A Parte Maldita: O Jardim da Pele de Pêssego de Keila Alaver, por Kiki Mazzucchelli
Quando entrei no edifício modernista localizado em um movimentado calçadão no centro de São Paulo para visitar o ateliê temporário de Keila Alaver, em outubro passado, não sabia muito o que esperar. Já fazia algum tempo que tinha visto, e ainda assim apenas em fotografias, imagens de sua última exposição individual, que apresentava algumas características recorrentes em sua obra como o gosto pelos elementos decorativos cuidadosamente selecionados, a apropriação de objetos do vernáculo popular, o trabalho manual e paciente, e uma qualidade por vezes abjeta e perversamente sarcástica que nasce da sugestão do orgânico por meio do artificial. Ao mesmo tempo, sem uma explicação lógica, as pequenas lojas de souvenirs brasileiros localizadas no piso térreo deste mesmo edifício, elas mesmas expressões do tipo específico de visualidade e de economia freqüentemente re-significado na obra da artista, pareciam anunciar que este seria o cenário ideal para abrigar sua nova produção.
Ainda assim, nenhum exercício de imaginação poderia ter me preparado para o encontro inesperado com as inusitadas figuras que habitavam o amplo e iluminado estúdio. Embora ainda não finalizada, a instalação O Jardim da Pele de Pêssego já se encontrava em estágio avançado de desenvolvimento e a primeira impressão é de as inúmeras peças revestidas de padrões decorativos formados pelo que parecia uma espécie de musgo haviam se proliferado rápida e profusamente dentro daquele espaço originariamente tão imaculado. Pousadas em pedestais ou espalhadas diretamente sobre o piso de concreto do estúdio, as figuras recobertas por uma penugem verde ou castanho escuro tinham um aspecto definitivamente orgânico, como se fossem arbustos cuidadosamente podados em formas insólitas. Ao mesmo tempo, essa mesma penugem formava diferentes padrões abstratos, apropriados de papéis de parede clássicos, incorporando a essas formas um elemento evidentemente artificial, uma construção humana por excelência, porém com uma qualidade alucinatória que guarda uma certa proximidade com as instalações psicodélicas da veterana Yayoi Kusama.
De fato, o movimento oscilante entre natureza e artifício é uma características recorrentes no trabalho de Keila Alaver. Era patente, por exemplo, na instalação Paisagem (2006), onde criou uma espécie de estufa dentro do banheiro de uma casa desocupada, misturando plantas naturais e artificiais, e adicionando pequenos detalhes como pássaros de brinquedo acompanhados de gravações de seus cantos. Este ambiente também sugeria a idéia de uma natureza que se reproduziu desordenadamente e no lugar errado, enquanto que o cor-de-rosa das louças e o marrom dos azulejos, tão alegóricos das décadas de 60 ou 70, evocavam ainda uma forte sensação de se estar em um cômodo antigo, talvez há muito tempo em desuso, gradualmente tomado por formas orgânicas que lhe são estranhas. Aqui havia sobretudo a apropriação e a confusão entre objetos decorativos produzidos em massa que emulam formas orgânicas e formas realmente orgânicas apresentadas no ambiente doméstico, para o qual estes objetos são especificamente criados.
Mas, se considerarmos a trajetória de Kelia Alaver, o interesse pela natureza se dá ainda – e talvez sobretudo – através da representação do corpo humano. Desde as pinturas produzidas na década de 90 a partir de fotografias de seu acervo pessoal, em que retratava a si mesma ou a amigos e familiares até os trabalhos tridimensionais em que passa a utilizar o couro, material orgânico, na representação de figuras e órgãos humanos, o corpo aparece constantemente adulterado. Nos retratos pintados, por exemplo, as cabeças muitas vezes eram acopladas a corpos de bonecos, ao passo que na série de fotografias preto e branco e em escala 1:1, retratava personagens cujas entranhas, modeladas em couro de vaca, se projetavam para além do plano bidimensional da foto, tornando não somente visíveis como palpáveis partes do corpo que normalmente permanecem ocultas.
Nesse sentido, a “pele de pêssego” que dá título a esta instalação é outro elemento importante, pois aponta para o caráter humano das esculturas que habitam esse jardim, embora apenas uma delas represente claramente uma figura humana. A superfície que recobre essas peças é de um cor-de-rosa pálido, recoberto de uma penugem delicada, como a pele dos filhotes de mamíferos, conferindo a elas um aspecto vivo, quente e pulsante. É sobre essa “pele” que as padronagens estão aplicadas. Um olhar mais próximo e atento revela as falhas na aplicação, provocando uma certa repulsa por sua semelhança a doenças de pele e afastando a possibilidade de estabelecimento de uma afeição kitsch entre o espectador e essas criaturas através de uma analogia com bichos de pelúcia. É recorrente, inclusive, em sua abordagem do corpo humano, a perversão ou a degradação das formas naturais que se revela sob uma aparente candura infantil.
