O tempo é invenção, ou não é nada”.
Henri Bergson
A primeira exposição de Ana Amorim numa galeria comercial no Brasil, 26032022-6.744-281-65-01/30042022-5.904-246-65-36 constitui uma evidência pública da passagem do tempo.
Móvel e mutável, o tempo constitui o eixo principal da mostra que emprega sistemas variáveis, em planos e pontos de vista diversos e complementares, que evidenciam os deslocamentos diários da artista e que constituem o seu estar no mundo.
Já na obra que ocupa a fachada da galeria, Amorim revela que a unidade básica de toda a sua experiência, o dia, se repetirá 36 vezes durante o período da mostra na Vermelho: 23.970 dias vividos na data da abertura da exposição, em 26 de março de 2022; 24.005 dias vividos na data de encerramento da exposição, em 30 de abril de 2022.
Bordado dias e minutos [2016] constitui um registro do número de dias e minutos da vida da artista em uma única peça de tecido branco. Cada quadrado representa o registro de um dia de 2016, e os números em cada quadrado, o número de dias e o número de minutos vividos pela artista até aquele momento.
Procedimento semelhante surge em Número de dias da minha vida [2021]. Posicionado logo na entrada da galeria, um calendário em preto e branco com o registro de 365 dias sobre papel correspondente ao ano de 2021, esclarece que somos todos contemporâneos de um mesmo tempo.
Em busca de uma forma pessoal de documentar o tempo, Amorim criou, em 1984, a performance Contar segundos. A ação consiste em contar – um a um – os segundos de uma hora. Para cada segundo, a artista traça uma linha num caderno ou em outros suportes, que se torna, assim, o registro da ação. Além disso, a cada minuto, ela anota o número total de minutos vividos até aquele momento específico.
Esta prática aparece também em Almost Free From Time, de 2021. Na obra, a artista trabalhou com duas telas pintadas com tinta acrílica preta. Sobre uma delas, ela desenhou o seu mapa de deslocamentos do dia 30 de junho de 2021. Como na data ela não saiu do apartamento onde vive, em São Paulo, a pequena tela conta apenas com um quadrado que representa sua casa, hora, temperatura e data. Na tela maior, pequenos traços brancos registram a contagem dos segundos de 1 hora. Nos primeiros 30 minutos, a artista seguiu rigorosamente o relógio e, nos 30 minutos restantes, seguiu seu próprio ritmo, terminando 10 minutos antes.
Embora o tempo cronológico seja determinante na prática da artista, a mostra não segue a mesma lógica, mas agrupa técnicas, assuntos, figuras e ideias de forma a revelar os vários terrenos de atuação da artista. Olhar para estes trabalhos significa olhar para o tempo e para o quê dele ficou registrado.
A partir de 1988, Ana Amorim cria a rotina de desenhar diariamente antes de dormir seu mapa mental do dia. Este exercício, que se aproxima de um diário de bordo, e alimenta vários dos processos produzidos de forma regular e simultânea a outras obras, aparece em vários trabalhos da mostra, como nos 24 mapas sobre papel preto recortado em Black Cutout Study, de 2018, Large June Embroidery, de 2018, 70 Dias, de 2020, e 60 Dias, de 2021.
Em Sobreposição 1, de 2021, a artista posiciona em uma grande folha de papel, mapas agrupados em 4 quadrantes com 7 mapas cada. Após finalizar cada mapa, estes são imediatamente cobertos com corretor líquido [liquid paper]. O processo é repetido sete vezes em cada quadrante criando acúmulo e sobreposição de camadas. Os mapas pertencem ao período de 01 a 28/02/2021.
2020-3 [2020] revela o mapa mental de Ana Amorim para o ano de 2020.
Neste trabalho, composto por 12 toalhas de mesa de algodão e linho de 140x235cm cada, a artista reproduz notícias transcritas à mão. Procedimento incorporado desde 2017, a palavra escrita ou bordada é apropriada de várias fontes de notícias que chegam até ela diariamente e que funcionam como ruídos dentro dos mapas. Trata-se de um impulso, de uma resposta imediata da artista aos paradoxos do cotidiano.
“As notícias são sempre apropriadas; é sempre a voz do outro. Nos anos 1980, eu criei uma performance chamada Three Stages [1987], na qual eu apresentava um statement que dizia: I know I have something to say. I know it’s very important, but I forget what it is, so I decided to keep trying until it hits me [Eu sei que tenho algo a dizer, eu sei que é muito importante, mas eu não me lembro o que é, então eu decidi esperar até lembrar].” Amorim retoma esse pensamento nos anos 2000 quando diz: “Não tenho nada a dizer, o que me interessa é dar voz ao outro”.
