Por Kiki Mazzucchelli
Ressaca Tropical é a primeira exposição individual de Jonathas de Andrade na Galeria Vermelho, em São Paulo. Incluindo 5 trabalhos recentes, a mostra empresta seu título da foto-instalação homônima, em que Jonathas se apropria de um diário amoroso que pontua um conjunto de imagens fotográficas oriundas de arquivos pessoais, acervos públicos, e ainda, novas fotografias criadas pelo artista. Estas imagens são organizadas e apresentadas de maneira não hierárquica, de modo a criar uma narrativa visual fictícia em que o passado e o presente são mostrados simultaneamente.
Aqui o artista segue desenvolvendo um tipo de obra que denomina “fotografia de pretexto”, em que apropria textos existentes, às vezes não identificados como tais, que servem de pretexto para uma determinada organização de imagens. Neste caso, apropriou-se de um diário mantido na segunda metade da década de 1970, registro das atividades de um autor-personagem que narra suas peripécias (geralmente de cunho sexual) contra o pano de fundo da cidade, numa época em que ainda imperava um certo provincianismo urbano, como nos edifícios que até então eram identificados por seus nomes. Era ainda, um momento de transição, que desembocaria nas grandes obras de construção civil do final da década de 70 e começo de 80, como a Ponte Paulo Guerra e o Shopping Recife, representativas de um novo estilo de vida que passaria a predominar nas metrópoles brasileiras, em que privilegiam os interesses privados sobre os interesses públicos.
O texto do diário foi editado e combinado com imagens fotográficas produzidas em épocas distintas e provenientes dos acervos do fotógrafo Alcir Lacerda, da Fundação Joaquim Nabuco, e de arquivos pessoais, bem como fotografias recentes tiradas pelo próprio artista, criando assim uma espécie de documentação fictícia da cidade. Esta ficção é constituída a partir de uma simultaneidade do presente e do passado que reencena vários tipos de documento, tanto aquele que circunscreve uma existência privada (como o diário ou os instantâneos) quanto o que registra o ambiente urbano, público (Lacerda e Fundaj), evocando um tempo indefinido e pós-utópico, onde predominam os edifícios modernistas em ruína ou em construção, a natureza luxuriante que toma conta do concreto corroendo suas linhas precisas e as situações pessoais corriqueiras, por vezes mais íntimas. Mas apesar de sua aparente ênfase na força construtiva do projeto de modernização da arquitetura urbana, a cidade-ficção de Ressaca Tropical, pano de fundo para as aventuras sexuais do autor anônimo do diário, revela uma força dissidente tão presente quanto a vocação construtiva, e que designo aqui como “ímpeto destrutivo”.
Em seu Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda se refere aos “aspectos escuros” da vida urbana recifense, já identificados tão remotamente quanto em 1641, quando, segundo o autor, a zona do porto “constituía, para alguns zelosos calvinistas, verdadeiro antro de perdição”.
São justamente esses aspectos escuros que predominam na narrativa do diário, cujo autor parece ser movido unicamente pela voracidade de um desejo que jamais se consome. Este desejo infindável é ilustrado pelas menções quase que diárias a nomes próprios femininos distribuídos pelas páginas do diário: há uma Sandra, duas Marlenes, uma Zininha, Albertina, Sueli, Zeza, Tita, Rosa Maria; mas também encontros mais dúbios com Sidney, Dave ou Osvaldo. Ao ímpeto destrutivo, estariam, portanto, alegoricamente associados tanto o desejo sexual irrefreável quanto a proliferação descontrolada da natureza tropical, ambos constituindo uma força incompatível com os ideais modernos de progresso e funcionalidade expressos pela força construtiva brasileira.
A ruína do projeto moderno latino-americano aparece também em Projeto de abertura de uma casa, como convém (2009), onde imagens fotográficas da gradual pilhagem e destruição de uma casa modernista localizada em um bairro residencial de Recife se articulam com uma maquete da casa em processo de destruição. A casa da Rua Padre Anchieta, que foi objeto da obsessão de Jonathas durante cerca de um ano antes de sua completa ruína, era um exemplar primoroso da arquitetura modernista tropical, com seus espaços abertos pontuados por elegantes pilotis e paredes de cobogós que permitiam a ventilação e iluminação naturais.
