Em Contos de contas, Carla Zaccagnini discute a relação de dependência imposta pela política econômica norte-americana em países da América Latina, a partir de documentos e memórias pessoais. Para abordar essa relação, o dinheiro surge na exposição em sua forma material e subjetiva em instalações, vídeos e colagens. O interesse de Zaccagnini é evidenciar as consequências devastadoras do poder econômico dos EUA no sul global.
Parte dos trabalhos que integram a individual foram apresentados na mostra de mesmo título que ocorreu entre os meses de abril e agosto de 2022 na Fundação Amant, Brooklyn, New York.
Em Contos de contas, Carla Zaccagnini discute a relação de dependência imposta pela política econômica norte-americana em países da América Latina, a partir de documentos e memórias pessoais. Para abordar essa relação, o dinheiro surge na exposição em sua forma material e subjetiva em instalações, vídeos e colagens. O interesse de Zaccagnini é evidenciar as consequências devastadoras do poder econômico dos EUA no sul global.
Parte dos trabalhos que integram a individual foram apresentados na mostra de mesmo título que ocorreu entre os meses de abril e agosto de 2022 na Fundação Amant, Brooklyn, New York.
[…] O recheio era todo de papéis brancos cuidadosamente recortados do tamanho de cédulas. Dobrados com menos atenção do que usamos quando é necessário separar por cor, abraçados por um elástico idêntico. Um bolo só de farinha. […]
trecho de A barraca, de Carla Zaccagnini.
parte de Cuentos de Cuentas, publicado por K. Verlog e comissionado por Amant, 2022.
28,5 x 65 cm
aquarela sobre papel
Foto Vermelho[…] O recheio era todo de papéis brancos cuidadosamente recortados do tamanho de cédulas. Dobrados com menos atenção do que usamos quando é necessário separar por cor, abraçados por um elástico idêntico. Um bolo só de farinha. […]
trecho de A barraca, de Carla Zaccagnini.
parte de Cuentos de Cuentas, publicado por K. Verlog e comissionado por Amant, 2022.
La plata y el plomo (Cash and lead) – São Paulo, 2021–2022, é um móbile construído com objetos que escondem dinheiro. Uma caixa de charutos, um brinquedo a pilha, uma lanterna, um livro, esconderijos mencionados em diferentes relatos que a artista foi colecionando.
Com seu peso alterado por chumbo escondido junto com as cédulas, os objetos criam relações de equilíbrio arbitrárias como aquelas que estruturam e movimentam a economia.
dimensões variáveis
Móbile: madeira, metal, objetos diversos, notas de dólar e chumbo
Foto Filipe BerndtLa plata y el plomo (Cash and lead) – São Paulo, 2021–2022, é um móbile construído com objetos que escondem dinheiro. Uma caixa de charutos, um brinquedo a pilha, uma lanterna, um livro, esconderijos mencionados em diferentes relatos que a artista foi colecionando.
Com seu peso alterado por chumbo escondido junto com as cédulas, os objetos criam relações de equilíbrio arbitrárias como aquelas que estruturam e movimentam a economia.
Montagem da exposição com Carla Zaccagnini
Foto VermelhoA instalação Fleeting Fleet [Frota Fugaz], 2021–2022, é composta por uma coleção de cédulas de dinheiro de países das Américas que saíram de circulação desde 1973, ano de nascimento de Zaccagnini. Não se tratam de cédulas retiradas de circulação, substituídas por outras de maior valor e novo desenho; são moedas extintas. Nessas notas sem valor monetário, que não passam de pedaços de papel aqui dobrados como barquinhos, fica evidente a experiência social e política do dinheiro como práxis catalizadora de dominação.
52 peças em cada conjunto
Dobraduras com notas de moedas expiradas
Foto Filipe BerndtA instalação Fleeting Fleet [Frota Fugaz], 2021–2022, é composta por uma coleção de cédulas de dinheiro de países das Américas que saíram de circulação desde 1973, ano de nascimento de Zaccagnini. Não se tratam de cédulas retiradas de circulação, substituídas por outras de maior valor e novo desenho; são moedas extintas. Nessas notas sem valor monetário, que não passam de pedaços de papel aqui dobrados como barquinhos, fica evidente a experiência social e política do dinheiro como práxis catalizadora de dominação.
A instalação Fleeting Fleet (Frota Fugaz), 2021–2022, é composta por uma coleção de cédulas de dinheiro de países das Américas que saíram de circulação desde 1973, ano de nascimento de Zaccagnini. Não se tratam de cédulas retiradas de circulação, substituídas por outras de maior valor e novo desenho; são moedas extintas. Nessas notas sem valor monetário, que não passam de pedaços de papel aqui dobrados como barquinhos, fica evidente a experiência social e política do dinheiro como práxis catalizadora de dominação.
52 peças em cada conjunto
Dobraduras com notas de moedas expiradas
Foto Filipe BerndtA instalação Fleeting Fleet (Frota Fugaz), 2021–2022, é composta por uma coleção de cédulas de dinheiro de países das Américas que saíram de circulação desde 1973, ano de nascimento de Zaccagnini. Não se tratam de cédulas retiradas de circulação, substituídas por outras de maior valor e novo desenho; são moedas extintas. Nessas notas sem valor monetário, que não passam de pedaços de papel aqui dobrados como barquinhos, fica evidente a experiência social e política do dinheiro como práxis catalizadora de dominação.
Contos de contas, 2020– 2022, é uma instalação para 5 canais em que coreografias feitas para mãos acompanham a narrativa dos contos A barraca, Verdadeiro ou falso, O colete, O pote, e Dólares pretos. Escritos por Zaccagnini, esses contos integram também o livro Cuentos de cuentas publicado pela Amant e pela K Verlag de Berlim.
Cada episódio da instalação é estruturado em torno de um objeto específico: uma barraca, um frasco, ou um colete que sugerem transações econômicas secretas. Narradas com uma inocência infantil e atenção detalhada à realidade material, as histórias iluminam um contexto em que o dólar norte-americano ditava, como ainda dita, a economia mundial.
