— Estou fazendo um esforço para entender o que estamos passando, mas é realmente difícil.
— Pensei muito sobre as nossas conversas e não pude evitar de lembrar as palavras de Adorno em Minima Moralia.
— Ah, claro.
— Uma vida boa e honesta não é mais possível? É nesse ponto que estamos?
— …
— Realmente vivemos em uma sociedade desumana?
— Claro. A vida realmente não vive hoje em dia.
— Exatamente. E essa sensação, essa lembrança vem desse contexto. Provém desse sujeito que governa o
Brasil, dessa carga facista que emana em meio às nossas vidas.
— Sim. Ele gesticula a mão escrachadamente enquanto parece dizer o “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”.
— Ele não tá nem aí.
— Afinal de contas, esse é um “país de maricas”. Que se foda!
— “Ele não tem nada contra a violência: o clima da época é o que é, a violência ainda é necessária. Sua
violência é uma decisão salvadora”.
— Para mim, em meio a tantos entreatos irônicos desse sujeito, é como se estivesse sendo apedrejado. Suas “palavras são pedras”.
— Te entendo. Mas sabe de uma coisa? Não é tão ruim como antes.
Contei-lhe que Raúl Zurita me disse que era muito pior durante a ditadura daquele paraíso neo-liberal de Friedman & Chicago Boys que tem até a água de seus lagos privatizada? Não é tão ruim como antes. Ali, em um conturbado 11 de setembro de 1973, com o discurso de Salvador Allende, emitido pela Rádio Magallanes, parecia não haver mais um caminho a ser trilhado, parecia que por fim não iríamos mais seguir um caminho democrático e o pesadelo retrógrado se instauraria. E, de fato, se instaurou. E, menciono isso, porque sei que você está sendo marcado
especialmente pelo retrocesso, por uma volta a um estado cavernícola.
Passamos como sociedade pela ditadura e durante esse período existiram movimentos que lutaram a favor da democracia. E o que se fez? No dia do trabalhador de 1925, Benedetto Croce redigiu uma resposta em forma de contramanifesto ao manifesto dos intelectuais fascistas. Em 1966, após a instauração no Brasil do bipartidarismo, Ulysses Guimarães filiou-se ao Movimento Democrático Brasileiro. E você? Você respondeu essa pergunta formando parte de coletividades que diluem a ideia de autoria dentro do marco da ocupação (Ocupação Nove de Julho), da pedagogia (no coletivo ali:leste) e da ação política (no Aparelhamento). Mas, como você bem disse: “acabo bebendo mais do campo político porque é a condição que estamos vivendo”. É nesse ponto que estamos.
Quando estávamos em um momento mais tranquilo, quando sentíamos que a mudança estava por vir (nos primeiros anos do Lula), você se referia à política, mas de maneira hermética. “Como na Microfísica do Poder do Foucault”, você me disse, “que chega a algumas abstrações que nos fazem perder o fio da meada”. Parecia que você me estava dizendo, em palavras de Richard Elster, que “a vida verdadeira não pode ser reduzida a palavras ditas ou escritas, por ninguém, nunca. A vida verdadeira ocorre quando estamos sozinhos, pensando, sentindo, perdidos na memória, autoconscientes em pleno devaneio, os momentos submicroscópicos”. Porque é nesses diminutos espaços onde ocorrem os maiores cataclismas. Não foi aí (após dar-se conta de sua arrogância e hipocrisia) que o juiz-penitente Jean-Baptiste Clamence começou a “cair”? “Vivia, pois, sem outra continuidade no dia-a-dia, que não fosse a do eu-eu-eu.” Quando vamos cair na realidade e entender que se permitiu a entrada do facismo pela porta da frente, quando vamos cair na realidade e entender que se permitiu que ocorresse um regresso a um passado não muito distante. O ponto onde estamos é uma condição que sabemos que começa antes (e nem temos que ir tantos anos antes). Começa com essas coligações schmittianas (a modo de amigo-inimigo) que fizeram Guimarães apoiar o golpe de 64, que possibilitaram a entrada de Temer e que, no final das contas, culminaram em “um enraizamento da impossibilidade de mudança”. Progresso? Mais bem regresso.
Parafraseando Allende, em nosso país o fascismo está presente há muitos anos. E o trago novamente à
consideração porque “a experiência chilena não foi exceção, mas sim o verdadeiro modelo”. A verdadeira natureza desse sistema, segundo Vladimir Safatle, pode ser exemplificada pela declaração de Friedrich Hayek: “Eu prefiro sacrificar a democracia temporariamente, repito, temporariamente, em vez de ficar sem liberdade, mesmo que apenas por um tempo”. Pois bem, ela foi sacrificada e aí é onde fomos cair. O temporário, afinal de contas, era figura de linguagem.
— O sacrifício foi por medo.
— Medo?
— …
— Aqueles que possibilitaram a situação que estamos vivendo tinham medo?
— Claro que sim. Tinham medo do comunismo venezuelano, tinham medo da mudança, seja ela qual fosse, tinham medo de coisas que nem eles mesmo sabiam muito bem o que era.
— Eles precisavam de alguém que defendesse os brasileiros daquele mal comum: o comunismo.
— Sim. Precisavam de um messias, um “gigante”, um mestre que lhes orientasse nesse caminho tortuoso.
— Bom, se aqueles que aspiravam uma revolução sistêmica em prol de uma suposta saúde econômica achavam que estariam navegando tranquilamente… pois se equivocaram. O que encontraram, parafraseando Lacan, foi a um mestre, que os colocou novamente em violenta queda livre.
— Afinal, o que queremos que ele faça? “Ele não é coveiro”.
Durante a pandemia, nas nossas conversas, você esteve em contato direto com “momentos submicroscópicos” e encontrou, no absurdo da mesmice, a diferença. Te contei sobre a época de encarceramento de Bernard Stiegler. Quando ele conta, em entrevista a Philippe Nassif, que “na prisão nada muda” e que justamente essa regularidade estacionária, essa inalterabilidade monótona (e todas as redundâncias que podem ser ditas a respeito desse tema) é a que torna toda essa situação insuportável. Ele menciona a “conversão fenomenológica”, a “virtude carcerária” que o levou a uma percepção da passagem temporal, que lhe fez entender que a mudança sempre existe mesmo quando não nos damos conta dela. O segredo era impor uma prática, “que Epicteto chama de «mélete», então a prisão se torna uma grande professora”. A grande lição estaria no que Aristóteles chamou de “theos” (primeiro motor inmóvil). E, que a maior parte do tempo “a alma noética (…) funciona (…) sob um modo quase-nutritivo”, somente atingindo seu verdadeiro potencial “quando saímos, como um peixe-voador” do meio-ambiente em que estamos. E, é nesse salto, nessa passagem de um estado a outro, do aquático ao aéreo, que aprendemos sobre o
lugar em que estamos.
Sem deixar de lado que a verdade “é a experiência do mundo onde sempre faz falta voltar a submergir-se; a verdade é a água mesma. Mas é preciso sair para notá-la”. Tão difícil de entendê-la. Tantos lugares surgem ao falar dela: a começar por aquela de Aristóteles, saltando para a de Brentano, passando pelo ser-verdadeiro (verdade) da enunciação heideggeriana que se deve entender como um ser-descobridor até a contemporânea pós-verdade trumpiana. Talvez “todas as novas verdades tem que ser ‘realmente’ lidas somente como verdades suplementares que podem ser adicionadas ao estoque existente de um marco epocal”. E, já que estou exprimindo possibilidades, agrego que “talvez um tenha mudado as perspectivas, tenha dado a volta ao problema, mas é sempre o mesmo problema: isto é, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência”.
