Giroflexxxx, uma possível visita
Giroflexxxx* registra parte do processo de criação de um grupo formado por quatro jovens artistas. São vídeos, pinturas, fotografias, instalações, desenhos, esculturas, músicas e até um baixo-relevo cravado no espaço central da galeria Vermelho. Apesar de “finalizadas”, as obras mantêm o frescor do trabalho em andamento. Travam conversas, se referem umas às outras, se espelham, se repelem, se contradizem e se estimulam. São “obras jovens”, de, no máximo, 3 anos. A mostra é uma incursão no universo deste grupo, que cria junto e experimenta intensamente suportes e idéias com uma falta de cerimônia que contamina a obra e chega ao público. A mostra abre uma porta para dentro desse mundo de grupo. Ao mesmo tempo, abre uma outra porta para fora do espaço oficial de exposição de arte. Para a rua, para o presente imediato, urgente.
Guerrilha urbana
A cidade atinge, marca e alimenta a guerrilha estética de Marcelo Cidade. Urbano, Cidade traz para a galeria em objetos de feltro o que poderia se chamar de uniforme ou, seguindo na associação, a armadura contemporânea do andarilho: boné, mochila, skate.
Mas o artista não apenas assiste a cena urbana. Quer intervir. Quer usar como matéria a própria cidade. Na sequência “não-sequenciada” das fotos que exibe, faz um guarda-corpo de gente para um viaduto que é símbolo símbolo de São Paulo. A cidade pálida, de concreto, sem vida, e um cordão de gente viva que olha para a câmera. A câmera aponta para seu objeto, como arma. Cidade veste todo mundo de cinza. Uma camiseta para cada um. Fundo e figura se confundem. A fotografia provoca. Todo mundo é igual? São todos da mesma cor? Você reconhece alguém? Que cidade é esta? Que céu é este? O que você quer ver? Procure.
Da diferença na semelhança, de uma possível “massificação inconclusa do mundo”, o artista explora também o detalhe formal mais delicado. E segue provocando. Simula para revelar. Em outra obra, mostra todos os cinzas e brancos que estão à disposição no mercado de tintas para grafiteiros. Exibe seus nomes. No formato de polaroids superampliadas. São apenas duas cores. Apenas duas? O que você quer ver? Procure.
Violência e identidade
O criminoso posa para o público na cena do crime. Já na parede externa da galeria, a fotografia de uma paisagem devastada por um bombardeio na Palestina é trabalhada eletronicamente e, no primeiro plano, Felipe Gonzalez se coloca com a sua arma. As paredes dos prédios estão totalmente esburacadas. Felipe segura sua furadeira. A imagem vira pintura, no tamanho de uma polaroid. O convite está feito. “Aqui, quem manda sou eu”, parece dizer, sem constrangimento e com saborosa malícia, o artista.
Na sala central da galeria, quatro pinturas de Felipe continuam a atacar. Com impacto. Letra de rap na tela (Racionais), palavras de ordem, manifestos violentos -porém- por vezes niilista. O grafiteiro -que sempre se esconde- pinta seu próprio retrato. Ele olha para fora da tela e está raivoso. Nos players, ruídos eletrônicos para uma trilha. A letra está nas letras. As letras estão nas elas. Mas acima de tudo, o que se vê é boa pintura.
Felipe Gonzalez continua a mostrar domínio de sua expressividade nos vídeos. Na série “desencubando” enfrenta três elementos: o cubo de carne, o cubo de metal e o cubo de madeira. Com máquina sem corte, um porrete ou uma cortadeira, mostra a total inadequação entre a ferramenta e o objeto, a insistência do sujeito, o humor da desconformidade. Em “1 desenho + livre”, grava uma espécie de diálogo entre tatuador (ele mesmo) e tatuado que conduz uma tatuagem sem script, sem desenho, sem simbologia préestabelecida. É algo avesso até da própria idéia de tatuagem como identificadora de um grupo. A “toscoagem”, como é chamada durante o vídeo, “fura” o circuito da tatuagem. É, sobretudo, desenho feito com tinta na pele. Basta.
Memória
André parece mostrar em Giroflexxxx três etapas de uma idéia. Sobre plantas de casas, que corrói com ácido, escarnifica depois com lâmina ou ponta seca, André constrói imagens de extrema dramaticidade. O artista desenha sobre a memória, o documento, o projeto, a “idéia” de casa planejada. Sua intervenção nas plantas tem um quê de brincadeira. Coloca nelas móveis desenhados à mão, esqueletos, “gentes” dentro dos cômodos, fora deles, como se não
soubesse que o plano de visão da planta é aéreo e seus objetos estão num outro “layer” espacial.