Coreografia e performance
Marina Dubia
Câmera
Petra Bindel
Música
Søren Kjaergaard
Participação especial
León Zaccagnini Lagomarsino
Vídeo instalação composta por 5 filmes. Cor e som
1. A barraca – 12’21’’
2. Verdadeiro ou falso – 4’18’’
3. O colete – 8’55’’
4. O pote – 11’34’’
5. Dólares pretos – 7’59’’
Contos de contas, 2020– 2022, é uma instalação para 5 canais em que coreografias feitas para mãos acompanham a narrativa dos contos A barraca, Verdadeiro ou falso, O colete, O pote, e Dólares pretos. Escritos por Zaccagnini, esses contos integram também o livro Cuentos de cuentas publicado pela Amant e pela K Verlag de Berlim.
Cada episódio da instalação é estruturado em torno de um objeto específico: uma barraca, um frasco, ou um colete que sugerem transações econômicas secretas. Narradas com uma inocência infantil e atenção detalhada à realidade material, as histórias iluminam um contexto em que o dólar norte-americano ditava, como ainda dita, a economia mundial.
Coreografia e performance
Marina Dubia
Câmera
Petra Bindel
Música
Søren Kjaergaard
Participação especial
León Zaccagnini Lagomarsino
1. A barraca
“De que cor era a barraca com que viajamos para o sul?”, perguntei. “Era uma barraca do exército”, respondeu. Verde, pensei, verde-oliva. Ou verde militar. A próxima pergunta seria como conseguimos, em 1977, uma barraca do exército. Não se ouviu.
Mas imagino que devia ser de seu irmão Jorge, meu tio. Jorge morreu jovem, de cirrose, e as lembranças que tenho são poucas e desbotadas, porém vigorosas. Me lembro de vê-lo girar sobre um eixo imaginário que passava pelo centro de sua cabeça e terminava entre seus pés, para enrolar a faixa da impecável bombacha de gaúcho que vestia na fazenda. Me lembro de seguir, durante dias, o movimento delicado e preciso de suas mãos construindo uma pipa em forma de pássaro – uma águia, se mal não lembro – complexíssima; enquanto meu avô materno, seguindo instruções do mesmo livro e usando materiais que ele deixava de lado, fez para mim uma estrela rosa com meu nome. “Carla” em verde-folha. Esteve anos na fazenda, atrás de uma cama, essa estrela. A águia não, a águia teve vida curta. Não levantou voo na primeira tentativa, nem na segunda e não houve terceira; Jorge caminhou firme até onde tinha caído e a pisoteou aos saltos, até que não restasse por onde reconhecê-la, numa mistura de pássaro, terra e grama.
Jorge colecionava armas e praticava tiro, lembro que uma vez machucou o próprio joelho tentando acertar uma lata. Lembro, acho, da vez em que convidou para a fazenda seus amigos de uniforme. Verde-militar. Lembro de vê-lo quebrar ao meio a lâmina de uma faca de cozinha, com as mãos, numa briga com minha avó, que eu observava desde um banquinho na cozinha. Meu primo lembra de outra briga, ou talvez a mesma, vista de outro ângulo e guardada por outra memória, em que nosso tio fincou uma faca na malha que minha avó estava vestindo. Minha avó contava, cada vez que ficávamos a sós, que quando o visitou no hospital, tinha o peito queimado por uma panela de água fervendo. “Me lembro” –dizia cada vez minha avó– da última vez que vi Jorge entrar por essa porta”. E apontava para a porta da copa na casa onde morava, onde, antes, tínhamos morado nós. Eu me lembro da noite em que meu pai me acordou dizendo que Jorge tinha morrido. Minha mãe estava viajando e ele chorou sozinho, embora eu tivesse preferido acompanhá-lo.
Pouco depois, soube-se que ele escrevia poesia.
Fomos ao sul de barraca. A ideia era chegar até Ushuaia. Meu pai dirigia um Renault 6 – verde-claro – que tinha um buraco onde minha mãe teria apoiado os pés. Eu ia sentada no banco de trás. Cercada de volumes, imagino, os que levávamos de Buenos Aires e os que certamente fomos adquirindo pelo caminho. Tínhamos, entre outras coisas, um galão de 20 litros cheio de gasolina. Sei que cheiro tinha e que barulho fazia quando o líquido batia no plástico, num reflexo atrasado dos movimentos do carro. Resultou útil um dia em que nos perdemos pelo Planalto Patagônico, rumo à Estrada dos Sete Lagos. Tudo era plano como uma única coisa interminável e não cruzamos vivalma. Só ao anoitecer, de pé em cima do teto do carro, meu pai viu uma luz ao longe. Para lá seguimos. Era uma casa na margem de um lago – um dos sete, suponho. O habitante solitário tirou combustível de sua própria lancha para alimentar nosso carro e nos indicou o caminho.
Essa história eu escutei pela primeira vez no outro dia, quando perguntei pela cor da barraca, o modelo do carro e o trajeto da viagem. O que sempre contam dessas férias é a anedota com que se pretende comprovar que eu, já desde os 4 anos, não fui feita para a vida de acampamento.
Dizem que fiquei doente e que me levaram ao médico no primeiro povoado que se aproximou do caminho. Chamava-se Tres Plumas [Três Penas] (ou possivelmente Tres Chapas). A sala de espera era lúgubre – acho que foi aí que aprendi essa palavra, ou talvez tenha sido na volta, quando meus pais descreviam os lugares por onde tínhamos passado; de qualquer forma, a ilustração de lúgubre será sempre a sala de espera de um médico de povoado que não gosta de luz natural. Meu pai quis abrir as cortinas, para que entrasse sol. A recepcionista se opôs: “O doutor não gosta”, disse. Fomos embora. No povoado seguinte, que chamava Tres Chapas (ou mais provavelmente Três Plumas), havia uma pediatra que não se incomodava com a luz. Após me examinar, concluiu que tudo o que eu precisava era passar uns dias num mesmo lugar, num quarto de hotel. Contam – insistentemente – que quando entrei no quarto do Hotel del Automóvil Club, em Trelew, pulava nos colchões gritando: Uma cama! Uma Cama! “Uma cama!” – meu pai repete sempre, fingindo uma voz aguda.
