1. Claudia Andujar é uma artista de olhar múltiplo, não se restringe às fotografias do povo Yanomami, mas dirige o foco da sua câmera para os mais distintos lugares do país. Para além das fotos com os Yanomami, ela já retratou o perfil da cidade, mergulhou na Rua Direita e captou diferentes cenas e personagens urbanos.
2. Andujar está sempre voltada à criatura humana e preocupada com os paradoxos que envolvem a espécie. Na série Yanomami ela busca captar o ser e não o índio: nessas fotografias de indígenas ela destaca o olhar profundo, o corpo na sua mansidão, na sua potência e na sua tragédia. Nas fotografias urbanas ela trata da ecologia e não de paisagens: nesses trabalhos citadinos ela dá expressão às condições da vivência, à velocidade das coisas e à desordem construída pela civilização.
3. É uma artista e não uma antropóloga. Por isso reúne ética e estética. Seus trabalhos são obtidos pelo compartilhamento, pelo aprendizado da convivência da artista com o outro, pela constatação da difícil sociabilidade e pela insistência em fazer arte.
4. A linguagem fotográfica exercida por Andujar é o resultado de uma performance. Nela está implícita a ação e a interação do corpo com o meio-ambiente e com o outro. Para obter suas fotografias ela age com o corpo inteiro, dispõe-se a movimentar-se de um lugar para outro, muda sua perspectiva em reação aos acontecimentos. Por exemplo: viver entre os Yanomami, caminhar pelas ruas. Os trabalhos da artista supõem, portanto, ação, locomoção. Vagar à procura de algo…
5. Constata-se a performance no fazer artístico de Andujar: ela realizou uma viagem, incluiu o seu corpo e suas percepções num processo de deslocamento, controlando algumas ações programadas e deixando-se levar por eventuais acasos. Vivenciou os diferentes espaços e trocou informações com o ambiente.
6. Foi assim que em 1976, durante 16 dias, Claudia Andujar empreendeu uma viagem sem fim, a bordo de um fusca de cor preta. Partiu da cidade de São Paulo, subiu até Mato Grosso, passou por Manaus, atravessou Rondônia, para chegar a Roraima. Trafegou por várias rodovias, inclusive a Perimetral Norte – BR-210. Esse processo de longa duração engendrou uma série de práticas que validam tanto as experiências vivenciadas no transcurso dos deslocamentos quanto os resultados finais manifestos nas fotografias.
7. E, nesta viagem-performance, ela fotografou muito. O ato de fotografar tornou-se tão corriqueiro quanto respirar.
8. Fotografar decorre da escolha estética da artista por um suporte mecânico para dar conta das coisas do mundo. Ou seja, trata-se da conquista de uma linguagem para perscrutar e organizar a realidade circundante. Com isto, Andujar não apenas capta o instante, mas o sentido do momento e o sentido do fluxo da passagem do tempo. Ela retém o que é aparentemente passageiro e torna-o universal. Esse processo todo se clarifica mais ainda quando a artista se desloca em um extenso itinerário.
9. Essa viagem de Claudia Andujar tem sua equivalência cinematográfica no filme “Bye, Bye, Brasil” (1979), de Carlos Diegues. Ambos os autores pegam estradas do norte do país para dar conta de buscas pessoais e sociais. E, também, o Brasil é tomado como o grande personagem destas duas sagas.
10. Nesse projeto de deslocamento pelo país, em 1976, Andujar fez as fotografias que agora são mostradas nesta exposição da Galeria Vermelho. Entre as inúmeras fotos obtidas ao longo da viagem, foram selecionadas doze, reunidas em quatro trípticos. A sucessão de três imagens, em cada trabalho, sintetiza a viagem, deixa perceber o movimento do corpo e do carro no espaço e indica a passagem do tempo. Além do mais, a sequência de três imagens, em cada unidade, retém a ideia de deslocamento.
11. A viagem foi uma experiência da presença da artista no mundo do qual resultou imagens que permitem vislumbrar tanto as pulsações da realidade quanto novos experimentos de linguagem. Todas as fotografias foram feitas em branco e preto, mostrando que recursos mínimos podem melhor expressar a concretude do real.