Além de sobrepor ao plano da planta um outro plano que confunde e um pouco caçoa da leitura do fundo, ele sobrepõe também dois traços, duas linguagens. A linguagem que está registrada no suporte é a da padronização da expressão de uma idéia. É uma parte de um projeto. É um registro de um desejo, já “materializado” em cálculo e tornado representação. É a planificação de uma coisa a ser construída. É um código que deve ser entendido por todos, uma das etapas de ligação entre o desejo de fazer e a materialização da coisa construída. O traço que o artista impõe sobre o plano calculado é, ao contrário, algo completamente particular, e impossível de ser “compreendido” por todos. É gesto firme pelo que aprofunda no papel, mas é construído de ensaios de desenho, é inacabado, feito de linhas abandonadas que apenas sugerem a continuidade de certos contornos.
Quando se lança no papel em branco, Andre se entrega ao seu próprio “plano”, agora no sentido do desejo, de materializar algo que se imagina. O resultado é afirmativo. É desenho delicado, preciso, poético. Saindo do papel, a casa vira objeto e é, enfim, construída. Dentro dela, escombros de casas de verdade, restos de outras casas de verdade.
Cor
A poesia e o caráter onírico dos trabalhos de Tiago Judas estão tanto na beleza das imagens que registram a mistura de fluxos -o colorido, que sai de dentro do corpo, com o turvo/azulado, que está no meio externo_ quanto em seu homem “vazado” em queda que se vê próximo ao teto do cubo branco da galeria. Nas fotos que registram a experiência do mix de líquidos, vêm como brinde para quem se encantar por elas as próprías cores, encerradas em cubos de acrílico dispostos como escala, no chão da galeria. Será porém nos vídeos, em que a liguagem se materializa imagem, que fará mais sentido vê-lo como poeta visual (se alguém estiver interessado em definições).
Nos poucos minutos – cuidadosos e precisos- que exibe, convida o público a acompanhá-lo no percurso lírico de uma idéia. Tiago Judas exercita com domínio o jogo que conduz à graça que conduz à duração. “Rápido” como um hai kai, mas transformador como a experiência do sonho, do prazer estético.
*(giroflex é o nome da lanterna giratória usada nos carros de polícia; xxxx dá conta de um determinado grau de confidencialidade e/ou proibição de filmes, informações, arquivos…)
Giroflexxxx, uma possível visita
Giroflexxxx* registra parte do processo de criação de um grupo formado por quatro jovens artistas. São vídeos, pinturas, fotografias, instalações, desenhos, esculturas, músicas e até um baixo-relevo cravado no espaço central da galeria Vermelho. Apesar de “finalizadas”, as obras mantêm o frescor do trabalho em andamento. Travam conversas, se referem umas às outras, se espelham, se repelem, se contradizem e se estimulam. São “obras jovens”, de, no máximo, 3 anos. A mostra é uma incursão no universo deste grupo, que cria junto e experimenta intensamente suportes e idéias com uma falta de cerimônia que contamina a obra e chega ao público. A mostra abre uma porta para dentro desse mundo de grupo. Ao mesmo tempo, abre uma outra porta para fora do espaço oficial de exposição de arte. Para a rua, para o presente imediato, urgente.
Guerrilha urbana
A cidade atinge, marca e alimenta a guerrilha estética de Marcelo Cidade. Urbano, Cidade traz para a galeria em objetos de feltro o que poderia se chamar de uniforme ou, seguindo na associação, a armadura contemporânea do andarilho: boné, mochila, skate.
Mas o artista não apenas assiste a cena urbana. Quer intervir. Quer usar como matéria a própria cidade. Na sequência “não-sequenciada” das fotos que exibe, faz um guarda-corpo de gente para um viaduto que é símbolo símbolo de São Paulo. A cidade pálida, de concreto, sem vida, e um cordão de gente viva que olha para a câmera. A câmera aponta para seu objeto, como arma. Cidade veste todo mundo de cinza. Uma camiseta para cada um. Fundo e figura se confundem. A fotografia provoca. Todo mundo é igual? São todos da mesma cor? Você reconhece alguém? Que cidade é esta? Que céu é este? O que você quer ver? Procure.
Da diferença na semelhança, de uma possível “massificação inconclusa do mundo”, o artista explora também o detalhe formal mais delicado. E segue provocando. Simula para revelar. Em outra obra, mostra todos os cinzas e brancos que estão à disposição no mercado de tintas para grafiteiros. Exibe seus nomes. No formato de polaroids superampliadas. São apenas duas cores. Apenas duas? O que você quer ver? Procure.