Pensei que devia ser por isso que decidiram vender a barraca (que até pouco tempo atrás, eu imaginava azul e vermelha). Mas acontece que não, que aquela barraca do exército ficou na família. Até alguns anos atrás, pelo menos, estava com Jorge. O outro tio Jorge, irmão de minha mãe, montanhista, que continua morando em La Cumbre [O Cume].
Mas a barraca sobre a qual esta história deveria falar não veio nem foi de nenhum tio Jorge. Porque este relato não deveria ser sobre minha relação com acampamentos e hotéis. Nem sobre a coincidência de ter dois tios com o mesmo nome que foram sempre como lados opostos de um espelho. Nem deveria ser sobre empinar pipas ou dirigir para o sul. Este relato é sobre o dia em que venderam uma barraca, que enquanto eu apresentava como sendo esta, descobri ser outra.
A barraca à venda era dos Bergeret. Bernardo, o pai de minha amiga Magdalena, colega de escola, tinha pedido ao meu que a vendesse – porque “nisso, Guillermo era um perito”. Era uma barraca com pouco uso. Pode ser que os pequenos Bergeret também preferissem hotéis. Disto não tenho lembranças, fui reconstruindo a história entre aquela ligação na que eu soube a cor da primeira barraca e algumas outras mensagens triangulares. A segunda barraca não tem cor, acho que nunca a vimos aberta. Magdalena disse que “pode ter sido creme”, embora também possa ter sido azul e vermelha.
Anunciaram a barraca, da cor que fosse, num semanário que se chamava Segunda Mano e que, se não me engano, saía às segundas-feiras (ou terças). Anos mais tarde, o próprio Bernardo, que viajava com frequência ao Rio a trabalho, levou para um amigo uma mostra desse semanário. Jogou-o em cima da escrivaninha e disse “Olha, te trouxe uma ideia”. O amigo, ou um amigo do amigo, criou o equivalente no Brasil. Chamava-se Primeira Mão e saía às terças-feiras (ou segundas). O título da versão brasileira era um eufemismo, já que, em ambos casos, se tratava de jornais onde se anunciavam objetos usados.
Um homem, que naquele momento me pareceu grande, veio ver a barraca. Tinha um braço engessado e uma pasta rígida, com código, dessas que, naquele então, eram usadas por executivos ou espiões. Estava acompanhado pelo sobrinho. Gostou da barraca. Talvez eu tenha sim visto a barraca aberta. Entregou-lhe um envelope fechado. Eu seguia a conversa meio de longe; interessada, mas querendo passar despercebida.
Lembro de ver minha mãe tirando as notas do envelope e contando-as junto à mesa da copa. Sua expressão de quem quer aparentar que já fez isso outras vezes, que esta não é mais do que uma vez mais. As unhas pintadas, os olhos atentos, os lábios que se moviam rápido, porém pouquinho e que deixavam escapar um ar fino, com mais som de vento que de números. Cada nota, em vez de seu próprio nome, evocava um resultado parcial, essa nota adicionada a todas as anteriores e esperando as seguintes, como cada elo de uma corrente. O barulho do papel que se levanta, se estica, se desgruda e se junta. Sem desdobrá-las, sem desfazer o maço de notas, mantendo a ordem de cores. Assim como as diferentes camadas de um bolo têm cada uma seu sabor, assim também cada camada de cor num maço de notas bem montado tem sua densidade e sua doçura. Tsssfts; tssscfst; trssstsffs trssstvtcs, e a soma acordada. E o dinheiro de volta no envelope.
“Muito bem, obrigada, acompanho vocês até a porta”. O senhor levantou a pasta da mesa com sua mão saudável. O sobrinho pegou a barraca.
Acho que os acompanhei também até a porta. E quando voltamos, minha mãe abriu o envelope para sentir novamente o maço de notas e percebeu que já não era o mesmo. O senhor que naquele então parecia grande tinha levado as notas acariciadas pelos dedos de minha mãe e nomeadas pelo vento que saía de seus lábios. Como num passe de mágica, tinha transformado os papéis em outros, um maço que de notas, só tinha uma. A de fora. O recheio era todo de papéis brancos cuidadosamente recortados do tamanho de cédulas. Dobrados com menos atenção do que usamos quando é necessário separar por cor, abraçados por um elástico idêntico. Um bolo só de farinha.
Minha mãe correu até a porta, a abriu, olhou para um e outro lado da rua. Já não estavam. Nem o senhor que não devia ser tão grande, nem a pasta que talvez tivesse um fundo falso, nem o braço que nem devia precisar de gesso, nem o jovem que, em vez de sobrinho, devia ser o comparsa (ou o amante), nem a barraca que não devia ser das cores da bandeira da França (ou Inglaterra). Nem o dinheiro, nem seu cheiro, nem sua sombra.
Carla Zaccagnini
12'21''
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
A barraca – 12’21”
Foto still do vídeo1. A barraca
“De que cor era a barraca com que viajamos para o sul?”, perguntei. “Era uma barraca do exército”, respondeu. Verde, pensei, verde-oliva. Ou verde militar. A próxima pergunta seria como conseguimos, em 1977, uma barraca do exército. Não se ouviu.
Mas imagino que devia ser de seu irmão Jorge, meu tio. Jorge morreu jovem, de cirrose, e as lembranças que tenho são poucas e desbotadas, porém vigorosas. Me lembro de vê-lo girar sobre um eixo imaginário que passava pelo centro de sua cabeça e terminava entre seus pés, para enrolar a faixa da impecável bombacha de gaúcho que vestia na fazenda. Me lembro de seguir, durante dias, o movimento delicado e preciso de suas mãos construindo uma pipa em forma de pássaro – uma águia, se mal não lembro – complexíssima; enquanto meu avô materno, seguindo instruções do mesmo livro e usando materiais que ele deixava de lado, fez para mim uma estrela rosa com meu nome. “Carla” em verde-folha. Esteve anos na fazenda, atrás de uma cama, essa estrela. A águia não, a águia teve vida curta. Não levantou voo na primeira tentativa, nem na segunda e não houve terceira; Jorge caminhou firme até onde tinha caído e a pisoteou aos saltos, até que não restasse por onde reconhecê-la, numa mistura de pássaro, terra e grama.