Mas além de sua qualidade artificialmente natural, O Jardim da Pele de Pêssego incorpora ainda uma outra especificidade da obra de Keila Alaver. O que poderíamos designar mais genericamente como um gosto pelo decorativo – e que aparece desde as padronagens obsessivamente reproduzidas nos fundos de suas primeiras pinturas – é na realidade indicativo do uso particular que a artista faz do espaço urbano e de seu interesse por um tipo específico de economia: Keila Alaver é uma flanêur do capitalismo tardio made in China. A coleção de objetos não funcionais cuidadosamente selecionados que encontramos na casa da artista, por exemplo, é sintomática de uma prática cotidiana de perambular por estabelecimentos comerciais especializados em um determinado tipo de objeto de gosto popular largamente rejeitado pelas classes mais abastadas, cuja educação segue o padrão europeu. A maioria destes objetos não são funcionais e, quando possuem alguma função, geralmente é apenas a de embelezar o ambiente, num movimento contrário a estética moderna valorizada pelo gosto educado.
A instalação aqui apresentada, por sua vez, é um dos exemplos mais sublimes desta prática que incorpora uma vasta e universal economia movimentada por um gosto por objetos de baixo valor monetário, produzidos em grandes quantidades e cuja função é primordialmente ornamental. Pois suas formas mutantes, que combinam partes de diferentes animais como águias, porcos, caracóis, cisnes com galhos, conchas e outros elementos da natureza, não são nada menos que assemblages formadas por figuras de isopor pré-moldadas adquiridas em uma loja especializada em artigos para festas; posteriormente recobertas com a penugem verde ou castanha através do uso da flocagem, técnica artesanal de baixo custo que serve para “aveludar” diferentes tipos de superfícies, emulando idéias de valor e sofisticação.
O Jardim da Pele de Pêssego é portanto um jardim essencialmente tropical, formado por elementos excessivos e inúteis que se recusam a obedecer à lógica e ao rigor do cartesianismo europeu. Impossível de ser contido, ele cresce desordenadamente, desnecessariamente, movido apenas pelo desejo egoísta e perdulário de embelezar seu entorno, movido por sua auto-satisfação, alheio à discussões esclarecidas e politicamente corretas sobre redução da emissão de carbono ou exploração dos trabalhadores asiáticos. E assim segue tomando o espaço, gerando formas bizarras, grotescas e absolutamente irresistíveis, crescendo proporcionalmente ao poder aquisitivo das populações dos países BRIC.
A Parte Maldita: O Jardim da Pele de Pêssego de Keila Alaver, por Kiki Mazzucchelli
Quando entrei no edifício modernista localizado em um movimentado calçadão no centro de São Paulo para visitar o ateliê temporário de Keila Alaver, em outubro passado, não sabia muito o que esperar. Já fazia algum tempo que tinha visto, e ainda assim apenas em fotografias, imagens de sua última exposição individual, que apresentava algumas características recorrentes em sua obra como o gosto pelos elementos decorativos cuidadosamente selecionados, a apropriação de objetos do vernáculo popular, o trabalho manual e paciente, e uma qualidade por vezes abjeta e perversamente sarcástica que nasce da sugestão do orgânico por meio do artificial. Ao mesmo tempo, sem uma explicação lógica, as pequenas lojas de souvenirs brasileiros localizadas no piso térreo deste mesmo edifício, elas mesmas expressões do tipo específico de visualidade e de economia freqüentemente re-significado na obra da artista, pareciam anunciar que este seria o cenário ideal para abrigar sua nova produção.
Ainda assim, nenhum exercício de imaginação poderia ter me preparado para o encontro inesperado com as inusitadas figuras que habitavam o amplo e iluminado estúdio. Embora ainda não finalizada, a instalação O Jardim da Pele de Pêssego já se encontrava em estágio avançado de desenvolvimento e a primeira impressão é de as inúmeras peças revestidas de padrões decorativos formados pelo que parecia uma espécie de musgo haviam se proliferado rápida e profusamente dentro daquele espaço originariamente tão imaculado. Pousadas em pedestais ou espalhadas diretamente sobre o piso de concreto do estúdio, as figuras recobertas por uma penugem verde ou castanho escuro tinham um aspecto definitivamente orgânico, como se fossem arbustos cuidadosamente podados em formas insólitas. Ao mesmo tempo, essa mesma penugem formava diferentes padrões abstratos, apropriados de papéis de parede clássicos, incorporando a essas formas um elemento evidentemente artificial, uma construção humana por excelência, porém com uma qualidade alucinatória que guarda uma certa proximidade com as instalações psicodélicas da veterana Yayoi Kusama.
