternativa para a irritação e frustração é a lembrança de que no campo da arte é possível tolerar a ambiguidade de soluções opostas considerando-as igualmente válidas. Após traçar as linhas corretas para guiar o trabalho do pedreiro, Assef buscou a câmera e pôs-se também a trabalhar. Fotografou a mesma cena duas vezes alterando a guia para o alinhamento, em uma das imagens o enquadramento segue as paralelas da parede, na outra se orienta pelo rebaixo. Ao transformar esta cena em imagem bidimensional descontextualizada, suas referências tornam-se totalmente relativas.