Jorge colecionava armas e praticava tiro, lembro que uma vez machucou o próprio joelho tentando acertar uma lata. Lembro, acho, da vez em que convidou para a fazenda seus amigos de uniforme. Verde-militar. Lembro de vê-lo quebrar ao meio a lâmina de uma faca de cozinha, com as mãos, numa briga com minha avó, que eu observava desde um banquinho na cozinha. Meu primo lembra de outra briga, ou talvez a mesma, vista de outro ângulo e guardada por outra memória, em que nosso tio fincou uma faca na malha que minha avó estava vestindo. Minha avó contava, cada vez que ficávamos a sós, que quando o visitou no hospital, tinha o peito queimado por uma panela de água fervendo. “Me lembro” –dizia cada vez minha avó– da última vez que vi Jorge entrar por essa porta”. E apontava para a porta da copa na casa onde morava, onde, antes, tínhamos morado nós. Eu me lembro da noite em que meu pai me acordou dizendo que Jorge tinha morrido. Minha mãe estava viajando e ele chorou sozinho, embora eu tivesse preferido acompanhá-lo.
Pouco depois, soube-se que ele escrevia poesia.
Fomos ao sul de barraca. A ideia era chegar até Ushuaia. Meu pai dirigia um Renault 6 – verde-claro – que tinha um buraco onde minha mãe teria apoiado os pés. Eu ia sentada no banco de trás. Cercada de volumes, imagino, os que levávamos de Buenos Aires e os que certamente fomos adquirindo pelo caminho. Tínhamos, entre outras coisas, um galão de 20 litros cheio de gasolina. Sei que cheiro tinha e que barulho fazia quando o líquido batia no plástico, num reflexo atrasado dos movimentos do carro. Resultou útil um dia em que nos perdemos pelo Planalto Patagônico, rumo à Estrada dos Sete Lagos. Tudo era plano como uma única coisa interminável e não cruzamos vivalma. Só ao anoitecer, de pé em cima do teto do carro, meu pai viu uma luz ao longe. Para lá seguimos. Era uma casa na margem de um lago – um dos sete, suponho. O habitante solitário tirou combustível de sua própria lancha para alimentar nosso carro e nos indicou o caminho.
Essa história eu escutei pela primeira vez no outro dia, quando perguntei pela cor da barraca, o modelo do carro e o trajeto da viagem. O que sempre contam dessas férias é a anedota com que se pretende comprovar que eu, já desde os 4 anos, não fui feita para a vida de acampamento.
Dizem que fiquei doente e que me levaram ao médico no primeiro povoado que se aproximou do caminho. Chamava-se Tres Plumas [Três Penas] (ou possivelmente Tres Chapas). A sala de espera era lúgubre – acho que foi aí que aprendi essa palavra, ou talvez tenha sido na volta, quando meus pais descreviam os lugares por onde tínhamos passado; de qualquer forma, a ilustração de lúgubre será sempre a sala de espera de um médico de povoado que não gosta de luz natural. Meu pai quis abrir as cortinas, para que entrasse sol. A recepcionista se opôs: “O doutor não gosta”, disse. Fomos embora. No povoado seguinte, que chamava Tres Chapas (ou mais provavelmente Três Plumas), havia uma pediatra que não se incomodava com a luz. Após me examinar, concluiu que tudo o que eu precisava era passar uns dias num mesmo lugar, num quarto de hotel. Contam – insistentemente – que quando entrei no quarto do Hotel del Automóvil Club, em Trelew, pulava nos colchões gritando: Uma cama! Uma Cama! “Uma cama!” – meu pai repete sempre, fingindo uma voz aguda.
Pensei que devia ser por isso que decidiram vender a barraca (que até pouco tempo atrás, eu imaginava azul e vermelha). Mas acontece que não, que aquela barraca do exército ficou na família. Até alguns anos atrás, pelo menos, estava com Jorge. O outro tio Jorge, irmão de minha mãe, montanhista, que continua morando em La Cumbre [O Cume].
Mas a barraca sobre a qual esta história deveria falar não veio nem foi de nenhum tio Jorge. Porque este relato não deveria ser sobre minha relação com acampamentos e hotéis. Nem sobre a coincidência de ter dois tios com o mesmo nome que foram sempre como lados opostos de um espelho. Nem deveria ser sobre empinar pipas ou dirigir para o sul. Este relato é sobre o dia em que venderam uma barraca, que enquanto eu apresentava como sendo esta, descobri ser outra.
A barraca à venda era dos Bergeret. Bernardo, o pai de minha amiga Magdalena, colega de escola, tinha pedido ao meu que a vendesse – porque “nisso, Guillermo era um perito”. Era uma barraca com pouco uso. Pode ser que os pequenos Bergeret também preferissem hotéis. Disto não tenho lembranças, fui reconstruindo a história entre aquela ligação na que eu soube a cor da primeira barraca e algumas outras mensagens triangulares. A segunda barraca não tem cor, acho que nunca a vimos aberta. Magdalena disse que “pode ter sido creme”, embora também possa ter sido azul e vermelha.
Anunciaram a barraca, da cor que fosse, num semanário que se chamava Segunda Mano e que, se não me engano, saía às segundas-feiras (ou terças). Anos mais tarde, o próprio Bernardo, que viajava com frequência ao Rio a trabalho, levou para um amigo uma mostra desse semanário. Jogou-o em cima da escrivaninha e disse “Olha, te trouxe uma ideia”. O amigo, ou um amigo do amigo, criou o equivalente no Brasil. Chamava-se Primeira Mão e saía às terças-feiras (ou segundas). O título da versão brasileira era um eufemismo, já que, em ambos casos, se tratava de jornais onde se anunciavam objetos usados.
Um homem, que naquele momento me pareceu grande, veio ver a barraca. Tinha um braço engessado e uma pasta rígida, com código, dessas que, naquele então, eram usadas por executivos ou espiões. Estava acompanhado pelo sobrinho. Gostou da barraca. Talvez eu tenha sim visto a barraca aberta. Entregou-lhe um envelope fechado. Eu seguia a conversa meio de longe; interessada, mas querendo passar despercebida.