12. Há uma figura onipresente nas fotografias, que é o automóvel fusca de cor preta, adquirido exclusivamente para esse empreendimento. A partir do seu interior é que Andujar direciona a câmera para o exterior. Todas as fotografias são obtidas de dentro do carro para fora. Cada fotografia tem um duplo enquadramento: aquele dado pela lente da câmera e o outro dado pelo recorte das estruturas do carro.
13. Assim, do interior do automóvel, Andujar mira o mundo externo, registrando num primeiro plano partes da arquitetura e do espaço interno do fusca. De imediato o olhar percebe as janelas, as colunas, o retrovisor e o painel traseiro do carro.
14. Nessa mostra estão sendo exibidas quatro trípticos sempre marcados pela representação plástica da velocidade. A câmera se desloca tendo como referência dois parâmetros: a relativa inércia dada pelas partes construtivas do carro e a fugaz passagem do cenário exterior.
15. Além de tratarem do deslocamento, essas fotos discutem a relação dentro-fora. Convivem imagens de um espaço interno junto a outro externo. As dicotomias desaparecem para dar lugar à unidade entre diferentes lugares e situações. As fotografias exploram as separações na simultaneidade e conseguem juntar duas dimensões espaciais em um único plano.
16. Quando Claudia Andujar chega a seu suposto destino (pois a viagem é uma situação permanente para a artista), em Roraima, os índios a recebem exclamando watupari (ser urubu). O fusca preto, usado para a locomoção na viagem, aparece ao povo Yanomami como um urubu que perdeu as penas e mesmo assim voou longe.
17. As fotografias de Claudia Andujar espreitam a realidade, sondam o humano.
18. Um tríptico traz a cidade de São Paulo, uma massa urbana compacta. Nele há, inclusive, uma imagem passageira do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Nesse conjunto, as imagens são mais estáveis, o tom geral mais escuro e a presença da arquitetura do automóvel é bastante presente. Como se a estrutura industrial dada pela fuselagem do carro correspondesse ao alto grau de urbanização que caracteriza o entorno do automóvel naquele momento do deslocamento.
19. A sequência geral dos trabalhos expostos deixa perceber a saída do centro da cidade rumo ao subúrbio; a cidade se afasta para dar lugar ao interior do Brasil, à mata que irá virar sertão, pelo seu desmatamento.
20. Outro tríptico mostra a floresta, em parte já desmatada, no Norte do país, próximo ao local de destino. As fotos deste trabalho foram feitas com infravermelhos. Portanto, resulta em uma luz estourada, escondendo e desvelando a mata – suspeita-se que ela foi queimada. O que terá fornecido o excesso de luz que aparece nestas três fotografias? Apenas o infravermelho ou os resquícios do fogo recente nas árvores?
21. Claudia Andujar relaciona todas as fotos entre si, o urbano está presente no rural e a expansão do urbano afeta profundamente o campo. Estes trabalhos são registros e memórias, tornando patente a consciência crítica da artista.
22. Uma característica do infravermelho é deixar muito iluminada a matéria viva fotografada e, por sua vez, tingir de escuro a matéria morta. Este processo oferece contrastes entre transparência e densidade, entre luz e sombra. E, de forma geral, todos os trabalhos obtidos durante a viagem tiram proveito destes contrastes, como se as fotografias fossem metáforas dos conflitos existentes no mundo externo ao automóvel.
23. Outra aproximação entre as fotos pictóricas e cinematográficas de Andujar pode ser feita, agora, com dois filmes de Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967). Tanto em um artista quanto em outro são possíveis afinações da ordem do pensamento político e de ordem formal. Os dois buscam entender o Brasil a partir do ponto de vista de suas próprias experiências, destacando a presença da visão trágica para formular o mundo e a política. Assim como Glauber Rocha, Andujar também trabalha os contrastes formais das imagens e estoura a luz para afetar nossa percepção, para gritar contra as más contingências de uma nação.
24. A dimensão política perpassa a obra de Claudia Andujar. De imediato vale lembrar a série “Marcados” (1981-1983) ou suas atividades na defesa da causa indígena.
25. A obra dessa artista indaga sobre o Brasil – sua gente e seus lugares, lançando um olhar estrangeiro sobre o país. Em certas circunstâncias, esse olhar do viajante que veio do exterior ajuda a aguçar a percepção das coisas e a imprimir maior expressividade às questões da realidade.
26. As fotos captadas durante o voo do ‘urubu’ portam o ponto de vista do viajante, num duplo sentido: enquanto compreensão do Brasil e, também, enquanto conhecimento de si mesmo.