Já que você mencionou Foucault em nossas conversações, prefiro continuar a mencioná-lo já que ele acreditava “muito na verdade para não supor que existem diferentes verdades e diferentes maneiras de dizê-la. Com certeza, não se pode esperar que um governo fale a verdade, toda a verdade e nada além da verdade”. Mas creio que uma certa verdade é esperada. “Sim, uma certa verdade em relação aos objetivos finais, à escolha geral de suas táticas, e a uma série de pontos específicos de seu programa: isto é a parresía (liberdade de expressão) dos governados, que, por serem cidadãos, podem e devem convocar o Governo [!] a responder pelo que faz, pelo sentido das suas ações e pelas decisões que tomou, em nome dos seus próprios conhecimentos e da sua experiência” E, quando convocado aquele sujeito, que “faz o que quer e, para citar Ayn Rand, se orgulha disso”, diz:
“Quer que eu faça o quê?”
…bom, é difícil seguir a linha de raciocínio depois de uma frase tão tosca. Mas, seguindo a tarefa que nos ocupa, ela me faz pensar em “um mundo realmente invertido” onde “o verdadeiro é um momento do falso”. Por isso, quando fiquei naufragado no Chile pela pandemia, conversamos tanto sobre a possibilidade de uma vida boa, quanto sobre se realmente vivemos em uma sociedade desumana. E, inesperadamente, a resposta apareceu para mim por meio dos artistas chilenos que conheci e com aqueles envolvidos com o Museo de la Solidaridad Salvador Allende. Ali pareciam entender o que Alexander Rüstow tinha constatado em relação a uma dependência total ao sistema neoliberal. Cheguei justamente quando o estallido social havia cessado temporariamente devido à pandemia. Do frenesi coletivo ao confinamento solitário. A cara mais desumana se mostrava àqueles que permaneceram resistindo durante tantos meses. “Por isso, [Rüstow] aponta que o neoliberalismo deve se completar com uma «política vital» que semeie solidariedade e civilidade. Sem essa retificação do neoliberalismo encarregado da «política vital», surgem massas inseguras, agindo com medo e sendo facilmente capturadas por forças étnicas nacionalistas”.
— Isso me fez pensar que o sacrifício foi por medo.
— E, por ele, você está em voo cego?
— Será que estou, pelo medo de outros, saltando para fora do meu lugar em busca de entender o que diabos está passando?
— Será? Será que todo esse esforço é para entender o que estamos passando? O que diabos está acontecendo?
Quando tinha 8 anos, à noite brincando com meu irmão, o vi colidir contra uma cerca de arames farpados. Ele não a havia visto. Era invisível à noite. Lembro muito bem de seu corpo correndo, em direção ao horizonte marítimo, e subitamente convulsionando-se por haver encontrado o invisível horizonte de farpas. Quem diria que não vê-los era possível? Respeitava aquele ameaçador horizonte quando era criança. Mas, que sorrateiros são, pensava. Certamente assim pensou o gado a partir da segunda metade do século XIX. Assim pensaram os seres humanos no levante cubano contra a Espanha no final do século XIX, posteriormente na guerra dos Bôeres, na primeira guerra mundial e nos campos de concentração alemães, polacos e russos. O corpo dele não caiu, ficou agarrado naquele horizonte. Ali era o limite de sua liberdade.
Recentemente, me debrucei sobre o texto que Achille Mbembe escreveu sobre a liberdade. De início, menciona a Arendt: “a liberdade era a razão de ser da política”. Afinal de contas não nos esqueçamos que para a Grécia antiga além de estar associada à cidade (que a polis não estivesse dominada por estrangeiros), ela também era uma liberdade política: não era livre aquele que não era capaz de decidir em relação aos temas públicos. Posteriormente, Mbembe menciona o terceiro volume da história da sexualidade de Foucault: “a prática da liberdade requer uma ética de cuidado de si”. E, após conferir importância às teorias feministas, pós-coloniais e culturais em uma resposta à dominação e à exclusão, salienta as considerações de Rousseau: “com a liberdade vem a responsabilidade”. A responsabilidade para com o outro se desdobra pouco depois, nas palavras de um liberal romântico como Benjamin Constant quem acreditava que ela era a ausência de coerção e a possessão de um espaço privado, que outra pessoa exceto o proprietário pudesse interferir. E, seguindo a linha liberal, em um período mais recente, encontramos a bifurcação feita por Isaiah Berlin: liberdade positiva (para realizar atividades operacionais na vida individual ou coletiva) e negativa (relacionada à coerção em relação a forças alheias).
Após o texto de Mbembe, me frustrei ao refletir sobre a liberdade neo-liberal. Imaginava ao Major Kong Reagan sobre o dorso de uma bomba pendendo livremente no ar enquanto acena celebrante seu chapéu de cowboy, encorajando a todos a se reunirem nas libertárias redes sociais. Claramente se beneficiaria das muitas conexões digitais que existem entre ativistas nas redes sociais e também no uso dessas redes para promoção de “mensagens governamentais cuidadosamente disfarçadas”. “O sistema capitalista”, você me disse, “propaga essa mensagem que somos livres, que podemos ser o que quisermos, que podemos ser movidos pelos nossos desejos, mas ao mesmo tempo sabemos que não é bem assim”. O desejo na nossa sociedade é ponto de controle. Me frustrei ao pensar sobre a liberdade Trumpista: não se é livre até possuir os meios materiais e militares para defender-se da intervenção alheia. Sem deixar de lado a liberdade que tem um empresário de contratar e despedir a seu bel-prazer. E, ao ler
um texto de Oiticica voltei a sorrir:
“para MARIO PEDROSA a tarefa do artista deveria consistir no exercício experimental da liberdade”
— Como lhe disse, após nossas conversas, não pude evitar de lembrar das palavras de Adorno em Minima Moralia.
— O que exatamente?
— Muitas coisas me fizeram pensar nesse livro, mas um fragmento me chamou mais a atenção.
— …
— Ele fala da “impossibilidade de representar o fascismo” porque nele “não existe mais a liberdade do sujeito”.
— Claro.
— Gosto muito desse fragmento. Olha só: “Hoje, quando o tema da liberdade surge nas narrativas políticas, como no elogio da resistência heróica, ela tem o aspecto vergonhoso da asseguração impotente. O desfecho causa sempre a impressão de estar decidido de antemão pela alta política e a própria liberdade apresenta-se de uma forma ideológica, como discurso sobre a liberdade, com declamações estereotipadas, não em ações humanamente comensuráveis.”
— Sim. Me faz pensar na relação entre liberdade e responsabilidade, entre violência e moral. Mussolini já dizia que acreditava que “a violência é profundamente moral”.
— Não esqueça que no fascismo o “partido, é uma religião”.
— Uma religião que não cumpre com suas promessas. “Esta é uma lição que a primeira geração da Escola de Frankfurt nos ensinou: que o surgimento, ou retorno, do fascismo é baseado no descontentamento real com as promessas não cumpridas da democracia liberal”
— Claro. O grande problema aqui é que muitos ainda defendem silenciosamente a ditadura. E continuam atacando e marginalizando índios, negros e pobres.
