ORDEM MARGINAL
Em Base hierárquica (2011-), um trabalho sutilmente site-specific que André Komatsu tem realizado em vários países, em cada um recorrendo a copos, taças e materiais de construção comuns no local, diversos blocos de concreto encontram-se apoiados em copos de vidro aparentemente simples e baratos, mas evidentemente resistentes o suficiente para sustentar o peso, enquanto os estilhaços de uma taça testemunham da fragilidade da sua elegância. Em muitos dos títulos escolhidos pelo artista ecoam reminiscências foucaultianas, e Base hierárquica, apesar de não ser um dos mais explícitos nesse sentido, está certamente entre os que melhor exemplificam a maneira como a teoria da microfísica do poder de Michel Foucault, para além dos títulos, está no cerne das suas preocupações e até, poder-se-ia dizer, da sua visão de mundo. O discurso sobre o poder e sobre os conflitos sociais, mais ou menos latentes, permeia os materiais, influencia sua escolha, constitui, de certa maneira, a verdadeira matéria prima das esculturas e instalações de André Komatsu. Nesse sentido, a presença, recorrente desde pelo menos o tempo da ação-performance Projeto – Casa/entulho (2002), de utilizar fragmentos descartados, restos, sobras encontradas em caçambas, também é reveladora do desejo de subverter os valores convencionalmente atribuídos aos próprios materiais e, de maneira mais geral, aos elementos do cotidiano, instaurando, para citar o título de outro trabalho, uma Nova Ordem (2009).
Nos trabalhos da série Três vidros (2012) incluídos nesta exposição, o valor dos fragmentos é enfatizado, já que é com eles que são construídas arquiteturas de linhas modernas, isoladas em lotes perfeitamente planos, seguindo à risca os preceitos modernistas. A transformação de ícones da época dourada da arquitetura nacional em aglomerados de detritos e sobras pode ser interpretada como denúncia da violência implícita no processo construtivo, ou das desigualdades que essa arquitetura, cujos sonhos democráticos naufragaram na progressiva aproximação com as elites sociais, políticas e econômicas, acaba por validar e preservar atrás de suas formas límpidas e simples. Não se trata dos únicos trabalhos da exposição que nascem da tensão entre elementos naturais, fragmentados e aparentemente desarrumados de um lado, e formas precisas e rigorosas do outro. Mas essa contraposição é, de certa maneira, ilusória, como demonstra o galho, contorto e bruto, que, contudo, se encaixa perfeitamente e sustenta uma mesa milimetricamente quadrada (Cooperativa antagônica, 2013), ou ainda a imagem de um tronco, impressa num papel anónimo e simples, que quase se funde com o pontalete que a segura no alto, contra a parede (Campo aberto 4). Por conta dessa tensão entre polos opostos (natural e artificial / geométrico e orgânico / bruto e acabado, etc.), as obras de André Komatsu não renunciam à prerrogativa de constituírem, exatamente, campos abertos, como se estivessem ainda a acontecer na frente do observador, ao invés de apresentar-se como algo concluído.
Ao recorrer, direta ou indiretamente, à técnica da anamorfose (Anamorfose sistemática 3 e 4, ambas 2012, e Campo Aberto 2, 2013), o artista enfatiza, de certa maneira, a necessidade de uma interpretação política ou de qualquer maneira metafórica para a exposição como um todo. A chave, para a compreensão de uma anamorfose, é quase sempre a mudança do ponto de vista, o deslocamento que permite olhar as coisas a partir de outro ângulo, revelando como o que parecia obscuro e abstrato seja, de fato, perfeitamente lógico e compreensível, e é exatamente isso que as obras aqui reunidas pedem: uma mudança de ponto de vista, a disponibilidade para serem lidas de outra forma, e entendidas de outra maneira. Os tijolos, as arquiteturas, os relógios que confluem para o universo artístico de André Komatsu são, além do que eles aparentam ser, convites à resistência social. Uma obra como Time Out (2013), por exemplo, em que umas resmas de papel sulfite impedem aos ponteiros de um relógio de seguir seu curso, é antes de mais nada um manifesto social e político. O ato metaforicamente carregado de parar o tempo seria impossível para uma única folha, e a força do trabalho, para além da sua beleza poética, consiste exatamente em demonstrar a potência, a carga revolucionária da união, capaz de realizar gestos impossíveis.
E essa mesma carga aparece no trabalho que pode ser considerado, exatamente pelo fato de fugir da lógica da tensão dominante na exposição, o que fornece sua chave mais importante: Esquadria disciplinar / Ordem marginal (2013). Aparentemente, a contraposição entre ordens distintas é ausente aqui: os dois grupos de chapas, o segundo resultante das que “sobram” do primeiro, obedecem a ambos à mesma lógica rigorosa e dedutiva. Mas algumas chapas sobram ainda, e voltam, como uma espécie de vírus, infringindo a bidimensionalidade que parecia dominar o trabalho, sobressaindo-se da parede e propondo, nas palavras do artista, “um outro modelo de coexistência”. No universo aberto de André Komatsu, o próprio conceito de ordem é, poder-se-ia dizer, marginal, e não central. A ordem, como a conhecemos convencionalmente, é uma das possíveis formas em que o mundo pode manifestar-se, e não necessariamente a mais facilmente compreensível. Basta dar um passo, olhar as coisas de um novo ângulo, e o que parecia ordenado poderá revelar-se desarrumado, o que parecia caótico mostrar, finalmente, sua lógica irrepreensível.
Jacopo Crivelli Visconti.