27. Em Andujar, a fotografia deve ser entendida, também, como forma de arte-conhecimento.
28. As fotografias de Andujar fazem parte de vivências para formação da própria identidade. Este processo supõe relacionar-se com o outro e com o ambiente. Fotografar é investigar o real e encontrar nele um sentido, além de ser um movimento da e para a subjetividade.
29. Por isso a dimensão política nesta artista não é explícita e determinante, pois a política está delimitada por questões existenciais e formais. Em Andujar há uma amplitude estética que alarga o território da política.
30. Ao se locomover em um automóvel, torná-lo um personagem das fotografias e manipular uma câmara de alta tecnologia, Andujar engendra ações e conhecimentos na ordem industrial e ocidental, dirigindo-se ao encontro do Oriente. Como atenuar o impacto dessa defrontação? A viagem serve para ela se despir dos valores da sociedade hegemônica e criar as condições para de se encontrar, então, com o povo Yanomami. Torna-se necessário um tempo de preparação para o encontro entre eu e o outro.
31. Os dezesseis dias constituem um tempo de espera. O tempo no interior do carro é o tempo do recolhimento contra a velocidade do tempo externo. Portanto, essas fotografias obtidas durante a viagem expressam a morosidade e a densidade, dadas simbolicamente pelos primeiros planos da estrutura interna da casa-automóvel e expressam também as fusões e sobreposições, dadas pela impressão de velocidade, valor que move a sociedade circundante.
32. Durante o percurso de dezesseis dias, Claudia Andujar sondou o país para a sua própria formação.
33. Essa viagem de 1976 é um ritual de passagem: vida. É uma performance de longa duração, como propõe Marina Abramovic: arte. Nela ocorreu um rito e uma entrega como fazem os Yanomami. Este acontecimento performático que durou dezesseis dias é um resumo da trajetória de Claudia Andujar que consegue realizar a difícil e desejada aproximação entre arte e vida.
São Paulo, abril de 2013.
Miguel Chaia Miguel Chaia é pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP), da PUC-SP. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de textos sobre arte brasileira.
1. Claudia Andujar é uma artista de olhar múltiplo, não se restringe às fotografias do povo Yanomami, mas dirige o foco da sua câmera para os mais distintos lugares do país. Para além das fotos com os Yanomami, ela já retratou o perfil da cidade, mergulhou na Rua Direita e captou diferentes cenas e personagens urbanos.
2. Andujar está sempre voltada à criatura humana e preocupada com os paradoxos que envolvem a espécie. Na série Yanomami ela busca captar o ser e não o índio: nessas fotografias de indígenas ela destaca o olhar profundo, o corpo na sua mansidão, na sua potência e na sua tragédia. Nas fotografias urbanas ela trata da ecologia e não de paisagens: nesses trabalhos citadinos ela dá expressão às condições da vivência, à velocidade das coisas e à desordem construída pela civilização.
3. É uma artista e não uma antropóloga. Por isso reúne ética e estética. Seus trabalhos são obtidos pelo compartilhamento, pelo aprendizado da convivência da artista com o outro, pela constatação da difícil sociabilidade e pela insistência em fazer arte.
4. A linguagem fotográfica exercida por Andujar é o resultado de uma performance. Nela está implícita a ação e a interação do corpo com o meio-ambiente e com o outro. Para obter suas fotografias ela age com o corpo inteiro, dispõe-se a movimentar-se de um lugar para outro, muda sua perspectiva em reação aos acontecimentos. Por exemplo: viver entre os Yanomami, caminhar pelas ruas. Os trabalhos da artista supõem, portanto, ação, locomoção. Vagar à procura de algo…
5. Constata-se a performance no fazer artístico de Andujar: ela realizou uma viagem, incluiu o seu corpo e suas percepções num processo de deslocamento, controlando algumas ações programadas e deixando-se levar por eventuais acasos. Vivenciou os diferentes espaços e trocou informações com o ambiente.
6. Foi assim que em 1976, durante 16 dias, Claudia Andujar empreendeu uma viagem sem fim, a bordo de um fusca de cor preta. Partiu da cidade de São Paulo, subiu até Mato Grosso, passou por Manaus, atravessou Rondônia, para chegar a Roraima. Trafegou por várias rodovias, inclusive a Perimetral Norte – BR-210. Esse processo de longa duração engendrou uma série de práticas que validam tanto as experiências vivenciadas no transcurso dos deslocamentos quanto os resultados finais manifestos nas fotografias.