— Sim. E, se você somar a tudo isso ao fato de que os torturadores do período ditatorial daqui nunca foram à justiça, como na Argentina ou no Uruguai, realmente cria um cenário preocupante. “O Brasil foi escolhido como o laboratório mundial para a nova versão do neoliberalismo fascista”
— Esse sujeito é o messias populista esfaqueado que voltou à vida, que nos salvou do comunismo, e que ao mesmo tempo é milícia sanguinária. É o próprio Sertões feito pessoa. Um sujeito do passado que volta a instaurar a tragédia.
— Penso que nesses momentos que estamos vivendo, momentos de ruptura, durante a crise sanitária, é quando a gente começa a entender o que está ocorrendo de fato. Porque aí a bolha de segurança se rompe. Essa bolha neo-liberal de consumo. A gente começa a entender que futuro não é o consumo, futuro é o outro. Por isso que tem vários microcosmos, vários grupos que estão se juntando e sendo altruístas uns com os outros.
— Se a gente pensar no crack da bolsa… nem temos que ir tão longe. Pensemos na recessão de 2008 ou na crise dos refugiados de 2015, parecia que o sistema tinha realmente voltado ao normal depois delas. Mas, é somente com a pandemia que os velos caem e podemos ver melhor o sistema onde estamos metidos.
— Sinto que estamos vivendo em um manicômio. A sociedade está doente.
— Os parâmetros éticos que nos baseamos estão sendo quebrados, transformados, subvertidos e assim a sociedade se transforma. E isso traz um sintoma para ela, essa falta de sanidade. Realmente parece que não existe mais escapatória ao capitalismo, parece difícil imaginar em seu fim. “As pessoas permaneceram apegadas a fantasias inatingíveis de uma vida boa” apesar de todas as evidências de que as sociedades capitalistas não conseguem prover essa vida sonhada.
Uma pessoa estava observando as pinturas pretas. À primeira vista, estava diante dessa ausência de
nuances. Havia nelas uma força anárquica. Subitamente, ela se aproxima, por notar nessa imagem monocromática, quase gráfica, uma sobreposição de preto sobre preto. Parecia observar sua velatura carmim. Não está claro se aquela pessoa sabia que a superfície daquelas pinturas eram folhas de jornal abertas. Afinal de contas, a informação estava parcialmente coberta. Era uma questão de tempo e paciência até o momento em que ela percebesse que além da trama periodística que ali residia, também se poderiam descortinar palavras. A primeira dessas palavras, mais marcada e clara, estaria à vista daquela pessoa mais preguiçosa e inquieta. Já na segunda camada, as palavras camufladas se ofereciam àquelas pessoas mais atentas. Elas (as palavras) permeiam o contexto daquela pessoa. Quer dizer: as palavras empregadas nas obras observadas por aquela pessoa eram utilizadas repetitivamente pela mídia. Em algum momento ela realizaria mentalmente a sequência sinapticamente necessária para provocar as associações que lhe fariam entender, por exemplo, que muitas delas fazem parte de pronunciamentos do governo. Existia um peso nelas, pois eram parte da realidade. Isso não é uma ficção. Seus olhos se estreitam ao ver “a pátria”, um meneio de cabeça ocorre ao ler “a nação”, seus lábios balbuciam sussurrantes “de-mo-cra-cia”. E, o contraste entre ambas camadas semânticas oferece àquela pessoa uma razão para permanecer um momento mais longo à frente daquela obra. Aquela pessoa prefere comprovar, sem sair do lugar, apenas com um movimento de cabeça, se as outras pinturas também oferecem esse mesmo mecanismo. E, após alguns instantes, ela se desloca ao longo do espaço. Seu semblante parece interpelar a pintura. Os dados são, simultaneamente, muito concretos e amplos. Sua postura corporal parece buscar um sentido para elas. Talvez esse sentido estaria onde essa pessoa busca toda a sua informação: no celular. E, assim, ela permanece imóvel, deslizando seu indicador na superfície do aparelho, buscando informações na rede. Outra pessoa se aproxima e lhe diz:
— … esse celular que comprei me dá acesso às redes sociais, mas é uma ilusão. É um artifício de te trazer um falso acesso à informação.
— Claro. Porque ela aparece filtrada, mastigada. Ela vai e analisa o seu perfil, cria um avatar que limita o seu acesso a outras zonas da rede.
— Exatamente. A liberdade é completamente restringida.
— Como se fossemos gado. Nessa bolha.
— É uma espécie de estratégia de guerra. Algo que o governo faz inclusive em suas campanhas, como o
David Cameron com o Cambridge Analytica. Existe uma infraestrutura mastodôntica de transformação da informação, da comunicação através dos algoritmos.
As duas pessoas ao conversarem sobre as pinturas parecem concordar que seu título (Sussurro) é efetivamente curioso já que se trata de uma alusão à palavra de maior proporção da área pictórica. Palavra essa que está camuflada. Há um silêncio e se ouve: “co-mu-nis-mo”.
— Ao vê-la aí, realmente cria uma abstração muito grande. As pessoas realmente não entendem o que ela significa. Virou um cacoete.
As posturas daquelas pessoas se tornam mais intensas por voltarem ao transfundo daquelas palavras, ao fato de que elas haviam sido pinçadas de uma realidade na qual elas vivem.
— Estamos vivendo uma farsa, um teatro. É uma espécie de realismo construído diariamente. A gente não sabe mais o que é real de fato.
Subitamente, a conversa se torna mais profunda e centrada na velatura e no processo de velar a informação: De fazer essa informação desaparecer? De encobri-la? Por que ocultá-la? Por que torná-la menos clara? Ou talvez mais direta. Se movem calmamente em direção a uma grande instalação onde observam uma cadeira envolvida em uma tela de metal de padrão hexagonal. Parece feita com os princípios básicos do tear. Param silentes e observam à distância. Esboçam perguntas acerca dela. Seria uma tela de contenção, de conexão ou isolamento? Não havia possibilidade de contorná-la e seus corpos evidenciavam isso pelos movimentos de cabeça que buscam entrever algum ponto de acesso ao espaço ocupado pela cadeira. O acesso era possível até certo ponto e esse ponto era bem distante da cadeira situada no âmago daquela rede. Comentam sobre a curiosa alusão às redes de conexões e o fato de que não podem acessa-la. É preciso traçar novamente algumas considerações e se menciona as bolhas onde nos situamos, em meio a esses ambientes digitais de hiperconectividade. Já a outra pessoa traz à conversa uma observação mais inquietante: os desolados e
fantasmagóricos espaços urbanos da cidade ucraniana de Prípiat, situada na Zona de exclusão de
Chernobyl. Um silêncio se faz presente. Fotos dessa cidade são mencionadas. Foram mencionados o abandono e o tempo paralisado como resultado dos efeitos diretos do acidente nuclear de 1986. O campo de isolamento é o agente disparador, é o que lhe faz pensar nessa cidade. A impossibilidade de transpor aquele limite, de ingressar naquela bolha hexagonal, de sentar-se naquela cadeira, de ocupar aquele lugar. Esboçam outras considerações superficiais sobre a quantidade de vezes que artistas ao longo da história da arte tinham utilizado a cadeira como elemento simbólico. Se menciona que é uma tecnologia que nos separa do chão, que pode elevar uma pessoa durante um ato retórico ou proporcionar uma zona confortável para a reflexão, para a imaginação. Em seguida se menciona que a cadeira assemelha-se àquelas escolares e de súbito outra sequência de questões emergem em relação ao auto-aprendizado. O tempo de extrema conectividade é aludido. O nosso tempo. É disso que se trata. É um tempo que vela e desvela caoticamente a informação, um tempo que obstrui o campo de visão fazendo com que a percepção nunca seja clara. Permanecem em silêncio após falarem um pouco mais sobre o fluxo metafórico de informação trazida por essa emaranhada matéria. Caminham em direção à escada enquanto seguem conversando sobre as diversas interfaces e sobre a
co-dependência entre a rede (que cria simultaneamente conectividade e obstrução) e a cadeira. E antes mesmo que uma daquelas pessoas pudesse aprofundar-se em suas respectivas reflexões (em relação, por exemplo, à pouca espessura daquele entramado, que somente se via por sua concentração no espaço) um som reprimido começa a se escutar.