Já se encontrava em estado de abandono quando Jonathas começou a fotografá-la, mas é interessante notar que foi a partir deste abandono, quando começou a ser pilhada pelos intrusos que levaram consigo desde os azulejos desenhados pelo arquiteto recifense Delfim Amorim até elementos supostamente desprovidos de valor como as estruturas metálicas que sustentam o concreto, que ela realmente passou a se relacionar com seu exterior, ou seja, que se tornou realmente “aberta”. A maquete apresentada reproduz a casa em um momento de avançada “abertura”, incorporando a destruição como parte constitutiva de seu projeto arquitetônico.
Assim como no trabalho Ressaca Tropical, Jonathas também se apropriou de um texto para desenvolver a foto-pesquisa Recenseamento moral da cidade do Recife (2007), que reúne a documentação de uma ação realizada pelo artista, em que conduziu entrevistas baseadas num livro de boas maneiras publicado na década de 80, realizadas em dezenas de casas da capital pernambucana.
Cada entrevistado preencheu a mão um formulário com suas respostas e comentários sobre tópicos como “cuspir no chão” ou “ações que não devem ser praticadas em público”. O trabalho se apresenta como uma instalação de uma planilha de resultados, com um mapa onde cada local de entrevista é identificado, os formulários recolhidos e fotografias mostrando o contexto onde foram conduzidas – mas não os rostos dos entrevistados.
Neste trabalho, Jonathas aborda a questão da moral e bons costumes e dos comportamentos aceitos pela sociedade brasileira ao mesmo tempo em que realiza um mapeamento, tarefa que teoricamente se pauta pelo cientificismo e objetividade, baseado em escolhas e impressões pessoais. Este reconhecimento afetivo do espaço urbano é característico de muitas de seus trabalhos e, no contexto de sua obra, remete a uma relação com o tecido urbano que se dá por uma espécie de dérive, criando novos espaços e novos usos de espaços existentes, muitas vezes reconhecendo e abraçando uma certa marginalidade. Este é o caso da série inédita de fotografias O Clube (2010), em que retrata um iate clube frequentado no passado pela alta sociedade maceioense, cuja construção avança para dentro da orla, criando um ambiente subterrâneo convidativo para atividades marginais. Os títulos-texto de cada fotografia também são escritos quase que exclusivamente apropriados de outro autor–não identificado -; Jonathas apenas substituiu alguns dos substantivos nas frases escolhidas pela palavra “clube”. Assim, estes trechos selecionados servem para enfatizar a tensão entre a parte superior da edificação que abriga o clube, onde se realizavam as atividades oficialmente aceitas pelos sócios – almoços, jantares, casamentos – e sua parte inferior, oculta em meio aos pilotis que invadem a praia e propícia ao tipo de movimentação à qual as famílias respeitáveis preferiam fazer vista grossa. Estes textos extremamente poéticos são mais alegóricos do que descritivos. Fazem referência a uma certa “vida clandestina” ou a uma “conspiração secreta”, mas nunca fica explícito qual tipo de atividade subterrânea se desenrolava ali.
Uma atmosfera de ambiguidade semelhante é evocada pelo também inédito 4.000 disparos (2010). Este vídeo foi realizado a partir de um rolo de super-8 composto, quadro a quadro, por rostos captados aleatoriamente nas ruas de várias cidades latino-americanas. São quase 5 mil rostos anônimos, todos masculinos, vítimas caçadas secretamente pelos disparos da câmera do artista. O título deste trabalho alude a uma ideia de violência que, somada à qualidade da imagem monocromática e granulada, remete ao mesmo período que a foto-instalação Ressaca Tropical. Novamente, a imagem produzida nos tempos de hoje confunde-se com a imagem histórica, criando, neste caso, uma incerteza em relação ao material apresentado. Aqui, entretanto, não é a noção de progresso e modernização que transparece no trabalho, mas justamente o seu reverso: a repressão política das ditaduras militares que assolou vários países latino-americanos na segunda metade do século passado. Esta espécie de levantamento/ geração de imagens de arquivo é mais uma documentação fictícia criada por Jonathas que, desta vez, mostra a outra face, menos romântica, da modernidade que se desenvolveu trópicos.