Violência e identidade
O criminoso posa para o público na cena do crime. Já na parede externa da galeria, a fotografia de uma paisagem devastada por um bombardeio na Palestina é trabalhada eletronicamente e, no primeiro plano, Felipe Gonzalez se coloca com a sua arma. As paredes dos prédios estão totalmente esburacadas. Felipe segura sua furadeira. A imagem vira pintura, no tamanho de uma polaroid. O convite está feito. “Aqui, quem manda sou eu”, parece dizer, sem constrangimento e com saborosa malícia, o artista.
Na sala central da galeria, quatro pinturas de Felipe continuam a atacar. Com impacto. Letra de rap na tela (Racionais), palavras de ordem, manifestos violentos -porém- por vezes niilista. O grafiteiro -que sempre se esconde- pinta seu próprio retrato. Ele olha para fora da tela e está raivoso. Nos players, ruídos eletrônicos para uma trilha. A letra está nas letras. As letras estão nas elas. Mas acima de tudo, o que se vê é boa pintura.
Felipe Gonzalez continua a mostrar domínio de sua expressividade nos vídeos. Na série “desencubando” enfrenta três elementos: o cubo de carne, o cubo de metal e o cubo de madeira. Com máquina sem corte, um porrete ou uma cortadeira, mostra a total inadequação entre a ferramenta e o objeto, a insistência do sujeito, o humor da desconformidade. Em “1 desenho + livre”, grava uma espécie de diálogo entre tatuador (ele mesmo) e tatuado que conduz uma tatuagem sem script, sem desenho, sem simbologia préestabelecida. É algo avesso até da própria idéia de tatuagem como identificadora de um grupo. A “toscoagem”, como é chamada durante o vídeo, “fura” o circuito da tatuagem. É, sobretudo, desenho feito com tinta na pele. Basta.
Memória
André parece mostrar em Giroflexxxx três etapas de uma idéia. Sobre plantas de casas, que corrói com ácido, escarnifica depois com lâmina ou ponta seca, André constrói imagens de extrema dramaticidade. O artista desenha sobre a memória, o documento, o projeto, a “idéia” de casa planejada. Sua intervenção nas plantas tem um quê de brincadeira. Coloca nelas móveis desenhados à mão, esqueletos, “gentes” dentro dos cômodos, fora deles, como se não
soubesse que o plano de visão da planta é aéreo e seus objetos estão num outro “layer” espacial.
Além de sobrepor ao plano da planta um outro plano que confunde e um pouco caçoa da leitura do fundo, ele sobrepõe também dois traços, duas linguagens. A linguagem que está registrada no suporte é a da padronização da expressão de uma idéia. É uma parte de um projeto. É um registro de um desejo, já “materializado” em cálculo e tornado representação. É a planificação de uma coisa a ser construída. É um código que deve ser entendido por todos, uma das etapas de ligação entre o desejo de fazer e a materialização da coisa construída. O traço que o artista impõe sobre o plano calculado é, ao contrário, algo completamente particular, e impossível de ser “compreendido” por todos. É gesto firme pelo que aprofunda no papel, mas é construído de ensaios de desenho, é inacabado, feito de linhas abandonadas que apenas sugerem a continuidade de certos contornos.
Quando se lança no papel em branco, Andre se entrega ao seu próprio “plano”, agora no sentido do desejo, de materializar algo que se imagina. O resultado é afirmativo. É desenho delicado, preciso, poético. Saindo do papel, a casa vira objeto e é, enfim, construída. Dentro dela, escombros de casas de verdade, restos de outras casas de verdade.
Cor
A poesia e o caráter onírico dos trabalhos de Tiago Judas estão tanto na beleza das imagens que registram a mistura de fluxos -o colorido, que sai de dentro do corpo, com o turvo/azulado, que está no meio externo_ quanto em seu homem “vazado” em queda que se vê próximo ao teto do cubo branco da galeria. Nas fotos que registram a experiência do mix de líquidos, vêm como brinde para quem se encantar por elas as próprías cores, encerradas em cubos de acrílico dispostos como escala, no chão da galeria. Será porém nos vídeos, em que a liguagem se materializa imagem, que fará mais sentido vê-lo como poeta visual (se alguém estiver interessado em definições).
Nos poucos minutos – cuidadosos e precisos- que exibe, convida o público a acompanhá-lo no percurso lírico de uma idéia. Tiago Judas exercita com domínio o jogo que conduz à graça que conduz à duração. “Rápido” como um hai kai, mas transformador como a experiência do sonho, do prazer estético.
*(giroflex é o nome da lanterna giratória usada nos carros de polícia; xxxx dá conta de um determinado grau de confidencialidade e/ou proibição de filmes, informações, arquivos…)