No novo espaço o clima é de certo modo fantasmagórico: um espaço permeado de divisórias de plástico de construção translúcido. Ali permanecem durante longo tempo escutando o som abafado, observando os
trabalhos de parede e aqueles escultóricos. Durante todo o percurso as lonas plásticas atrapalham suas visões e direcionam o fluxo de suas navegações no espaço. Um curioso dispositivo situado no chão da voltas ao redor de si mesmo coletando poeira e outros detritos. Uma delas menciona a sensação de falência e abandono. Uma daquelas pessoas para entre duas das desuniformes lonas e diz:
— É quase material, é quase como o estado que a gente vive. Sempre estamos cercados por interfaces:
barreiras virtuais.
— Sim. A barreira física, a doutrina do corpo, é mais antiga. Estamos em outro nível: mais violento e mais silencioso.
— Claro. Não existe um corpo que te impede. Hoje em dia o que existe é um auto impedimento, uma servidão voluntária, uma auto-prisão.
Em nenhum momento mencionam que a voz que se escuta abafada, falando sobre democracia e
liberdade, era de Ulysses Guimarães. Tampouco conversam sobre a amnésia que poderia sugerir esses véus. Muito menos sobre a escritura do desastre ou mesmo da impressão deixada por outros aqui
presentes em forma de ruína. Em vez disso, iniciam uma conversa sobre a reprodução e a propagação de condições a partir de um sistema imposto. E, isso é atiçado pelo encontro com lâminas de madeira que em sua superfície se observam pintadas áreas geométricas de branco e linhas de arame farpado. Há algo
violento naquela experiência. Utilizar-se de uma forma branca, imaculada, plana no contexto parece retomar questões de obras anteriores, parece contrastar com a rede de controle, distanciamento e isolamento. A mão de uma daquelas pessoas repete no ar a sinuosidade das linhas afirmando um eco dessa forma branca. Porém, em nenhum momento ocorre uma referência às plantas panópticas de Ramos de Azevedo. O que sim fazem é compartilhar as sensações que sentem. Em um momento dado se menciona a estrela escura, aquela morta, aquela que podemos somente ver seu espectro, seu fantasma, seu rastro no céu. Conversam angustiosamente sobre a desesperança surgida em 2019 e sobre o voo cego que está sendo travado pela contra-força. Mencionam sobre os movimentos de mudança, sobre os grupos que criam atrito no espaço político. E, novamente se menciona o voo cego, aquele que se precipita no espaço sem propriamente vê-lo. Um alvo fácil que não se importa em continuar resistindo. Continua pelo gosto que teve de um projeto democrático. Mas, parecem saber que aquele projeto já não existe. Talvez, o olho já não faça a diferença. Isso é o último que aquela pessoa diz.
Não há mais vida. Afinal de contas, estamos em espaço neo-liberal estéreo. E em meio a todo esse maquinário frio sentimos que não há mais pulsão de vida. “O olhar lançado à vida transformou-se em ideologia, que tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida”. Em meio ao maquinário, em meio à produção na estrutura neo-liberal a vida rebaixa-se e corresponde “a uma efêmera manifestação” da produção. Assim nos encontramos: em um ambiente em que tudo está misturado, “meio e fim vêem-se confundidos”. Nesses últimos dias as palavras de Elton Luiz Leite de Souza me fizeram muito sentido. Quando ele fala sobre ‘con-fiar’, sobre o ato de ‘fiar junto’, sobre ‘novelo’ como a criação de um ‘novo elo’. “Quem confia, tece: cria novos elos com o fio que puxou de um novelo, que é sempre fonte para novos elos e agenciamentos.” A todo momento estamos tramando esses novelos porque ainda há vida. Claramente pode deixar de haver, mas ainda há vida. No Chile, outro dia, escutei a humilde e gentil voz de Elisa Loncón. Em meio a jornalistas vorazes para escutar o que se poderia saber após o primeiro mês da conversa sobre a nova constituição: “Falei da ternura” E, essa simples palavra (nunca antes proferida por aquele sujeito) remete à luta pela ternura de Elicura Chihuailaf. Digo isso, pelas palavras que enunciou Allende em seu discurso: “E digo-vos que tenho a certeza de que a semente que demos à consciência, digna de milhares e milhares de chilenos, não pode ser segada definitivamente. Eles têm a força, podem nos oprimir, mas os processos sociais não param nem com o crime nem com a força. A história é nossa e os povos a fazem.”. Digo isso pelos tantos jardins e corpos verdes de vida que foram criados por tantos outres que travo conversação. Digo isso pelo jardim criado por sua amiga. Afinal de contas “Ser livre é assumir o peso do futuro. É cumprir a tarefa de fazer algo não somente de nós mesmos, mas do mundo, cuja construção agora não está em outras senão em nossas mãos”.
Sigamos plantando com as mãos que resistem.
Tiago de Abreu Pinto
Achille Mbembe. Fragile freedom em Experiences of Freedom in Postcolonial Literature and Cultures. Londres e Nova York: Routledge, 2011.
Albert Camus. A queda. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Editora Record, 2017 (1956).
Antonio Scurati. M. El hombre de la providencia. Tradução de Carlos Gumpert. Madrid: Alfaguara, 2021.
Byung-Chul Han. La expulsión de lo distinto. Tradução de Alberto Ciria. Barcelona: Herder Editorial, 2017 (2016).
Don DeLillo. Ponto Ômega.Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 (2010).
Entrevista a Bernard Stiegler realizada por Philippe Nassif para Philosophie Magazine em 27 de Setembro de 2012.
Euclides da Cunha. Os sertões. São Paulo: Ubu/Sesc São Paulo, 2016 (1903).
Evgeny Morozov. The Net Delusion: The Dark Side of Internet Freedom. Nova York: Public Affairs, 2011.
Guy Debord. La Sociedad del Espectáculo. Tradução de Rodrigo Vicuña Navarro. Santiago de Chile: Ediciones Naufragio, 1995 (1967).
Hélio Oiticica. conglomerado newyorkaises. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013.
Jacques Lacan. O seminário. Livro 17: o avesso da psicanálise, 1969-1970. Tradução dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
Lauren Berlant. Cruel Optimism. Durham: Duke University Press, 2011.
Mark Fisher. Capitalist Realism. Is there no alternative? Winchester and Washington: Zero Books, 2009.
Martin Heidegger. Ser e Tempo. Tradução de Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp, 2012 (1927).
Michel Foucault. An Aesthetics of Existence em Foucault Live: Collected Interviews, 1961-1984. Entrevista por Alessandro Fontana em Abril 15-16, 1984. Tradução de Lysa Hochroth and John Johnston.
Los Angeles: Semiotext(e), 1996 (1989).
Peter Sloterdijk. Not Saved: Essays After Heidegger. Tradução de Ian Alexander Moore e Christopher Turner. Cambridge: Polity, 2017 (2001).