De fato, o movimento oscilante entre natureza e artifício é uma características recorrentes no trabalho de Keila Alaver. Era patente, por exemplo, na instalação Paisagem (2006), onde criou uma espécie de estufa dentro do banheiro de uma casa desocupada, misturando plantas naturais e artificiais, e adicionando pequenos detalhes como pássaros de brinquedo acompanhados de gravações de seus cantos. Este ambiente também sugeria a idéia de uma natureza que se reproduziu desordenadamente e no lugar errado, enquanto que o cor-de-rosa das louças e o marrom dos azulejos, tão alegóricos das décadas de 60 ou 70, evocavam ainda uma forte sensação de se estar em um cômodo antigo, talvez há muito tempo em desuso, gradualmente tomado por formas orgânicas que lhe são estranhas. Aqui havia sobretudo a apropriação e a confusão entre objetos decorativos produzidos em massa que emulam formas orgânicas e formas realmente orgânicas apresentadas no ambiente doméstico, para o qual estes objetos são especificamente criados.
Mas, se considerarmos a trajetória de Kelia Alaver, o interesse pela natureza se dá ainda – e talvez sobretudo – através da representação do corpo humano. Desde as pinturas produzidas na década de 90 a partir de fotografias de seu acervo pessoal, em que retratava a si mesma ou a amigos e familiares até os trabalhos tridimensionais em que passa a utilizar o couro, material orgânico, na representação de figuras e órgãos humanos, o corpo aparece constantemente adulterado. Nos retratos pintados, por exemplo, as cabeças muitas vezes eram acopladas a corpos de bonecos, ao passo que na série de fotografias preto e branco e em escala 1:1, retratava personagens cujas entranhas, modeladas em couro de vaca, se projetavam para além do plano bidimensional da foto, tornando não somente visíveis como palpáveis partes do corpo que normalmente permanecem ocultas.
Nesse sentido, a “pele de pêssego” que dá título a esta instalação é outro elemento importante, pois aponta para o caráter humano das esculturas que habitam esse jardim, embora apenas uma delas represente claramente uma figura humana. A superfície que recobre essas peças é de um cor-de-rosa pálido, recoberto de uma penugem delicada, como a pele dos filhotes de mamíferos, conferindo a elas um aspecto vivo, quente e pulsante. É sobre essa “pele” que as padronagens estão aplicadas. Um olhar mais próximo e atento revela as falhas na aplicação, provocando uma certa repulsa por sua semelhança a doenças de pele e afastando a possibilidade de estabelecimento de uma afeição kitsch entre o espectador e essas criaturas através de uma analogia com bichos de pelúcia. É recorrente, inclusive, em sua abordagem do corpo humano, a perversão ou a degradação das formas naturais que se revela sob uma aparente candura infantil.
Mas além de sua qualidade artificialmente natural, O Jardim da Pele de Pêssego incorpora ainda uma outra especificidade da obra de Keila Alaver. O que poderíamos designar mais genericamente como um gosto pelo decorativo – e que aparece desde as padronagens obsessivamente reproduzidas nos fundos de suas primeiras pinturas – é na realidade indicativo do uso particular que a artista faz do espaço urbano e de seu interesse por um tipo específico de economia: Keila Alaver é uma flanêur do capitalismo tardio made in China. A coleção de objetos não funcionais cuidadosamente selecionados que encontramos na casa da artista, por exemplo, é sintomática de uma prática cotidiana de perambular por estabelecimentos comerciais especializados em um determinado tipo de objeto de gosto popular largamente rejeitado pelas classes mais abastadas, cuja educação segue o padrão europeu. A maioria destes objetos não são funcionais e, quando possuem alguma função, geralmente é apenas a de embelezar o ambiente, num movimento contrário a estética moderna valorizada pelo gosto educado.
A instalação aqui apresentada, por sua vez, é um dos exemplos mais sublimes desta prática que incorpora uma vasta e universal economia movimentada por um gosto por objetos de baixo valor monetário, produzidos em grandes quantidades e cuja função é primordialmente ornamental. Pois suas formas mutantes, que combinam partes de diferentes animais como águias, porcos, caracóis, cisnes com galhos, conchas e outros elementos da natureza, não são nada menos que assemblages formadas por figuras de isopor pré-moldadas adquiridas em uma loja especializada em artigos para festas; posteriormente recobertas com a penugem verde ou castanha através do uso da flocagem, técnica artesanal de baixo custo que serve para “aveludar” diferentes tipos de superfícies, emulando idéias de valor e sofisticação.
O Jardim da Pele de Pêssego é portanto um jardim essencialmente tropical, formado por elementos excessivos e inúteis que se recusam a obedecer à lógica e ao rigor do cartesianismo europeu. Impossível de ser contido, ele cresce desordenadamente, desnecessariamente, movido apenas pelo desejo egoísta e perdulário de embelezar seu entorno, movido por sua auto-satisfação, alheio à discussões esclarecidas e politicamente corretas sobre redução da emissão de carbono ou exploração dos trabalhadores asiáticos. E assim segue tomando o espaço, gerando formas bizarras, grotescas e absolutamente irresistíveis, crescendo proporcionalmente ao poder aquisitivo das populações dos países BRIC.