7. E, nesta viagem-performance, ela fotografou muito. O ato de fotografar tornou-se tão corriqueiro quanto respirar.
8. Fotografar decorre da escolha estética da artista por um suporte mecânico para dar conta das coisas do mundo. Ou seja, trata-se da conquista de uma linguagem para perscrutar e organizar a realidade circundante. Com isto, Andujar não apenas capta o instante, mas o sentido do momento e o sentido do fluxo da passagem do tempo. Ela retém o que é aparentemente passageiro e torna-o universal. Esse processo todo se clarifica mais ainda quando a artista se desloca em um extenso itinerário.
9. Essa viagem de Claudia Andujar tem sua equivalência cinematográfica no filme “Bye, Bye, Brasil” (1979), de Carlos Diegues. Ambos os autores pegam estradas do norte do país para dar conta de buscas pessoais e sociais. E, também, o Brasil é tomado como o grande personagem destas duas sagas.
10. Nesse projeto de deslocamento pelo país, em 1976, Andujar fez as fotografias que agora são mostradas nesta exposição da Galeria Vermelho. Entre as inúmeras fotos obtidas ao longo da viagem, foram selecionadas doze, reunidas em quatro trípticos. A sucessão de três imagens, em cada trabalho, sintetiza a viagem, deixa perceber o movimento do corpo e do carro no espaço e indica a passagem do tempo. Além do mais, a sequência de três imagens, em cada unidade, retém a ideia de deslocamento.
11. A viagem foi uma experiência da presença da artista no mundo do qual resultou imagens que permitem vislumbrar tanto as pulsações da realidade quanto novos experimentos de linguagem. Todas as fotografias foram feitas em branco e preto, mostrando que recursos mínimos podem melhor expressar a concretude do real.
12. Há uma figura onipresente nas fotografias, que é o automóvel fusca de cor preta, adquirido exclusivamente para esse empreendimento. A partir do seu interior é que Andujar direciona a câmera para o exterior. Todas as fotografias são obtidas de dentro do carro para fora. Cada fotografia tem um duplo enquadramento: aquele dado pela lente da câmera e o outro dado pelo recorte das estruturas do carro.
13. Assim, do interior do automóvel, Andujar mira o mundo externo, registrando num primeiro plano partes da arquitetura e do espaço interno do fusca. De imediato o olhar percebe as janelas, as colunas, o retrovisor e o painel traseiro do carro.
14. Nessa mostra estão sendo exibidas quatro trípticos sempre marcados pela representação plástica da velocidade. A câmera se desloca tendo como referência dois parâmetros: a relativa inércia dada pelas partes construtivas do carro e a fugaz passagem do cenário exterior.
15. Além de tratarem do deslocamento, essas fotos discutem a relação dentro-fora. Convivem imagens de um espaço interno junto a outro externo. As dicotomias desaparecem para dar lugar à unidade entre diferentes lugares e situações. As fotografias exploram as separações na simultaneidade e conseguem juntar duas dimensões espaciais em um único plano.
16. Quando Claudia Andujar chega a seu suposto destino (pois a viagem é uma situação permanente para a artista), em Roraima, os índios a recebem exclamando watupari (ser urubu). O fusca preto, usado para a locomoção na viagem, aparece ao povo Yanomami como um urubu que perdeu as penas e mesmo assim voou longe.
17. As fotografias de Claudia Andujar espreitam a realidade, sondam o humano.
18. Um tríptico traz a cidade de São Paulo, uma massa urbana compacta. Nele há, inclusive, uma imagem passageira do Museu de Arte de São Paulo (MASP). Nesse conjunto, as imagens são mais estáveis, o tom geral mais escuro e a presença da arquitetura do automóvel é bastante presente. Como se a estrutura industrial dada pela fuselagem do carro correspondesse ao alto grau de urbanização que caracteriza o entorno do automóvel naquele momento do deslocamento.
19. A sequência geral dos trabalhos expostos deixa perceber a saída do centro da cidade rumo ao subúrbio; a cidade se afasta para dar lugar ao interior do Brasil, à mata que irá virar sertão, pelo seu desmatamento.
