André Vargas: conceitualismo preto.
Patakori, escreve André Vargas sobre um facão. A palavra faz referência ao gesto de cortar as cabeças dos inimigos, como em uma passagem das histórias de Ogum, Orixá que o trabalho reverencia. Com o gesto, e, sobretudo, com a palavra, invoca-se aquele que, na criação do mundo, abriu o caminho na densa floresta com dois facões, possibilitando a chegada dos outros Orixás.
Criar jogos de frases e palavras parece um aceno central no trabalho do artista. Em uma pintura, André Vargas homenageia o mesmo Orixá com a frase “Ogum leva tudo a ferro e fogo”, o que destaca a característica de Ogum como deus do ferro, das ferramentas da agricultura, e de uma personalidade impetuosa e colérica. Aqui, podemos perceber uma das vias de compreensão dos trabalhos do artista que, ao chegar à lógica das frases, ao jogo sintático, se aproxima, ao mesmo tempo, do resultado dos trabalhos, já que as próprias frases se abrem em metáforas, palíndromos, e constituem potentes aparições. O artista cria imagens, escolhe as cores vermelho e azul, cores de Ogum na umbanda e no candomblé, respectivamente, para compor a pintura.
A poesia, na trajetória do artista, possui dois vieses. Vindo de uma família de músicos, André confessa sua necessidade de mostrar competência artística, já que seus irmãos, Julia e Ivo Vargas, cantam e tocam. Sua mãe foi maestrina de coral, seu pai, músico e compositor, seus avós, saxofonistas e trompetistas, este último atuando com a Orquestra Tabajara e tocando com grandes bambas como Sara Vaughan e Wilson Simonal. Com isso, André resolve enveredar pela poesia. Por outro lado, com experiência em mediação de exposições, atuando diretamente com públicos variados de museus, André Vargas passa a criar jogos, dispositivos de interação, nos quais já aparecem os trocadilhos, como “benzadez”: dois baralhos, em que se revelavam os perrengues do corpo e as ervas que os curariam. Ao se colocar um perrengue na mesa, o/a participante precisa combatê-lo com uma erva curativa. André sempre se dedicou aos encantamentos e às mandingas.
“Fogo encruzado”, primeira exposição individual do artista, reúne parte de sua produção recente, com trabalhos, em sua maioria, inéditos. Assim, André Vargas exercita uma observação aproximada aos cultos e invocações populares, ao mesmo tempo em que se apropria de elementos banais, papeis pardos, faixas, armários. Seus trabalhos são, também, orações: “Ó Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos trovões”, escreve o artista nas bordas de uma pintura na qual uma labareda está representada por uma touceira da planta “espada de Santa Bárbara/Iansã”.
O artista se dedica a pensar o lugar do fogo tanto nos cultos a Exu e Xangô, quanto na incorporação de elementos de revolta e violência contra um passado colonial cotidianamente renovado. Em Retribuindo a gentileza, André repete a palavra “chama”, homenageando o Profeta Gentileza, mantendo a tipografia do poeta que deambulava pelas ruas do Rio de Janeiro, pregando o amor como arma e antídoto nas mazelas do mundo. Fazendo referência mais direta a Xangô, Vargas escreve “Aquele que come brasa” em um trabalho composto por sete cordões de contas vermelhas e brancas. Comer brasa é uma das características do Orixá que veio ao mundo com a missão de conduzir os trovões e que guarda consigo o segredo de engolir brasa e soltar chamas pela boca, destruindo os males e os inimigos. De outro modo, em Coquetel Marafo, André se utiliza de garrafas comuns de aguardentes, colocando tecidos nas suas pontas, como vemos nos chamados coquetéis molotovs, usados em manifestações de rua, vivenciadas no Brasil sobretudo a partir de 2013. Também vemos referências aos vários nomes de Exu, em que a palavra “fogo” faz parte. O artista, então, retira a palavra, deixando somente o complemento dos nomes, como Pomba (gira) do fogo e Exu Pinga (fogo).
Esse método de lidar com a sintaxe das frases de origem afro religiosa coloca o artista em consonância com o que Lélia Gonzalez chamava de Pretoguês. Ou seja, há um modo de abordar a norma culta da língua portuguesa que aceita o que supostamente seria erro, como o uso do erre em lugar do ele, “framengo”, “pobrema”. Gonzalez coloca tais apropriações como um posicionamento político. E, aqui, lembremos do canto ancestral de Clementina de Jesus, cantando Yaô, de Pixinguinha, no “Aqui có no terreiro/Pelú adié”. A língua brasileira e suas incorporações banto, iorubá. Palavras africanas como “abadá, banzo, caçamba, cachaça”, como nos informa Margarida Petter, são, hoje, de compreensão ampla, enquanto outras têm usos mais informais, como cafofo e muquifo. Em outro trabalho, André Vargas teoriza, “Vossa mercê”, “Vosmecê”, “Vancê”, “Você é uma invenção preta”, atiçando, ainda mais, a presença do pretoguês em nossa língua.