Lembro de ver minha mãe tirando as notas do envelope e contando-as junto à mesa da copa. Sua expressão de quem quer aparentar que já fez isso outras vezes, que esta não é mais do que uma vez mais. As unhas pintadas, os olhos atentos, os lábios que se moviam rápido, porém pouquinho e que deixavam escapar um ar fino, com mais som de vento que de números. Cada nota, em vez de seu próprio nome, evocava um resultado parcial, essa nota adicionada a todas as anteriores e esperando as seguintes, como cada elo de uma corrente. O barulho do papel que se levanta, se estica, se desgruda e se junta. Sem desdobrá-las, sem desfazer o maço de notas, mantendo a ordem de cores. Assim como as diferentes camadas de um bolo têm cada uma seu sabor, assim também cada camada de cor num maço de notas bem montado tem sua densidade e sua doçura. Tsssfts; tssscfst; trssstsffs trssstvtcs, e a soma acordada. E o dinheiro de volta no envelope.
“Muito bem, obrigada, acompanho vocês até a porta”. O senhor levantou a pasta da mesa com sua mão saudável. O sobrinho pegou a barraca.
Acho que os acompanhei também até a porta. E quando voltamos, minha mãe abriu o envelope para sentir novamente o maço de notas e percebeu que já não era o mesmo. O senhor que naquele então parecia grande tinha levado as notas acariciadas pelos dedos de minha mãe e nomeadas pelo vento que saía de seus lábios. Como num passe de mágica, tinha transformado os papéis em outros, um maço que de notas, só tinha uma. A de fora. O recheio era todo de papéis brancos cuidadosamente recortados do tamanho de cédulas. Dobrados com menos atenção do que usamos quando é necessário separar por cor, abraçados por um elástico idêntico. Um bolo só de farinha.
Minha mãe correu até a porta, a abriu, olhou para um e outro lado da rua. Já não estavam. Nem o senhor que não devia ser tão grande, nem a pasta que talvez tivesse um fundo falso, nem o braço que nem devia precisar de gesso, nem o jovem que, em vez de sobrinho, devia ser o comparsa (ou o amante), nem a barraca que não devia ser das cores da bandeira da França (ou Inglaterra). Nem o dinheiro, nem seu cheiro, nem sua sombra.
Carla Zaccagnini
2. Verdadeiro ou falso
Entre a cozinha e a copa, tinha um vestíbulo com o piso entre bege e rosa (ou verde água com bordas pretas) para o qual davam diferentes portas. De um lado, a porta da cozinha e a do meu quarto, cujas janelas davam para o jardim dos fundos. Do outro lado, as da copa e do quarto dos meus pais, cujas janelas davam para o quintal. No meio, a porta do banheiro e em frente, as duas escadas: uma enorme e iluminada, de mármore brando, que subia ao segundo andar. A outra escura, estreita, de cimento cru, que descia ao porão.
Mármore branco era o que deveria ter escrito. Apaguei para corrigir e achei um desperdício. Porque esse erro preciso que transforma uma palavra em outra, abre uma porta que antes não estava. Eu vinha descendo essa escada, quando escutei a voz exaltada de minha mãe que discutia com a mulher que trabalhava em casa alguns dias da semana. Acho que tinha perdido uma pulseira de prata e acusava a suspeita mais próxima, provavelmente sem razão. Ofendida, talvez, pela soma desta e de quem sabe quantas outras sem-razões; encurralada, talvez, impotente, ao não poder comprovar sua inocência; a mulher olhou para minha mãe e disse: “Se eu quiser, posso fazer a Carla cair pela escada”. Pisei em falso. Cai rolando pelos últimos seis ou cinco degraus de mármore brando. Não voltamos a vê-la; à mulher, a pulseira de prata reapareceu uns dias mais tarde.
A outra escada, a que eu quase nunca descia, levava a um porão com cheiro de umidade. Eu não gostava dali nem um pouco. Intuía que era solitário e cheio de fantasmas. Apenas uma vez lembro de ter descido acompanhada pelas vozes e os risos familiares que chegavam do subsolo. Meu pai estava de costas e seu amigo Jorge, que era quase como um tio, olhava para ele com cara de celebração. Em todo porão, ou caverna, os fantasmas se compensam com arcas de tesouros.
Neste caso, caixas de papelão pardo. O que guardavam dentro não eram pedras preciosas e metais nobres, com o brilho e o som que os caracteriza nos filmes. Eram umas maquininhas pretas, unipessoais, portáteis, recém-fabricadas. Vinham em estojos de couro com passador e fecho de velcro, cabiam numa mão adulta e se ligavam com o polegar. Ao correr sobre as cédulas com a pressão e a velocidade adequadas, reacionavam às minúsculas partículas metálicas com que eram impressas as notas de dólar e revelavam, com uma pequena luz robótica, se esse tesouro de papel era verdadeiro ou falso.
Carla Zaccagnini
4'18''
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
Foto still do vídeo2. Verdadeiro ou falso
Entre a cozinha e a copa, tinha um vestíbulo com o piso entre bege e rosa (ou verde água com bordas pretas) para o qual davam diferentes portas. De um lado, a porta da cozinha e a do meu quarto, cujas janelas davam para o jardim dos fundos. Do outro lado, as da copa e do quarto dos meus pais, cujas janelas davam para o quintal. No meio, a porta do banheiro e em frente, as duas escadas: uma enorme e iluminada, de mármore brando, que subia ao segundo andar. A outra escura, estreita, de cimento cru, que descia ao porão.
Mármore branco era o que deveria ter escrito. Apaguei para corrigir e achei um desperdício. Porque esse erro preciso que transforma uma palavra em outra, abre uma porta que antes não estava. Eu vinha descendo essa escada, quando escutei a voz exaltada de minha mãe que discutia com a mulher que trabalhava em casa alguns dias da semana. Acho que tinha perdido uma pulseira de prata e acusava a suspeita mais próxima, provavelmente sem razão. Ofendida, talvez, pela soma desta e de quem sabe quantas outras sem-razões; encurralada, talvez, impotente, ao não poder comprovar sua inocência; a mulher olhou para minha mãe e disse: “Se eu quiser, posso fazer a Carla cair pela escada”. Pisei em falso. Cai rolando pelos últimos seis ou cinco degraus de mármore brando. Não voltamos a vê-la; à mulher, a pulseira de prata reapareceu uns dias mais tarde.