Por Kiki Mazzucchelli
Ressaca Tropical é a primeira exposição individual de Jonathas de Andrade na Galeria Vermelho, em São Paulo. Incluindo 5 trabalhos recentes, a mostra empresta seu título da foto-instalação homônima, em que Jonathas se apropria de um diário amoroso que pontua um conjunto de imagens fotográficas oriundas de arquivos pessoais, acervos públicos, e ainda, novas fotografias criadas pelo artista. Estas imagens são organizadas e apresentadas de maneira não hierárquica, de modo a criar uma narrativa visual fictícia em que o passado e o presente são mostrados simultaneamente.
Aqui o artista segue desenvolvendo um tipo de obra que denomina “fotografia de pretexto”, em que apropria textos existentes, às vezes não identificados como tais, que servem de pretexto para uma determinada organização de imagens. Neste caso, apropriou-se de um diário mantido na segunda metade da década de 1970, registro das atividades de um autor-personagem que narra suas peripécias (geralmente de cunho sexual) contra o pano de fundo da cidade, numa época em que ainda imperava um certo provincianismo urbano, como nos edifícios que até então eram identificados por seus nomes. Era ainda, um momento de transição, que desembocaria nas grandes obras de construção civil do final da década de 70 e começo de 80, como a Ponte Paulo Guerra e o Shopping Recife, representativas de um novo estilo de vida que passaria a predominar nas metrópoles brasileiras, em que privilegiam os interesses privados sobre os interesses públicos.
O texto do diário foi editado e combinado com imagens fotográficas produzidas em épocas distintas e provenientes dos acervos do fotógrafo Alcir Lacerda, da Fundação Joaquim Nabuco, e de arquivos pessoais, bem como fotografias recentes tiradas pelo próprio artista, criando assim uma espécie de documentação fictícia da cidade. Esta ficção é constituída a partir de uma simultaneidade do presente e do passado que reencena vários tipos de documento, tanto aquele que circunscreve uma existência privada (como o diário ou os instantâneos) quanto o que registra o ambiente urbano, público (Lacerda e Fundaj), evocando um tempo indefinido e pós-utópico, onde predominam os edifícios modernistas em ruína ou em construção, a natureza luxuriante que toma conta do concreto corroendo suas linhas precisas e as situações pessoais corriqueiras, por vezes mais íntimas. Mas apesar de sua aparente ênfase na força construtiva do projeto de modernização da arquitetura urbana, a cidade-ficção de Ressaca Tropical, pano de fundo para as aventuras sexuais do autor anônimo do diário, revela uma força dissidente tão presente quanto a vocação construtiva, e que designo aqui como “ímpeto destrutivo”.
Em seu Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Hollanda se refere aos “aspectos escuros” da vida urbana recifense, já identificados tão remotamente quanto em 1641, quando, segundo o autor, a zona do porto “constituía, para alguns zelosos calvinistas, verdadeiro antro de perdição”.
São justamente esses aspectos escuros que predominam na narrativa do diário, cujo autor parece ser movido unicamente pela voracidade de um desejo que jamais se consome. Este desejo infindável é ilustrado pelas menções quase que diárias a nomes próprios femininos distribuídos pelas páginas do diário: há uma Sandra, duas Marlenes, uma Zininha, Albertina, Sueli, Zeza, Tita, Rosa Maria; mas também encontros mais dúbios com Sidney, Dave ou Osvaldo. Ao ímpeto destrutivo, estariam, portanto, alegoricamente associados tanto o desejo sexual irrefreável quanto a proliferação descontrolada da natureza tropical, ambos constituindo uma força incompatível com os ideais modernos de progresso e funcionalidade expressos pela força construtiva brasileira.
A ruína do projeto moderno latino-americano aparece também em Projeto de abertura de uma casa, como convém (2009), onde imagens fotográficas da gradual pilhagem e destruição de uma casa modernista localizada em um bairro residencial de Recife se articulam com uma maquete da casa em processo de destruição. A casa da Rua Padre Anchieta, que foi objeto da obsessão de Jonathas durante cerca de um ano antes de sua completa ruína, era um exemplar primoroso da arquitetura modernista tropical, com seus espaços abertos pontuados por elegantes pilotis e paredes de cobogós que permitiam a ventilação e iluminação naturais.