Peter Sloterdijk. Esferas II. Globos. Macrosferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Ediciones Siruela, 2004 (1999).
Reviel Netz. Barbed wire: An ecology of modernity. Middletown: Wesleyan University Press, 2004.
Spectres of Fascism Historical, Theoretical and International Perspectives. Editado por Samir Gandesha. Londres: Pluto Press, 2020.
Salvador Allende. Textos escogidos. Seleção e introdução James D. Cockcrot. Buenos Aires: Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo, 2003.
Theodor Adorno. Minima Moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. 2ª Edição. São Paulo: Editora Ática, 1993 (1951).
https://elpais.com/internacional/2020-11-11/jair-bolsonaro-tenemos-que-dejar-de-ser-un-pais-de-maricas.html
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/nao-sou-coveiro-diz-bolsonaro-sobre-qual-seria-numero-aceitavel-de-mortes-por-coronavirus.shtml
(O autor deste texto realizou a tradução em português das publicações em inglês e espanhol)
— Estou fazendo um esforço para entender o que estamos passando, mas é realmente difícil.
— Pensei muito sobre as nossas conversas e não pude evitar de lembrar as palavras de Adorno em Minima Moralia.
— Ah, claro.
— Uma vida boa e honesta não é mais possível? É nesse ponto que estamos?
— …
— Realmente vivemos em uma sociedade desumana?
— Claro. A vida realmente não vive hoje em dia.
— Exatamente. E essa sensação, essa lembrança vem desse contexto. Provém desse sujeito que governa o
Brasil, dessa carga facista que emana em meio às nossas vidas.
— Sim. Ele gesticula a mão escrachadamente enquanto parece dizer o “argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala”.
— Ele não tá nem aí.
— Afinal de contas, esse é um “país de maricas”. Que se foda!
— “Ele não tem nada contra a violência: o clima da época é o que é, a violência ainda é necessária. Sua
violência é uma decisão salvadora”.
— Para mim, em meio a tantos entreatos irônicos desse sujeito, é como se estivesse sendo apedrejado. Suas “palavras são pedras”.
— Te entendo. Mas sabe de uma coisa? Não é tão ruim como antes.
Contei-lhe que Raúl Zurita me disse que era muito pior durante a ditadura daquele paraíso neo-liberal de Friedman & Chicago Boys que tem até a água de seus lagos privatizada? Não é tão ruim como antes. Ali, em um conturbado 11 de setembro de 1973, com o discurso de Salvador Allende, emitido pela Rádio Magallanes, parecia não haver mais um caminho a ser trilhado, parecia que por fim não iríamos mais seguir um caminho democrático e o pesadelo retrógrado se instauraria. E, de fato, se instaurou. E, menciono isso, porque sei que você está sendo marcado
especialmente pelo retrocesso, por uma volta a um estado cavernícola.
Passamos como sociedade pela ditadura e durante esse período existiram movimentos que lutaram a favor da democracia. E o que se fez? No dia do trabalhador de 1925, Benedetto Croce redigiu uma resposta em forma de contramanifesto ao manifesto dos intelectuais fascistas. Em 1966, após a instauração no Brasil do bipartidarismo, Ulysses Guimarães filiou-se ao Movimento Democrático Brasileiro. E você? Você respondeu essa pergunta formando parte de coletividades que diluem a ideia de autoria dentro do marco da ocupação (Ocupação Nove de Julho), da pedagogia (no coletivo ali:leste) e da ação política (no Aparelhamento). Mas, como você bem disse: “acabo bebendo mais do campo político porque é a condição que estamos vivendo”. É nesse ponto que estamos.
Quando estávamos em um momento mais tranquilo, quando sentíamos que a mudança estava por vir (nos primeiros anos do Lula), você se referia à política, mas de maneira hermética. “Como na Microfísica do Poder do Foucault”, você me disse, “que chega a algumas abstrações que nos fazem perder o fio da meada”. Parecia que você me estava dizendo, em palavras de Richard Elster, que “a vida verdadeira não pode ser reduzida a palavras ditas ou escritas, por ninguém, nunca. A vida verdadeira ocorre quando estamos sozinhos, pensando, sentindo, perdidos na memória, autoconscientes em pleno devaneio, os momentos submicroscópicos”. Porque é nesses diminutos espaços onde ocorrem os maiores cataclismas. Não foi aí (após dar-se conta de sua arrogância e hipocrisia) que o juiz-penitente Jean-Baptiste Clamence começou a “cair”? “Vivia, pois, sem outra continuidade no dia-a-dia, que não fosse a do eu-eu-eu.” Quando vamos cair na realidade e entender que se permitiu a entrada do facismo pela porta da frente, quando vamos cair na realidade e entender que se permitiu que ocorresse um regresso a um passado não muito distante. O ponto onde estamos é uma condição que sabemos que começa antes (e nem temos que ir tantos anos antes). Começa com essas coligações schmittianas (a modo de amigo-inimigo) que fizeram Guimarães apoiar o golpe de 64, que possibilitaram a entrada de Temer e que, no final das contas, culminaram em “um enraizamento da impossibilidade de mudança”. Progresso? Mais bem regresso.
Parafraseando Allende, em nosso país o fascismo está presente há muitos anos. E o trago novamente à
consideração porque “a experiência chilena não foi exceção, mas sim o verdadeiro modelo”. A verdadeira natureza desse sistema, segundo Vladimir Safatle, pode ser exemplificada pela declaração de Friedrich Hayek: “Eu prefiro sacrificar a democracia temporariamente, repito, temporariamente, em vez de ficar sem liberdade, mesmo que apenas por um tempo”. Pois bem, ela foi sacrificada e aí é onde fomos cair. O temporário, afinal de contas, era figura de linguagem.
— O sacrifício foi por medo.
— Medo?
— …
— Aqueles que possibilitaram a situação que estamos vivendo tinham medo?
— Claro que sim. Tinham medo do comunismo venezuelano, tinham medo da mudança, seja ela qual fosse, tinham medo de coisas que nem eles mesmo sabiam muito bem o que era.
— Eles precisavam de alguém que defendesse os brasileiros daquele mal comum: o comunismo.
— Sim. Precisavam de um messias, um “gigante”, um mestre que lhes orientasse nesse caminho tortuoso.
— Bom, se aqueles que aspiravam uma revolução sistêmica em prol de uma suposta saúde econômica achavam que estariam navegando tranquilamente… pois se equivocaram. O que encontraram, parafraseando Lacan, foi a um mestre, que os colocou novamente em violenta queda livre.
— Afinal, o que queremos que ele faça? “Ele não é coveiro”.
Durante a pandemia, nas nossas conversas, você esteve em contato direto com “momentos submicroscópicos” e encontrou, no absurdo da mesmice, a diferença. Te contei sobre a época de encarceramento de Bernard Stiegler. Quando ele conta, em entrevista a Philippe Nassif, que “na prisão nada muda” e que justamente essa regularidade estacionária, essa inalterabilidade monótona (e todas as redundâncias que podem ser ditas a respeito desse tema) é a que torna toda essa situação insuportável. Ele menciona a “conversão fenomenológica”, a “virtude carcerária” que o levou a uma percepção da passagem temporal, que lhe fez entender que a mudança sempre existe mesmo quando não nos damos conta dela. O segredo era impor uma prática, “que Epicteto chama de «mélete», então a prisão se torna uma grande professora”. A grande lição estaria no que Aristóteles chamou de “theos” (primeiro motor inmóvil). E, que a maior parte do tempo “a alma noética (…) funciona (…) sob um modo quase-nutritivo”, somente atingindo seu verdadeiro potencial “quando saímos, como um peixe-voador” do meio-ambiente em que estamos. E, é nesse salto, nessa passagem de um estado a outro, do aquático ao aéreo, que aprendemos sobre o
lugar em que estamos.