A outra escada, a que eu quase nunca descia, levava a um porão com cheiro de umidade. Eu não gostava dali nem um pouco. Intuía que era solitário e cheio de fantasmas. Apenas uma vez lembro de ter descido acompanhada pelas vozes e os risos familiares que chegavam do subsolo. Meu pai estava de costas e seu amigo Jorge, que era quase como um tio, olhava para ele com cara de celebração. Em todo porão, ou caverna, os fantasmas se compensam com arcas de tesouros.
Neste caso, caixas de papelão pardo. O que guardavam dentro não eram pedras preciosas e metais nobres, com o brilho e o som que os caracteriza nos filmes. Eram umas maquininhas pretas, unipessoais, portáteis, recém-fabricadas. Vinham em estojos de couro com passador e fecho de velcro, cabiam numa mão adulta e se ligavam com o polegar. Ao correr sobre as cédulas com a pressão e a velocidade adequadas, reacionavam às minúsculas partículas metálicas com que eram impressas as notas de dólar e revelavam, com uma pequena luz robótica, se esse tesouro de papel era verdadeiro ou falso.
Carla Zaccagnini
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
Foto still do vídeo3. O Colete
Nos anos 80 usavam-se jaquetas com muito volume, como infladas, podia ser de pluma, mas também podia ser de nada, de ar, espaço entre a pele e náilon. Minha mãe tinha uma, leve, sem recheio nem forro, acho, com três listras horizontais largas das cores da bandeira da França: liberdade, igualdade e fraternidade. Ela gostava da jaqueta, como de tudo o que tinha a ver com esse país: Charles Aznavour, a nouvelle vague, frango à la creme, pato à l’orange, coelho à la mode de Dijon e os seminários de Lacan.
Os dias prévios à viagem foram agitados. Minha avó tinha se instalado com sua máquina de costura na cozinha de nossa casa, já se acostumando a ocupar os espaços onde iria morar. Escutava-se o ritmo da agulha quando ela pressionava o pedal e a sua voz, que opinava ou aconselhava, ou recitava versos rimados, quando parava de pressionar. A mesma constância de tom, na voz e na máquina.
Eu caminhava pelas linhas que os azulejos verde-água desenhavam no piso – ou melhor, pelas linhas que eram desenhadas no piso entre os azulejos verde-água – , pensando insistentemente que queria ter uma irmãzinha. De vez em quando, o dizia e repetia em voz alta, preenchendo a atmosfera de certo desconforto que, sem terminar de entender, atraia-me explorar. Também falava sobre números, fazia contas, imaginava ter mais anos.
Minha mãe entrava e saía, passava de um ambiente ao outro, sem pressa, sem parar. Descia a escada de mármore branco com os braços cheios de roupa limpa, um pouco áspera devido ao sol do terraço. Abria a geladeira, enchia um copo d’água, respondia algo para minha avó, fechava a geladeira. Procurava nas gavetas, enchia a mala. Atravessava o corredor, abria meu armário, atravessava o corredor, enchia a mala. O copo suava.
De tanto em tanto, quase sem entrar na cozinha, experimentava o colete. O molde de papel. Os ajustes necessários. O corte das costas num tecido de forro, uma cor dita neutra chamada da-pele. As costas, o tecido duplo. Os alfinetes. Os dois lados do peito. Os ajustes necessários. O tecido duplo. As costuras que desenhavam linhas como os azulejos no chão. Ou melhor, ao contrário dos azulejos, que deixam linhas vazias onde não estão, as costuras desenhavam linhas no caminho onde a agulha fixava o fio, separando espaços vazios entre o tecido duplo.
Nesses bolsos, fechados pelos quatro lados e regulares como azulejos, ia o recheio. Em cada lote, 30 notas de 100. Dinheiro suficiente para pagar a segunda metade da casa com piscina, condição imposta por minha mão para se mudar aos trópicos.
Por cima do colete, uma camiseta escura; por sobre a camiseta, a jaqueta de náilon com as cores da França. Por cima de tudo, o silêncio. O segredo. Poucas coisas não podiam ser ditas: aquilo das revistas queimadas e isto do colete.
Na mão esquerda a mala, na mão direita minha mão esquerda. Na minha mão direita, minha mala de mão. Na bolsa as passagens, os passaportes, a carteira, os cigarros. Na porta a despedida. Logo a fila, as passagens, o medo de voar. O chamado, a fila, o controle de passaportes, o detector de metais, o medo de voar. Na minha mão esquerda, sua mão suava.
Carla Zaccagnini
8'55''
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
Foto still do vídeo3. O Colete
Nos anos 80 usavam-se jaquetas com muito volume, como infladas, podia ser de pluma, mas também podia ser de nada, de ar, espaço entre a pele e náilon. Minha mãe tinha uma, leve, sem recheio nem forro, acho, com três listras horizontais largas das cores da bandeira da França: liberdade, igualdade e fraternidade. Ela gostava da jaqueta, como de tudo o que tinha a ver com esse país: Charles Aznavour, a nouvelle vague, frango à la creme, pato à l’orange, coelho à la mode de Dijon e os seminários de Lacan.
Os dias prévios à viagem foram agitados. Minha avó tinha se instalado com sua máquina de costura na cozinha de nossa casa, já se acostumando a ocupar os espaços onde iria morar. Escutava-se o ritmo da agulha quando ela pressionava o pedal e a sua voz, que opinava ou aconselhava, ou recitava versos rimados, quando parava de pressionar. A mesma constância de tom, na voz e na máquina.
Eu caminhava pelas linhas que os azulejos verde-água desenhavam no piso – ou melhor, pelas linhas que eram desenhadas no piso entre os azulejos verde-água – , pensando insistentemente que queria ter uma irmãzinha. De vez em quando, o dizia e repetia em voz alta, preenchendo a atmosfera de certo desconforto que, sem terminar de entender, atraia-me explorar. Também falava sobre números, fazia contas, imaginava ter mais anos.