Já se encontrava em estado de abandono quando Jonathas começou a fotografá-la, mas é interessante notar que foi a partir deste abandono, quando começou a ser pilhada pelos intrusos que levaram consigo desde os azulejos desenhados pelo arquiteto recifense Delfim Amorim até elementos supostamente desprovidos de valor como as estruturas metálicas que sustentam o concreto, que ela realmente passou a se relacionar com seu exterior, ou seja, que se tornou realmente “aberta”. A maquete apresentada reproduz a casa em um momento de avançada “abertura”, incorporando a destruição como parte constitutiva de seu projeto arquitetônico.
Assim como no trabalho Ressaca Tropical, Jonathas também se apropriou de um texto para desenvolver a foto-pesquisa Recenseamento moral da cidade do Recife (2007), que reúne a documentação de uma ação realizada pelo artista, em que conduziu entrevistas baseadas num livro de boas maneiras publicado na década de 80, realizadas em dezenas de casas da capital pernambucana.
Cada entrevistado preencheu a mão um formulário com suas respostas e comentários sobre tópicos como “cuspir no chão” ou “ações que não devem ser praticadas em público”. O trabalho se apresenta como uma instalação de uma planilha de resultados, com um mapa onde cada local de entrevista é identificado, os formulários recolhidos e fotografias mostrando o contexto onde foram conduzidas – mas não os rostos dos entrevistados.
Neste trabalho, Jonathas aborda a questão da moral e bons costumes e dos comportamentos aceitos pela sociedade brasileira ao mesmo tempo em que realiza um mapeamento, tarefa que teoricamente se pauta pelo cientificismo e objetividade, baseado em escolhas e impressões pessoais. Este reconhecimento afetivo do espaço urbano é característico de muitas de seus trabalhos e, no contexto de sua obra, remete a uma relação com o tecido urbano que se dá por uma espécie de dérive, criando novos espaços e novos usos de espaços existentes, muitas vezes reconhecendo e abraçando uma certa marginalidade. Este é o caso da série inédita de fotografias O Clube (2010), em que retrata um iate clube frequentado no passado pela alta sociedade maceioense, cuja construção avança para dentro da orla, criando um ambiente subterrâneo convidativo para atividades marginais. Os títulos-texto de cada fotografia também são escritos quase que exclusivamente apropriados de outro autor–não identificado -; Jonathas apenas substituiu alguns dos substantivos nas frases escolhidas pela palavra “clube”. Assim, estes trechos selecionados servem para enfatizar a tensão entre a parte superior da edificação que abriga o clube, onde se realizavam as atividades oficialmente aceitas pelos sócios – almoços, jantares, casamentos – e sua parte inferior, oculta em meio aos pilotis que invadem a praia e propícia ao tipo de movimentação à qual as famílias respeitáveis preferiam fazer vista grossa. Estes textos extremamente poéticos são mais alegóricos do que descritivos. Fazem referência a uma certa “vida clandestina” ou a uma “conspiração secreta”, mas nunca fica explícito qual tipo de atividade subterrânea se desenrolava ali.
Uma atmosfera de ambiguidade semelhante é evocada pelo também inédito 4.000 disparos (2010). Este vídeo foi realizado a partir de um rolo de super-8 composto, quadro a quadro, por rostos captados aleatoriamente nas ruas de várias cidades latino-americanas. São quase 5 mil rostos anônimos, todos masculinos, vítimas caçadas secretamente pelos disparos da câmera do artista. O título deste trabalho alude a uma ideia de violência que, somada à qualidade da imagem monocromática e granulada, remete ao mesmo período que a foto-instalação Ressaca Tropical. Novamente, a imagem produzida nos tempos de hoje confunde-se com a imagem histórica, criando, neste caso, uma incerteza em relação ao material apresentado. Aqui, entretanto, não é a noção de progresso e modernização que transparece no trabalho, mas justamente o seu reverso: a repressão política das ditaduras militares que assolou vários países latino-americanos na segunda metade do século passado. Esta espécie de levantamento/ geração de imagens de arquivo é mais uma documentação fictícia criada por Jonathas que, desta vez, mostra a outra face, menos romântica, da modernidade que se desenvolveu trópicos.