André Vargas vem de uma família escravizada em um engenho de café e de cultivo do algodão, Fazenda dos Saldanha, em Chiador, nas Minas Gerais. Contudo, resistindo à lógica colonial, a família, nas gerações seguintes, compra as próprias terras. Tendo sua ancestralidade como força-motriz, o trabalho do artista é repleto de reverências às almas e pretos velhos, seus antepassados, vibrando em altares e oratórios recodificados, onde lemos, “Jesus é Preto Velho”, o que nos coloca em consonância com a tese de que, nascido próximo à África, Jesus só podia ser preto, fato confirmado em reconstituições científicas de seu rosto, que destoam das recriações arianas produzidas em Hollywood. Floriano, Nazário, Carolina, Mariana, Adelaide são alguns dos ancestrais de André Vargas aos quais apresentamos nossos respeitos, e pedimos licença para citá-los.
Como uma espécie de conceitualismo preto, André Vargas joga com a lógica da vingança quando o assunto se direciona à palavra “engenho”, naquilo que Jota Mombaça denomina como a redistribuição da violência. André pesquisa nomes de bairros do Rio de Janeiro nos quais permaneceu a palavra “engenho”, e constrói frases de revolta e revide às atrocidades da escravidão. Em tudo, uma única ideia, incendiá-los: “O Engenho de Dentro queimará noite afora”, “O fogo caminha no Engenho da Rainha”, “Meu fogo será cruel no Engenho de São Miguel”.
Em um país onde 56% da população é constituída por pessoas negras, a língua franca, usada nos terreiros, nas gírias, nas quebradas, deveria ser chamada de nacional e constar nos dicionários. A isso a obra de André Vargas se dedica, a pensar a tautologia em acepção preta, em que, da frieza dos jogos filosóficos europeus, podemos “brotar” e ampliar o jogo, alastrando o fogo, para além, para muitos, fazendo ecoar a história de nossos quilombos. “Só Exu na causa”.
Marcelo Campos, Professor, Curador-chefe do Museu de Arte do Rio, MAR.
André Vargas: conceitualismo preto.
Patakori, escreve André Vargas sobre um facão. A palavra faz referência ao gesto de cortar as cabeças dos inimigos, como em uma passagem das histórias de Ogum, Orixá que o trabalho reverencia. Com o gesto, e, sobretudo, com a palavra, invoca-se aquele que, na criação do mundo, abriu o caminho na densa floresta com dois facões, possibilitando a chegada dos outros Orixás.
Criar jogos de frases e palavras parece um aceno central no trabalho do artista. Em uma pintura, André Vargas homenageia o mesmo Orixá com a frase “Ogum leva tudo a ferro e fogo”, o que destaca a característica de Ogum como deus do ferro, das ferramentas da agricultura, e de uma personalidade impetuosa e colérica. Aqui, podemos perceber uma das vias de compreensão dos trabalhos do artista que, ao chegar à lógica das frases, ao jogo sintático, se aproxima, ao mesmo tempo, do resultado dos trabalhos, já que as próprias frases se abrem em metáforas, palíndromos, e constituem potentes aparições. O artista cria imagens, escolhe as cores vermelho e azul, cores de Ogum na umbanda e no candomblé, respectivamente, para compor a pintura.
A poesia, na trajetória do artista, possui dois vieses. Vindo de uma família de músicos, André confessa sua necessidade de mostrar competência artística, já que seus irmãos, Julia e Ivo Vargas, cantam e tocam. Sua mãe foi maestrina de coral, seu pai, músico e compositor, seus avós, saxofonistas e trompetistas, este último atuando com a Orquestra Tabajara e tocando com grandes bambas como Sara Vaughan e Wilson Simonal. Com isso, André resolve enveredar pela poesia. Por outro lado, com experiência em mediação de exposições, atuando diretamente com públicos variados de museus, André Vargas passa a criar jogos, dispositivos de interação, nos quais já aparecem os trocadilhos, como “benzadez”: dois baralhos, em que se revelavam os perrengues do corpo e as ervas que os curariam. Ao se colocar um perrengue na mesa, o/a participante precisa combatê-lo com uma erva curativa. André sempre se dedicou aos encantamentos e às mandingas.