Sem deixar de lado que a verdade “é a experiência do mundo onde sempre faz falta voltar a submergir-se; a verdade é a água mesma. Mas é preciso sair para notá-la”. Tão difícil de entendê-la. Tantos lugares surgem ao falar dela: a começar por aquela de Aristóteles, saltando para a de Brentano, passando pelo ser-verdadeiro (verdade) da enunciação heideggeriana que se deve entender como um ser-descobridor até a contemporânea pós-verdade trumpiana. Talvez “todas as novas verdades tem que ser ‘realmente’ lidas somente como verdades suplementares que podem ser adicionadas ao estoque existente de um marco epocal”. E, já que estou exprimindo possibilidades, agrego que “talvez um tenha mudado as perspectivas, tenha dado a volta ao problema, mas é sempre o mesmo problema: isto é, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência”.
Já que você mencionou Foucault em nossas conversações, prefiro continuar a mencioná-lo já que ele acreditava “muito na verdade para não supor que existem diferentes verdades e diferentes maneiras de dizê-la. Com certeza, não se pode esperar que um governo fale a verdade, toda a verdade e nada além da verdade”. Mas creio que uma certa verdade é esperada. “Sim, uma certa verdade em relação aos objetivos finais, à escolha geral de suas táticas, e a uma série de pontos específicos de seu programa: isto é a parresía (liberdade de expressão) dos governados, que, por serem cidadãos, podem e devem convocar o Governo [!] a responder pelo que faz, pelo sentido das suas ações e pelas decisões que tomou, em nome dos seus próprios conhecimentos e da sua experiência” E, quando convocado aquele sujeito, que “faz o que quer e, para citar Ayn Rand, se orgulha disso”, diz:
“Quer que eu faça o quê?”
…bom, é difícil seguir a linha de raciocínio depois de uma frase tão tosca. Mas, seguindo a tarefa que nos ocupa, ela me faz pensar em “um mundo realmente invertido” onde “o verdadeiro é um momento do falso”. Por isso, quando fiquei naufragado no Chile pela pandemia, conversamos tanto sobre a possibilidade de uma vida boa, quanto sobre se realmente vivemos em uma sociedade desumana. E, inesperadamente, a resposta apareceu para mim por meio dos artistas chilenos que conheci e com aqueles envolvidos com o Museo de la Solidaridad Salvador Allende. Ali pareciam entender o que Alexander Rüstow tinha constatado em relação a uma dependência total ao sistema neoliberal. Cheguei justamente quando o estallido social havia cessado temporariamente devido à pandemia. Do frenesi coletivo ao confinamento solitário. A cara mais desumana se mostrava àqueles que permaneceram resistindo durante tantos meses. “Por isso, [Rüstow] aponta que o neoliberalismo deve se completar com uma «política vital» que semeie solidariedade e civilidade. Sem essa retificação do neoliberalismo encarregado da «política vital», surgem massas inseguras, agindo com medo e sendo facilmente capturadas por forças étnicas nacionalistas”.
— Isso me fez pensar que o sacrifício foi por medo.
— E, por ele, você está em voo cego?
— Será que estou, pelo medo de outros, saltando para fora do meu lugar em busca de entender o que diabos está passando?
— Será? Será que todo esse esforço é para entender o que estamos passando? O que diabos está acontecendo?
Quando tinha 8 anos, à noite brincando com meu irmão, o vi colidir contra uma cerca de arames farpados. Ele não a havia visto. Era invisível à noite. Lembro muito bem de seu corpo correndo, em direção ao horizonte marítimo, e subitamente convulsionando-se por haver encontrado o invisível horizonte de farpas. Quem diria que não vê-los era possível? Respeitava aquele ameaçador horizonte quando era criança. Mas, que sorrateiros são, pensava. Certamente assim pensou o gado a partir da segunda metade do século XIX. Assim pensaram os seres humanos no levante cubano contra a Espanha no final do século XIX, posteriormente na guerra dos Bôeres, na primeira guerra mundial e nos campos de concentração alemães, polacos e russos. O corpo dele não caiu, ficou agarrado naquele horizonte. Ali era o limite de sua liberdade.
Recentemente, me debrucei sobre o texto que Achille Mbembe escreveu sobre a liberdade. De início, menciona a Arendt: “a liberdade era a razão de ser da política”. Afinal de contas não nos esqueçamos que para a Grécia antiga além de estar associada à cidade (que a polis não estivesse dominada por estrangeiros), ela também era uma liberdade política: não era livre aquele que não era capaz de decidir em relação aos temas públicos. Posteriormente, Mbembe menciona o terceiro volume da história da sexualidade de Foucault: “a prática da liberdade requer uma ética de cuidado de si”. E, após conferir importância às teorias feministas, pós-coloniais e culturais em uma resposta à dominação e à exclusão, salienta as considerações de Rousseau: “com a liberdade vem a responsabilidade”. A responsabilidade para com o outro se desdobra pouco depois, nas palavras de um liberal romântico como Benjamin Constant quem acreditava que ela era a ausência de coerção e a possessão de um espaço privado, que outra pessoa exceto o proprietário pudesse interferir. E, seguindo a linha liberal, em um período mais recente, encontramos a bifurcação feita por Isaiah Berlin: liberdade positiva (para realizar atividades operacionais na vida individual ou coletiva) e negativa (relacionada à coerção em relação a forças alheias).
Após o texto de Mbembe, me frustrei ao refletir sobre a liberdade neo-liberal. Imaginava ao Major Kong Reagan sobre o dorso de uma bomba pendendo livremente no ar enquanto acena celebrante seu chapéu de cowboy, encorajando a todos a se reunirem nas libertárias redes sociais. Claramente se beneficiaria das muitas conexões digitais que existem entre ativistas nas redes sociais e também no uso dessas redes para promoção de “mensagens governamentais cuidadosamente disfarçadas”. “O sistema capitalista”, você me disse, “propaga essa mensagem que somos livres, que podemos ser o que quisermos, que podemos ser movidos pelos nossos desejos, mas ao mesmo tempo sabemos que não é bem assim”. O desejo na nossa sociedade é ponto de controle. Me frustrei ao pensar sobre a liberdade Trumpista: não se é livre até possuir os meios materiais e militares para defender-se da intervenção alheia. Sem deixar de lado a liberdade que tem um empresário de contratar e despedir a seu bel-prazer. E, ao ler
um texto de Oiticica voltei a sorrir:
“para MARIO PEDROSA a tarefa do artista deveria consistir no exercício experimental da liberdade”
— Como lhe disse, após nossas conversas, não pude evitar de lembrar das palavras de Adorno em Minima Moralia.
— O que exatamente?
— Muitas coisas me fizeram pensar nesse livro, mas um fragmento me chamou mais a atenção.
— …
— Ele fala da “impossibilidade de representar o fascismo” porque nele “não existe mais a liberdade do sujeito”.
— Claro.