Minha mãe entrava e saía, passava de um ambiente ao outro, sem pressa, sem parar. Descia a escada de mármore branco com os braços cheios de roupa limpa, um pouco áspera devido ao sol do terraço. Abria a geladeira, enchia um copo d’água, respondia algo para minha avó, fechava a geladeira. Procurava nas gavetas, enchia a mala. Atravessava o corredor, abria meu armário, atravessava o corredor, enchia a mala. O copo suava.
De tanto em tanto, quase sem entrar na cozinha, experimentava o colete. O molde de papel. Os ajustes necessários. O corte das costas num tecido de forro, uma cor dita neutra chamada da-pele. As costas, o tecido duplo. Os alfinetes. Os dois lados do peito. Os ajustes necessários. O tecido duplo. As costuras que desenhavam linhas como os azulejos no chão. Ou melhor, ao contrário dos azulejos, que deixam linhas vazias onde não estão, as costuras desenhavam linhas no caminho onde a agulha fixava o fio, separando espaços vazios entre o tecido duplo.
Nesses bolsos, fechados pelos quatro lados e regulares como azulejos, ia o recheio. Em cada lote, 30 notas de 100. Dinheiro suficiente para pagar a segunda metade da casa com piscina, condição imposta por minha mão para se mudar aos trópicos.
Por cima do colete, uma camiseta escura; por sobre a camiseta, a jaqueta de náilon com as cores da França. Por cima de tudo, o silêncio. O segredo. Poucas coisas não podiam ser ditas: aquilo das revistas queimadas e isto do colete.
Na mão esquerda a mala, na mão direita minha mão esquerda. Na minha mão direita, minha mala de mão. Na bolsa as passagens, os passaportes, a carteira, os cigarros. Na porta a despedida. Logo a fila, as passagens, o medo de voar. O chamado, a fila, o controle de passaportes, o detector de metais, o medo de voar. Na minha mão esquerda, sua mão suava.
Carla Zaccagnini
4. O Frasco
Na casa de São Paulo, com piscina, tinha um cofre escondido atrás de uma tomada. O que aparentava ser o orifício neutro, ou o vivo, ou a conexão do fio terra era, na verdade, uma fechadura. Girando um longo pino era possível retirar toda a caixa metálica da parede. No buraco ficava a chave que abria a caixa para revelar o que aprendemos a chamar de “dólares do ladrão”. A ideia era que, no caso de que entrassem em casa bandidos armados, depois de certa resistência cuja duração deveria ser definida in situ, entregássemos o conteúdo desse cofre.
O verdadeiro tesouro, entretanto, estava muito mais bem guardado. As economias em dólares e alguns marcos alemães, estavam enrolados formando cilindros de igual altura e diversas espessuras, dentro de um pote de plástico com uma tampa de rosca que lembro vermelha, selada com silicone. O pote estava enterrado, como bom tesouro, num buraco tampado com uma fina camada de cimento, escondido debaixo do bidê, na suíte de meus pais. Ao banheiro, por sua vez, entrava-se por uma porta que ficava atrás de outra porta. Quase uma passagem secreta: numa parede coberta de armários, o terceiro era um corredor.
Os banheiros daquela casa eram enormes, quase do tamanho dos quartos. E, naquele então, ainda tinham os pisos, azulejos e artefatos sanitários escolhidos pelos habitantes anteriores, no final dos anos 1970. Nesse banheiro, o piso era cor de tijolo e os azulejos eram laranja-claro, mais intenso dos lados e mais suave no centro, e tinham arabescos brancos desenhados por pontos, parecidos com sementes de gergelim, em relevo. Naquela madrugada, os encontrei cobertos de dólares, aos pedaços.
Minha avó materna costumava secar os lenços assim. Lavava-os e os colocava sobre os azulejos, esticando-os bem com a pressão de seus dedos longos. Grudavam graças à água e ficavam “passadinhos”, dizia. Pronunciava essa palavra com certo orgulho encoberto, um sorriso que nela não era comum. Como um cientista poderia explicar a um colega, em voz baixa, no bar, os resultados invejáveis de um experimento do qual não quer se gabar e que, então, traz à tona à meia luz, entre outros assuntos, sob outros ruídos.
Meu pai tinha comprado um lote de carros e precisava de dinheiro. Desparafusou o bidê e pôs para um lado. Quebrou o cimento e retirou a terra. Desenroscou a tampa, colocou a mão e voltou a tirá-la imediatamente. Dentro do pote, o dinheiro tinha se transformado numa pasta, como se tivesse retornado a um estado anterior. Do pó ao pó, só que mais úmido.
Uma a uma, ou melhor, fração a fração, foi desgrudando as notas, como se descascasse, uma por uma, as camadas de uma cebola muito fina e quebradiça. No centro, se deparou com uma bola que já era um objeto sólido, como o caroço de um abacate que também guarda seus segredos. Foi grudando nos azulejos, aos pedaços, as notas que pôde recuperar. Estiveram ali todo o dia seguinte, e talvez ainda o próximo. Meu pai lembra de tê-las passado; eu acho que não teria sido necessário.
Ligou para seu amigo Jorge, o que era quase como um irmão, e ele veio de Buenos Aires para acompanhá-lo a Nova-York. Por mais passado que se encontre, o dinheiro que já foi molhado ocupa mais espaço, requer mais ar ao seu redor (como se temesse se afogar de novo). Acomodaram os dólares dentro de caixas de fitas VHS, que iam encaixando entre a roupa nas malas. Imagino aquelas caixas de plástico que se abriam como livros. Se as datas coincidem, é possível que tenham sido as dos muitos títulos que meu pai comprou da videolocadora do bairro, quando chegaram os DVDs e tiveram que substituir todo o acervo. Tinha de tudo, de Branca de Neve a Amarcord. Os filmes foram umedecendo aos poucos, viam-se as linhas brancas em espiral, acompanhando a fita enrolada de ambos lados. Já não as rebobinávamos nunca, uma das grandes vantagens de não precisar devolvê-las.