É o que ocorre em O extermínio programado dos povos isolados, de 2019. A obra reproduz a imagem e a versão integral do texto publicado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário que relata a invasão de terras de povos isolados.1
Sobre seu mapa mental criado em 6 de março de 2021, a artista reproduz em Tragédia de Brumadinho, de 2021, um artigo publicado na mesma data no site da revista Carta Capital que responsabiliza as mineradoras pelas recentes catástrofes ambientais ocorridas em Minas Gerais.2
Prejudicados pelo acordo bilionário, de 2021, constitui um novo comentário crítico acerca dos acordos de indenização para as vítimas do desastre de Brumadinho que a artista reproduz com tinta branca sobre o desenho do seu mapa para o dia 10 de fevereiro de 2021.3
“Toda cartografia é constitutivamente intencional, quer dizer, é produzida com fins de apropriação e controle”, diz a primeira frase do texto que integra Cartografia Neocolonial, de 2019. A obra combina o mapa criado em 15 de outubro de 2019 a um texto sobre o uso da cartografia como estratégia de poder.4
Há no tempo-obra de Amorim uma certa indeterminação através da qual aparece algo que não estava previsto. Isso ocorre pois, aqui, o tempo não é uma simples repetição sequencial daquilo que já está, se assim fosse nada haveria de novo. Talvez, somente por meio da intuição seja possível uma aproximação com a ideia de duração que a prática de Amorim abarca. Afinal, palavras e conceitos nem sempre são capazes de revelar a vida interior dessa artista que dedicou mais de 30 anos da sua carreira buscando formas de evidenciar seu próprio envelhecimento.
1 Nota do Cimi sobre o extermínio dos povos isolados: ao menos 21 terras indígenas estão invadidas.
2 Laudo da PF aponta a culpa da Vale na tragédia de Brumadinho.
3 Prejudicados por acordo bilionário, atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho acionam STF.
http://www.global.org.br/blog/prejudicados-por-acordo-bilionario-atingidos-pelo-crime-da-vale-em-brumadinho-acionam-stf/
4 Cartografía neocolonial del poder minero en América Latina/Abya Yala: La planadora territorial. https://www.ocmal.org/cartografia-neocolonial-del-poder-minero-en-america-latina-abya-yala-la-planadora-territorial/
O tempo é invenção, ou não é nada”.
Henri Bergson
A primeira exposição de Ana Amorim numa galeria comercial no Brasil, 26032022-6.744-281-65-01/30042022-5.904-246-65-36 constitui uma evidência pública da passagem do tempo.
Móvel e mutável, o tempo constitui o eixo principal da mostra que emprega sistemas variáveis, em planos e pontos de vista diversos e complementares, que evidenciam os deslocamentos diários da artista e que constituem o seu estar no mundo.
Já na obra que ocupa a fachada da galeria, Amorim revela que a unidade básica de toda a sua experiência, o dia, se repetirá 36 vezes durante o período da mostra na Vermelho: 23.970 dias vividos na data da abertura da exposição, em 26 de março de 2022; 24.005 dias vividos na data de encerramento da exposição, em 30 de abril de 2022.
Bordado dias e minutos [2016] constitui um registro do número de dias e minutos da vida da artista em uma única peça de tecido branco. Cada quadrado representa o registro de um dia de 2016, e os números em cada quadrado, o número de dias e o número de minutos vividos pela artista até aquele momento.
Procedimento semelhante surge em Número de dias da minha vida [2021]. Posicionado logo na entrada da galeria, um calendário em preto e branco com o registro de 365 dias sobre papel correspondente ao ano de 2021, esclarece que somos todos contemporâneos de um mesmo tempo.
Em busca de uma forma pessoal de documentar o tempo, Amorim criou, em 1984, a performance Contar segundos. A ação consiste em contar – um a um – os segundos de uma hora. Para cada segundo, a artista traça uma linha num caderno ou em outros suportes, que se torna, assim, o registro da ação. Além disso, a cada minuto, ela anota o número total de minutos vividos até aquele momento específico.
Esta prática aparece também em Almost Free From Time, de 2021. Na obra, a artista trabalhou com duas telas pintadas com tinta acrílica preta. Sobre uma delas, ela desenhou o seu mapa de deslocamentos do dia 30 de junho de 2021. Como na data ela não saiu do apartamento onde vive, em São Paulo, a pequena tela conta apenas com um quadrado que representa sua casa, hora, temperatura e data. Na tela maior, pequenos traços brancos registram a contagem dos segundos de 1 hora. Nos primeiros 30 minutos, a artista seguiu rigorosamente o relógio e, nos 30 minutos restantes, seguiu seu próprio ritmo, terminando 10 minutos antes.