— Gosto muito desse fragmento. Olha só: “Hoje, quando o tema da liberdade surge nas narrativas políticas, como no elogio da resistência heróica, ela tem o aspecto vergonhoso da asseguração impotente. O desfecho causa sempre a impressão de estar decidido de antemão pela alta política e a própria liberdade apresenta-se de uma forma ideológica, como discurso sobre a liberdade, com declamações estereotipadas, não em ações humanamente comensuráveis.”
— Sim. Me faz pensar na relação entre liberdade e responsabilidade, entre violência e moral. Mussolini já dizia que acreditava que “a violência é profundamente moral”.
— Não esqueça que no fascismo o “partido, é uma religião”.
— Uma religião que não cumpre com suas promessas. “Esta é uma lição que a primeira geração da Escola de Frankfurt nos ensinou: que o surgimento, ou retorno, do fascismo é baseado no descontentamento real com as promessas não cumpridas da democracia liberal”
— Claro. O grande problema aqui é que muitos ainda defendem silenciosamente a ditadura. E continuam atacando e marginalizando índios, negros e pobres.
— Sim. E, se você somar a tudo isso ao fato de que os torturadores do período ditatorial daqui nunca foram à justiça, como na Argentina ou no Uruguai, realmente cria um cenário preocupante. “O Brasil foi escolhido como o laboratório mundial para a nova versão do neoliberalismo fascista”
— Esse sujeito é o messias populista esfaqueado que voltou à vida, que nos salvou do comunismo, e que ao mesmo tempo é milícia sanguinária. É o próprio Sertões feito pessoa. Um sujeito do passado que volta a instaurar a tragédia.
— Penso que nesses momentos que estamos vivendo, momentos de ruptura, durante a crise sanitária, é quando a gente começa a entender o que está ocorrendo de fato. Porque aí a bolha de segurança se rompe. Essa bolha neo-liberal de consumo. A gente começa a entender que futuro não é o consumo, futuro é o outro. Por isso que tem vários microcosmos, vários grupos que estão se juntando e sendo altruístas uns com os outros.
— Se a gente pensar no crack da bolsa… nem temos que ir tão longe. Pensemos na recessão de 2008 ou na crise dos refugiados de 2015, parecia que o sistema tinha realmente voltado ao normal depois delas. Mas, é somente com a pandemia que os velos caem e podemos ver melhor o sistema onde estamos metidos.
— Sinto que estamos vivendo em um manicômio. A sociedade está doente.
— Os parâmetros éticos que nos baseamos estão sendo quebrados, transformados, subvertidos e assim a sociedade se transforma. E isso traz um sintoma para ela, essa falta de sanidade. Realmente parece que não existe mais escapatória ao capitalismo, parece difícil imaginar em seu fim. “As pessoas permaneceram apegadas a fantasias inatingíveis de uma vida boa” apesar de todas as evidências de que as sociedades capitalistas não conseguem prover essa vida sonhada.
Uma pessoa estava observando as pinturas pretas. À primeira vista, estava diante dessa ausência de
nuances. Havia nelas uma força anárquica. Subitamente, ela se aproxima, por notar nessa imagem monocromática, quase gráfica, uma sobreposição de preto sobre preto. Parecia observar sua velatura carmim. Não está claro se aquela pessoa sabia que a superfície daquelas pinturas eram folhas de jornal abertas. Afinal de contas, a informação estava parcialmente coberta. Era uma questão de tempo e paciência até o momento em que ela percebesse que além da trama periodística que ali residia, também se poderiam descortinar palavras. A primeira dessas palavras, mais marcada e clara, estaria à vista daquela pessoa mais preguiçosa e inquieta. Já na segunda camada, as palavras camufladas se ofereciam àquelas pessoas mais atentas. Elas (as palavras) permeiam o contexto daquela pessoa. Quer dizer: as palavras empregadas nas obras observadas por aquela pessoa eram utilizadas repetitivamente pela mídia. Em algum momento ela realizaria mentalmente a sequência sinapticamente necessária para provocar as associações que lhe fariam entender, por exemplo, que muitas delas fazem parte de pronunciamentos do governo. Existia um peso nelas, pois eram parte da realidade. Isso não é uma ficção. Seus olhos se estreitam ao ver “a pátria”, um meneio de cabeça ocorre ao ler “a nação”, seus lábios balbuciam sussurrantes “de-mo-cra-cia”. E, o contraste entre ambas camadas semânticas oferece àquela pessoa uma razão para permanecer um momento mais longo à frente daquela obra. Aquela pessoa prefere comprovar, sem sair do lugar, apenas com um movimento de cabeça, se as outras pinturas também oferecem esse mesmo mecanismo. E, após alguns instantes, ela se desloca ao longo do espaço. Seu semblante parece interpelar a pintura. Os dados são, simultaneamente, muito concretos e amplos. Sua postura corporal parece buscar um sentido para elas. Talvez esse sentido estaria onde essa pessoa busca toda a sua informação: no celular. E, assim, ela permanece imóvel, deslizando seu indicador na superfície do aparelho, buscando informações na rede. Outra pessoa se aproxima e lhe diz:
— … esse celular que comprei me dá acesso às redes sociais, mas é uma ilusão. É um artifício de te trazer um falso acesso à informação.
— Claro. Porque ela aparece filtrada, mastigada. Ela vai e analisa o seu perfil, cria um avatar que limita o seu acesso a outras zonas da rede.
— Exatamente. A liberdade é completamente restringida.
— Como se fossemos gado. Nessa bolha.
— É uma espécie de estratégia de guerra. Algo que o governo faz inclusive em suas campanhas, como o
David Cameron com o Cambridge Analytica. Existe uma infraestrutura mastodôntica de transformação da informação, da comunicação através dos algoritmos.
As duas pessoas ao conversarem sobre as pinturas parecem concordar que seu título (Sussurro) é efetivamente curioso já que se trata de uma alusão à palavra de maior proporção da área pictórica. Palavra essa que está camuflada. Há um silêncio e se ouve: “co-mu-nis-mo”.
— Ao vê-la aí, realmente cria uma abstração muito grande. As pessoas realmente não entendem o que ela significa. Virou um cacoete.
As posturas daquelas pessoas se tornam mais intensas por voltarem ao transfundo daquelas palavras, ao fato de que elas haviam sido pinçadas de uma realidade na qual elas vivem.
— Estamos vivendo uma farsa, um teatro. É uma espécie de realismo construído diariamente. A gente não sabe mais o que é real de fato.