ORDEM MARGINAL
Em Base hierárquica (2011-), um trabalho sutilmente site-specific que André Komatsu tem realizado em vários países, em cada um recorrendo a copos, taças e materiais de construção comuns no local, diversos blocos de concreto encontram-se apoiados em copos de vidro aparentemente simples e baratos, mas evidentemente resistentes o suficiente para sustentar o peso, enquanto os estilhaços de uma taça testemunham da fragilidade da sua elegância. Em muitos dos títulos escolhidos pelo artista ecoam reminiscências foucaultianas, e Base hierárquica, apesar de não ser um dos mais explícitos nesse sentido, está certamente entre os que melhor exemplificam a maneira como a teoria da microfísica do poder de Michel Foucault, para além dos títulos, está no cerne das suas preocupações e até, poder-se-ia dizer, da sua visão de mundo. O discurso sobre o poder e sobre os conflitos sociais, mais ou menos latentes, permeia os materiais, influencia sua escolha, constitui, de certa maneira, a verdadeira matéria prima das esculturas e instalações de André Komatsu. Nesse sentido, a presença, recorrente desde pelo menos o tempo da ação-performance Projeto – Casa/entulho (2002), de utilizar fragmentos descartados, restos, sobras encontradas em caçambas, também é reveladora do desejo de subverter os valores convencionalmente atribuídos aos próprios materiais e, de maneira mais geral, aos elementos do cotidiano, instaurando, para citar o título de outro trabalho, uma Nova Ordem (2009).
Nos trabalhos da série Três vidros (2012) incluídos nesta exposição, o valor dos fragmentos é enfatizado, já que é com eles que são construídas arquiteturas de linhas modernas, isoladas em lotes perfeitamente planos, seguindo à risca os preceitos modernistas. A transformação de ícones da época dourada da arquitetura nacional em aglomerados de detritos e sobras pode ser interpretada como denúncia da violência implícita no processo construtivo, ou das desigualdades que essa arquitetura, cujos sonhos democráticos naufragaram na progressiva aproximação com as elites sociais, políticas e econômicas, acaba por validar e preservar atrás de suas formas límpidas e simples. Não se trata dos únicos trabalhos da exposição que nascem da tensão entre elementos naturais, fragmentados e aparentemente desarrumados de um lado, e formas precisas e rigorosas do outro. Mas essa contraposição é, de certa maneira, ilusória, como demonstra o galho, contorto e bruto, que, contudo, se encaixa perfeitamente e sustenta uma mesa milimetricamente quadrada (Cooperativa antagônica, 2013), ou ainda a imagem de um tronco, impressa num papel anónimo e simples, que quase se funde com o pontalete que a segura no alto, contra a parede (Campo aberto 4). Por conta dessa tensão entre polos opostos (natural e artificial / geométrico e orgânico / bruto e acabado, etc.), as obras de André Komatsu não renunciam à prerrogativa de constituírem, exatamente, campos abertos, como se estivessem ainda a acontecer na frente do observador, ao invés de apresentar-se como algo concluído.
Ao recorrer, direta ou indiretamente, à técnica da anamorfose (Anamorfose sistemática 3 e 4, ambas 2012, e Campo Aberto 2, 2013), o artista enfatiza, de certa maneira, a necessidade de uma interpretação política ou de qualquer maneira metafórica para a exposição como um todo. A chave, para a compreensão de uma anamorfose, é quase sempre a mudança do ponto de vista, o deslocamento que permite olhar as coisas a partir de outro ângulo, revelando como o que parecia obscuro e abstrato seja, de fato, perfeitamente lógico e compreensível, e é exatamente isso que as obras aqui reunidas pedem: uma mudança de ponto de vista, a disponibilidade para serem lidas de outra forma, e entendidas de outra maneira. Os tijolos, as arquiteturas, os relógios que confluem para o universo artístico de André Komatsu são, além do que eles aparentam ser, convites à resistência social. Uma obra como Time Out (2013), por exemplo, em que umas resmas de papel sulfite impedem aos ponteiros de um relógio de seguir seu curso, é antes de mais nada um manifesto social e político. O ato metaforicamente carregado de parar o tempo seria impossível para uma única folha, e a força do trabalho, para além da sua beleza poética, consiste exatamente em demonstrar a potência, a carga revolucionária da união, capaz de realizar gestos impossíveis.
E essa mesma carga aparece no trabalho que pode ser considerado, exatamente pelo fato de fugir da lógica da tensão dominante na exposição, o que fornece sua chave mais importante: Esquadria disciplinar / Ordem marginal (2013). Aparentemente, a contraposição entre ordens distintas é ausente aqui: os dois grupos de chapas, o segundo resultante das que “sobram” do primeiro, obedecem a ambos à mesma lógica rigorosa e dedutiva. Mas algumas chapas sobram ainda, e voltam, como uma espécie de vírus, infringindo a bidimensionalidade que parecia dominar o trabalho, sobressaindo-se da parede e propondo, nas palavras do artista, “um outro modelo de coexistência”. No universo aberto de André Komatsu, o próprio conceito de ordem é, poder-se-ia dizer, marginal, e não central. A ordem, como a conhecemos convencionalmente, é uma das possíveis formas em que o mundo pode manifestar-se, e não necessariamente a mais facilmente compreensível. Basta dar um passo, olhar as coisas de um novo ângulo, e o que parecia ordenado poderá revelar-se desarrumado, o que parecia caótico mostrar, finalmente, sua lógica irrepreensível.
Jacopo Crivelli Visconti.