20. Outro tríptico mostra a floresta, em parte já desmatada, no Norte do país, próximo ao local de destino. As fotos deste trabalho foram feitas com infravermelhos. Portanto, resulta em uma luz estourada, escondendo e desvelando a mata – suspeita-se que ela foi queimada. O que terá fornecido o excesso de luz que aparece nestas três fotografias? Apenas o infravermelho ou os resquícios do fogo recente nas árvores?
21. Claudia Andujar relaciona todas as fotos entre si, o urbano está presente no rural e a expansão do urbano afeta profundamente o campo. Estes trabalhos são registros e memórias, tornando patente a consciência crítica da artista.
22. Uma característica do infravermelho é deixar muito iluminada a matéria viva fotografada e, por sua vez, tingir de escuro a matéria morta. Este processo oferece contrastes entre transparência e densidade, entre luz e sombra. E, de forma geral, todos os trabalhos obtidos durante a viagem tiram proveito destes contrastes, como se as fotografias fossem metáforas dos conflitos existentes no mundo externo ao automóvel.
23. Outra aproximação entre as fotos pictóricas e cinematográficas de Andujar pode ser feita, agora, com dois filmes de Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967). Tanto em um artista quanto em outro são possíveis afinações da ordem do pensamento político e de ordem formal. Os dois buscam entender o Brasil a partir do ponto de vista de suas próprias experiências, destacando a presença da visão trágica para formular o mundo e a política. Assim como Glauber Rocha, Andujar também trabalha os contrastes formais das imagens e estoura a luz para afetar nossa percepção, para gritar contra as más contingências de uma nação.
24. A dimensão política perpassa a obra de Claudia Andujar. De imediato vale lembrar a série “Marcados” (1981-1983) ou suas atividades na defesa da causa indígena.
25. A obra dessa artista indaga sobre o Brasil – sua gente e seus lugares, lançando um olhar estrangeiro sobre o país. Em certas circunstâncias, esse olhar do viajante que veio do exterior ajuda a aguçar a percepção das coisas e a imprimir maior expressividade às questões da realidade.
26. As fotos captadas durante o voo do ‘urubu’ portam o ponto de vista do viajante, num duplo sentido: enquanto compreensão do Brasil e, também, enquanto conhecimento de si mesmo.
27. Em Andujar, a fotografia deve ser entendida, também, como forma de arte-conhecimento.
28. As fotografias de Andujar fazem parte de vivências para formação da própria identidade. Este processo supõe relacionar-se com o outro e com o ambiente. Fotografar é investigar o real e encontrar nele um sentido, além de ser um movimento da e para a subjetividade.
29. Por isso a dimensão política nesta artista não é explícita e determinante, pois a política está delimitada por questões existenciais e formais. Em Andujar há uma amplitude estética que alarga o território da política.
30. Ao se locomover em um automóvel, torná-lo um personagem das fotografias e manipular uma câmara de alta tecnologia, Andujar engendra ações e conhecimentos na ordem industrial e ocidental, dirigindo-se ao encontro do Oriente. Como atenuar o impacto dessa defrontação? A viagem serve para ela se despir dos valores da sociedade hegemônica e criar as condições para de se encontrar, então, com o povo Yanomami. Torna-se necessário um tempo de preparação para o encontro entre eu e o outro.
31. Os dezesseis dias constituem um tempo de espera. O tempo no interior do carro é o tempo do recolhimento contra a velocidade do tempo externo. Portanto, essas fotografias obtidas durante a viagem expressam a morosidade e a densidade, dadas simbolicamente pelos primeiros planos da estrutura interna da casa-automóvel e expressam também as fusões e sobreposições, dadas pela impressão de velocidade, valor que move a sociedade circundante.
32. Durante o percurso de dezesseis dias, Claudia Andujar sondou o país para a sua própria formação.
33. Essa viagem de 1976 é um ritual de passagem: vida. É uma performance de longa duração, como propõe Marina Abramovic: arte. Nela ocorreu um rito e uma entrega como fazem os Yanomami. Este acontecimento performático que durou dezesseis dias é um resumo da trajetória de Claudia Andujar que consegue realizar a difícil e desejada aproximação entre arte e vida.
São Paulo, abril de 2013.
Miguel Chaia Miguel Chaia é pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (NEAMP), da PUC-SP. Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Autor de textos sobre arte brasileira.