“Fogo encruzado”, primeira exposição individual do artista, reúne parte de sua produção recente, com trabalhos, em sua maioria, inéditos. Assim, André Vargas exercita uma observação aproximada aos cultos e invocações populares, ao mesmo tempo em que se apropria de elementos banais, papeis pardos, faixas, armários. Seus trabalhos são, também, orações: “Ó Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos trovões”, escreve o artista nas bordas de uma pintura na qual uma labareda está representada por uma touceira da planta “espada de Santa Bárbara/Iansã”.
O artista se dedica a pensar o lugar do fogo tanto nos cultos a Exu e Xangô, quanto na incorporação de elementos de revolta e violência contra um passado colonial cotidianamente renovado. Em Retribuindo a gentileza, André repete a palavra “chama”, homenageando o Profeta Gentileza, mantendo a tipografia do poeta que deambulava pelas ruas do Rio de Janeiro, pregando o amor como arma e antídoto nas mazelas do mundo. Fazendo referência mais direta a Xangô, Vargas escreve “Aquele que come brasa” em um trabalho composto por sete cordões de contas vermelhas e brancas. Comer brasa é uma das características do Orixá que veio ao mundo com a missão de conduzir os trovões e que guarda consigo o segredo de engolir brasa e soltar chamas pela boca, destruindo os males e os inimigos. De outro modo, em Coquetel Marafo, André se utiliza de garrafas comuns de aguardentes, colocando tecidos nas suas pontas, como vemos nos chamados coquetéis molotovs, usados em manifestações de rua, vivenciadas no Brasil sobretudo a partir de 2013. Também vemos referências aos vários nomes de Exu, em que a palavra “fogo” faz parte. O artista, então, retira a palavra, deixando somente o complemento dos nomes, como Pomba (gira) do fogo e Exu Pinga (fogo).
Esse método de lidar com a sintaxe das frases de origem afro religiosa coloca o artista em consonância com o que Lélia Gonzalez chamava de Pretoguês. Ou seja, há um modo de abordar a norma culta da língua portuguesa que aceita o que supostamente seria erro, como o uso do erre em lugar do ele, “framengo”, “pobrema”. Gonzalez coloca tais apropriações como um posicionamento político. E, aqui, lembremos do canto ancestral de Clementina de Jesus, cantando Yaô, de Pixinguinha, no “Aqui có no terreiro/Pelú adié”. A língua brasileira e suas incorporações banto, iorubá. Palavras africanas como “abadá, banzo, caçamba, cachaça”, como nos informa Margarida Petter, são, hoje, de compreensão ampla, enquanto outras têm usos mais informais, como cafofo e muquifo. Em outro trabalho, André Vargas teoriza, “Vossa mercê”, “Vosmecê”, “Vancê”, “Você é uma invenção preta”, atiçando, ainda mais, a presença do pretoguês em nossa língua.
André Vargas vem de uma família escravizada em um engenho de café e de cultivo do algodão, Fazenda dos Saldanha, em Chiador, nas Minas Gerais. Contudo, resistindo à lógica colonial, a família, nas gerações seguintes, compra as próprias terras. Tendo sua ancestralidade como força-motriz, o trabalho do artista é repleto de reverências às almas e pretos velhos, seus antepassados, vibrando em altares e oratórios recodificados, onde lemos, “Jesus é Preto Velho”, o que nos coloca em consonância com a tese de que, nascido próximo à África, Jesus só podia ser preto, fato confirmado em reconstituições científicas de seu rosto, que destoam das recriações arianas produzidas em Hollywood. Floriano, Nazário, Carolina, Mariana, Adelaide são alguns dos ancestrais de André Vargas aos quais apresentamos nossos respeitos, e pedimos licença para citá-los.
Como uma espécie de conceitualismo preto, André Vargas joga com a lógica da vingança quando o assunto se direciona à palavra “engenho”, naquilo que Jota Mombaça denomina como a redistribuição da violência. André pesquisa nomes de bairros do Rio de Janeiro nos quais permaneceu a palavra “engenho”, e constrói frases de revolta e revide às atrocidades da escravidão. Em tudo, uma única ideia, incendiá-los: “O Engenho de Dentro queimará noite afora”, “O fogo caminha no Engenho da Rainha”, “Meu fogo será cruel no Engenho de São Miguel”.
Em um país onde 56% da população é constituída por pessoas negras, a língua franca, usada nos terreiros, nas gírias, nas quebradas, deveria ser chamada de nacional e constar nos dicionários. A isso a obra de André Vargas se dedica, a pensar a tautologia em acepção preta, em que, da frieza dos jogos filosóficos europeus, podemos “brotar” e ampliar o jogo, alastrando o fogo, para além, para muitos, fazendo ecoar a história de nossos quilombos. “Só Exu na causa”.
Marcelo Campos, Professor, Curador-chefe do Museu de Arte do Rio, MAR.