Embora o tempo cronológico seja determinante na prática da artista, a mostra não segue a mesma lógica, mas agrupa técnicas, assuntos, figuras e ideias de forma a revelar os vários terrenos de atuação da artista. Olhar para estes trabalhos significa olhar para o tempo e para o quê dele ficou registrado.
A partir de 1988, Ana Amorim cria a rotina de desenhar diariamente antes de dormir seu mapa mental do dia. Este exercício, que se aproxima de um diário de bordo, e alimenta vários dos processos produzidos de forma regular e simultânea a outras obras, aparece em vários trabalhos da mostra, como nos 24 mapas sobre papel preto recortado em Black Cutout Study, de 2018, Large June Embroidery, de 2018, 70 Dias, de 2020, e 60 Dias, de 2021.
Em Sobreposição 1, de 2021, a artista posiciona em uma grande folha de papel, mapas agrupados em 4 quadrantes com 7 mapas cada. Após finalizar cada mapa, estes são imediatamente cobertos com corretor líquido [liquid paper]. O processo é repetido sete vezes em cada quadrante criando acúmulo e sobreposição de camadas. Os mapas pertencem ao período de 01 a 28/02/2021.
2020-3 [2020] revela o mapa mental de Ana Amorim para o ano de 2020.
Neste trabalho, composto por 12 toalhas de mesa de algodão e linho de 140x235cm cada, a artista reproduz notícias transcritas à mão. Procedimento incorporado desde 2017, a palavra escrita ou bordada é apropriada de várias fontes de notícias que chegam até ela diariamente e que funcionam como ruídos dentro dos mapas. Trata-se de um impulso, de uma resposta imediata da artista aos paradoxos do cotidiano.
“As notícias são sempre apropriadas; é sempre a voz do outro. Nos anos 1980, eu criei uma performance chamada Three Stages [1987], na qual eu apresentava um statement que dizia: I know I have something to say. I know it’s very important, but I forget what it is, so I decided to keep trying until it hits me [Eu sei que tenho algo a dizer, eu sei que é muito importante, mas eu não me lembro o que é, então eu decidi esperar até lembrar].” Amorim retoma esse pensamento nos anos 2000 quando diz: “Não tenho nada a dizer, o que me interessa é dar voz ao outro”.
É o que ocorre em O extermínio programado dos povos isolados, de 2019. A obra reproduz a imagem e a versão integral do texto publicado pelo CIMI – Conselho Indigenista Missionário que relata a invasão de terras de povos isolados.1
Sobre seu mapa mental criado em 6 de março de 2021, a artista reproduz em Tragédia de Brumadinho, de 2021, um artigo publicado na mesma data no site da revista Carta Capital que responsabiliza as mineradoras pelas recentes catástrofes ambientais ocorridas em Minas Gerais.2
Prejudicados pelo acordo bilionário, de 2021, constitui um novo comentário crítico acerca dos acordos de indenização para as vítimas do desastre de Brumadinho que a artista reproduz com tinta branca sobre o desenho do seu mapa para o dia 10 de fevereiro de 2021.3
“Toda cartografia é constitutivamente intencional, quer dizer, é produzida com fins de apropriação e controle”, diz a primeira frase do texto que integra Cartografia Neocolonial, de 2019. A obra combina o mapa criado em 15 de outubro de 2019 a um texto sobre o uso da cartografia como estratégia de poder.4
Há no tempo-obra de Amorim uma certa indeterminação através da qual aparece algo que não estava previsto. Isso ocorre pois, aqui, o tempo não é uma simples repetição sequencial daquilo que já está, se assim fosse nada haveria de novo. Talvez, somente por meio da intuição seja possível uma aproximação com a ideia de duração que a prática de Amorim abarca. Afinal, palavras e conceitos nem sempre são capazes de revelar a vida interior dessa artista que dedicou mais de 30 anos da sua carreira buscando formas de evidenciar seu próprio envelhecimento.
1 Nota do Cimi sobre o extermínio dos povos isolados: ao menos 21 terras indígenas estão invadidas.
2 Laudo da PF aponta a culpa da Vale na tragédia de Brumadinho.
3 Prejudicados por acordo bilionário, atingidos pelo crime da Vale em Brumadinho acionam STF.
http://www.global.org.br/blog/prejudicados-por-acordo-bilionario-atingidos-pelo-crime-da-vale-em-brumadinho-acionam-stf/
4 Cartografía neocolonial del poder minero en América Latina/Abya Yala: La planadora territorial. https://www.ocmal.org/cartografia-neocolonial-del-poder-minero-en-america-latina-abya-yala-la-planadora-territorial/