Subitamente, a conversa se torna mais profunda e centrada na velatura e no processo de velar a informação: De fazer essa informação desaparecer? De encobri-la? Por que ocultá-la? Por que torná-la menos clara? Ou talvez mais direta. Se movem calmamente em direção a uma grande instalação onde observam uma cadeira envolvida em uma tela de metal de padrão hexagonal. Parece feita com os princípios básicos do tear. Param silentes e observam à distância. Esboçam perguntas acerca dela. Seria uma tela de contenção, de conexão ou isolamento? Não havia possibilidade de contorná-la e seus corpos evidenciavam isso pelos movimentos de cabeça que buscam entrever algum ponto de acesso ao espaço ocupado pela cadeira. O acesso era possível até certo ponto e esse ponto era bem distante da cadeira situada no âmago daquela rede. Comentam sobre a curiosa alusão às redes de conexões e o fato de que não podem acessa-la. É preciso traçar novamente algumas considerações e se menciona as bolhas onde nos situamos, em meio a esses ambientes digitais de hiperconectividade. Já a outra pessoa traz à conversa uma observação mais inquietante: os desolados e
fantasmagóricos espaços urbanos da cidade ucraniana de Prípiat, situada na Zona de exclusão de
Chernobyl. Um silêncio se faz presente. Fotos dessa cidade são mencionadas. Foram mencionados o abandono e o tempo paralisado como resultado dos efeitos diretos do acidente nuclear de 1986. O campo de isolamento é o agente disparador, é o que lhe faz pensar nessa cidade. A impossibilidade de transpor aquele limite, de ingressar naquela bolha hexagonal, de sentar-se naquela cadeira, de ocupar aquele lugar. Esboçam outras considerações superficiais sobre a quantidade de vezes que artistas ao longo da história da arte tinham utilizado a cadeira como elemento simbólico. Se menciona que é uma tecnologia que nos separa do chão, que pode elevar uma pessoa durante um ato retórico ou proporcionar uma zona confortável para a reflexão, para a imaginação. Em seguida se menciona que a cadeira assemelha-se àquelas escolares e de súbito outra sequência de questões emergem em relação ao auto-aprendizado. O tempo de extrema conectividade é aludido. O nosso tempo. É disso que se trata. É um tempo que vela e desvela caoticamente a informação, um tempo que obstrui o campo de visão fazendo com que a percepção nunca seja clara. Permanecem em silêncio após falarem um pouco mais sobre o fluxo metafórico de informação trazida por essa emaranhada matéria. Caminham em direção à escada enquanto seguem conversando sobre as diversas interfaces e sobre a
co-dependência entre a rede (que cria simultaneamente conectividade e obstrução) e a cadeira. E antes mesmo que uma daquelas pessoas pudesse aprofundar-se em suas respectivas reflexões (em relação, por exemplo, à pouca espessura daquele entramado, que somente se via por sua concentração no espaço) um som reprimido começa a se escutar.
No novo espaço o clima é de certo modo fantasmagórico: um espaço permeado de divisórias de plástico de construção translúcido. Ali permanecem durante longo tempo escutando o som abafado, observando os
trabalhos de parede e aqueles escultóricos. Durante todo o percurso as lonas plásticas atrapalham suas visões e direcionam o fluxo de suas navegações no espaço. Um curioso dispositivo situado no chão da voltas ao redor de si mesmo coletando poeira e outros detritos. Uma delas menciona a sensação de falência e abandono. Uma daquelas pessoas para entre duas das desuniformes lonas e diz:
— É quase material, é quase como o estado que a gente vive. Sempre estamos cercados por interfaces:
barreiras virtuais.
— Sim. A barreira física, a doutrina do corpo, é mais antiga. Estamos em outro nível: mais violento e mais silencioso.
— Claro. Não existe um corpo que te impede. Hoje em dia o que existe é um auto impedimento, uma servidão voluntária, uma auto-prisão.
Em nenhum momento mencionam que a voz que se escuta abafada, falando sobre democracia e
liberdade, era de Ulysses Guimarães. Tampouco conversam sobre a amnésia que poderia sugerir esses véus. Muito menos sobre a escritura do desastre ou mesmo da impressão deixada por outros aqui
presentes em forma de ruína. Em vez disso, iniciam uma conversa sobre a reprodução e a propagação de condições a partir de um sistema imposto. E, isso é atiçado pelo encontro com lâminas de madeira que em sua superfície se observam pintadas áreas geométricas de branco e linhas de arame farpado. Há algo
violento naquela experiência. Utilizar-se de uma forma branca, imaculada, plana no contexto parece retomar questões de obras anteriores, parece contrastar com a rede de controle, distanciamento e isolamento. A mão de uma daquelas pessoas repete no ar a sinuosidade das linhas afirmando um eco dessa forma branca. Porém, em nenhum momento ocorre uma referência às plantas panópticas de Ramos de Azevedo. O que sim fazem é compartilhar as sensações que sentem. Em um momento dado se menciona a estrela escura, aquela morta, aquela que podemos somente ver seu espectro, seu fantasma, seu rastro no céu. Conversam angustiosamente sobre a desesperança surgida em 2019 e sobre o voo cego que está sendo travado pela contra-força. Mencionam sobre os movimentos de mudança, sobre os grupos que criam atrito no espaço político. E, novamente se menciona o voo cego, aquele que se precipita no espaço sem propriamente vê-lo. Um alvo fácil que não se importa em continuar resistindo. Continua pelo gosto que teve de um projeto democrático. Mas, parecem saber que aquele projeto já não existe. Talvez, o olho já não faça a diferença. Isso é o último que aquela pessoa diz.
Não há mais vida. Afinal de contas, estamos em espaço neo-liberal estéreo. E em meio a todo esse maquinário frio sentimos que não há mais pulsão de vida. “O olhar lançado à vida transformou-se em ideologia, que tenta nos iludir escondendo o fato de que não há mais vida”. Em meio ao maquinário, em meio à produção na estrutura neo-liberal a vida rebaixa-se e corresponde “a uma efêmera manifestação” da produção. Assim nos encontramos: em um ambiente em que tudo está misturado, “meio e fim vêem-se confundidos”. Nesses últimos dias as palavras de Elton Luiz Leite de Souza me fizeram muito sentido. Quando ele fala sobre ‘con-fiar’, sobre o ato de ‘fiar junto’, sobre ‘novelo’ como a criação de um ‘novo elo’. “Quem confia, tece: cria novos elos com o fio que puxou de um novelo, que é sempre fonte para novos elos e agenciamentos.” A todo momento estamos tramando esses novelos porque ainda há vida. Claramente pode deixar de haver, mas ainda há vida. No Chile, outro dia, escutei a humilde e gentil voz de Elisa Loncón. Em meio a jornalistas vorazes para escutar o que se poderia saber após o primeiro mês da conversa sobre a nova constituição: “Falei da ternura” E, essa simples palavra (nunca antes proferida por aquele sujeito) remete à luta pela ternura de Elicura Chihuailaf. Digo isso, pelas palavras que enunciou Allende em seu discurso: “E digo-vos que tenho a certeza de que a semente que demos à consciência, digna de milhares e milhares de chilenos, não pode ser segada definitivamente. Eles têm a força, podem nos oprimir, mas os processos sociais não param nem com o crime nem com a força. A história é nossa e os povos a fazem.”. Digo isso pelos tantos jardins e corpos verdes de vida que foram criados por tantos outres que travo conversação. Digo isso pelo jardim criado por sua amiga. Afinal de contas “Ser livre é assumir o peso do futuro. É cumprir a tarefa de fazer algo não somente de nós mesmos, mas do mundo, cuja construção agora não está em outras senão em nossas mãos”.
Sigamos plantando com as mãos que resistem.
Tiago de Abreu Pinto
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Hélio Oiticica. conglomerado newyorkaises. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013.
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https://elpais.com/internacional/2020-11-11/jair-bolsonaro-tenemos-que-dejar-de-ser-un-pais-de-maricas.html
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/nao-sou-coveiro-diz-bolsonaro-sobre-qual-seria-numero-aceitavel-de-mortes-por-coronavirus.shtml
(O autor deste texto realizou a tradução em português das publicações em inglês e espanhol)
O ali:leste coletivo-escola nômade é baseado na Cidade Tiradentes, extremo leste de São Paulo, e foi fundado em 2018, em meio às eleições presidenciais.
Se colocando em diferentes pontos da exposição, e confrontando as paredes, os artistas declamam, a partir de um repertório da poesia slam, ideias ligadas ao conceito de democracia. A união das vozes gera uma manifestação cacofônica.