No Banco de Galícia, abriram uma conta e meu pai pôde depositar a metade mais aceitável dos dólares, os que estavam rasgados, mas inteiros (rotos, pero enteros, como canta Nacha Guevara em Vuelvo). O resto eles levaram de trem a Washington, para trocá-los na Moeda Nacional.
No primeiro escritório indicaram-lhes outro. Ao sair e ver um outro banco na esquina, pensaram em tentar depositá-los ali e evitar mais uma viagem de táxi. Começaram por mostrar duas notas de cem. A mocinha foi consultar lá dentro y tomou-se o seu tempo. Voltou dizendo que fizessem a gentileza de esperar, que em breve um membro do pessoal viria ajudá-los. Que era melhor não saírem para almoçar.
O pessoal era um homem e uma mulher, jovens, altos e belos, segundo descrição que obtive recentemente. Perguntaram se havia mais notas, perguntaram quantas, quiseram escutar a história, pediram-lhes que os acompanhassem. Entraram num sedã azul (imagino um azul escuro, metálico). As portas traseiras não tinham maçanetas do lado de dentro nem controles para abrir as janelas. Naquele banco traseiro, teria feito calor em qualquer mês do ano. Chegaram a um estacionamento e foram recebidos por senhores de ternos pretos. Os acompanharam até uma pequena sala que ostentava na parede uma inscrição avisando: “tudo o que disser poderá ser usado contra você”. Convidaram-nos a sentar em cadeiras fixas no chão por correntes prateadas. Em frente, sentou-se um dos senhores, desabotoando o terno, de modo que pudessem ver notar a culatra de uma pistola.
Praticamente as mesmas perguntas. Que quantos dólares eram. Que porque os traziam escondidos, fantasiados de filmes. Que porque não os tinham declarado. Eram 30.050 dólares, viajavam escondidos porque na América Latina era proibido ter dinheiro estrangeiro, e sim, haviam-nos declarado, colocando um x onde dizia “mais de dez mil”. Ninguém antes tinha perguntado quantos, fato confirmado por algum funcionário da alfândega.
Saía e voltava. Balançava na cadeira. Olhava para o lado. Um meio-sorriso. “Querem contratar um advogado?” Saía e voltava. Sério. “São todos falsos.” Balançava na cadeira. “Isso não é possível, com todo respeito, foram adquiridos em anos diferentes, de procedências diferentes, não podem ser todos falsos.” Saía e voltava. Ajeitava o paletó ao sentar. Sério. “A metade são falsos.” Olhava-os nos olhos. “Também não é possível, como lhe disse, chegaram às minhas mãos em momentos diferentes, em lugares diferentes. Além do mais, nós conhecemos os dólares, até fabricamos um aparelhinho, veja só que interessante, que reaciona à tinta magnética e avisa se um dólar não é real.” Ajeita-se na cadeira, esticando-se para trás. “Liguem amanhã e daremos notícias. Sugerimos que não deixem Washington.” Recomenda-lhes um hotel.
Cabe mencionar que tudo isto é rememorado por quem acredita ter passado os dólares e, talvez, um ou outro marco, já esticados pelo contato prolongado com os azulejos. É possível que nada tenha ocorrido assim.
Jorge ligou às dez da manhã e ainda não havia notícias. Ligou novamente mais tarde e estavam sendo esperados. Sentaram-se em cadeiras sem correntes e receberam um envelope pardo, pedidos de desculpas, um beijo na bochecha de uma jovem alta e bela, desejos de boa tarde e o endereço correto da Moeda Nacional.
Imagino um salão com piso de mármore, em tons de cinza. Uma mulher os recebeu, nem simpática, nem antipática, o corpo largo, a pele escura. “Quanto tem?” Preencheu o recibo com os números e letras correspondentes à soma mencionada, sem sequer espiar dentro do envelope.
Um mês mais tarde, chegou um cheque pelo correio.
Carla Zaccagnini
11'34''
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
Foto still do vídeo4. O Frasco
Na casa de São Paulo, com piscina, tinha um cofre escondido atrás de uma tomada. O que aparentava ser o orifício neutro, ou o vivo, ou a conexão do fio terra era, na verdade, uma fechadura. Girando um longo pino era possível retirar toda a caixa metálica da parede. No buraco ficava a chave que abria a caixa para revelar o que aprendemos a chamar de “dólares do ladrão”. A ideia era que, no caso de que entrassem em casa bandidos armados, depois de certa resistência cuja duração deveria ser definida in situ, entregássemos o conteúdo desse cofre.
O verdadeiro tesouro, entretanto, estava muito mais bem guardado. As economias em dólares e alguns marcos alemães, estavam enrolados formando cilindros de igual altura e diversas espessuras, dentro de um pote de plástico com uma tampa de rosca que lembro vermelha, selada com silicone. O pote estava enterrado, como bom tesouro, num buraco tampado com uma fina camada de cimento, escondido debaixo do bidê, na suíte de meus pais. Ao banheiro, por sua vez, entrava-se por uma porta que ficava atrás de outra porta. Quase uma passagem secreta: numa parede coberta de armários, o terceiro era um corredor.
Os banheiros daquela casa eram enormes, quase do tamanho dos quartos. E, naquele então, ainda tinham os pisos, azulejos e artefatos sanitários escolhidos pelos habitantes anteriores, no final dos anos 1970. Nesse banheiro, o piso era cor de tijolo e os azulejos eram laranja-claro, mais intenso dos lados e mais suave no centro, e tinham arabescos brancos desenhados por pontos, parecidos com sementes de gergelim, em relevo. Naquela madrugada, os encontrei cobertos de dólares, aos pedaços.
Minha avó materna costumava secar os lenços assim. Lavava-os e os colocava sobre os azulejos, esticando-os bem com a pressão de seus dedos longos. Grudavam graças à água e ficavam “passadinhos”, dizia. Pronunciava essa palavra com certo orgulho encoberto, um sorriso que nela não era comum. Como um cientista poderia explicar a um colega, em voz baixa, no bar, os resultados invejáveis de um experimento do qual não quer se gabar e que, então, traz à tona à meia luz, entre outros assuntos, sob outros ruídos.
Meu pai tinha comprado um lote de carros e precisava de dinheiro. Desparafusou o bidê e pôs para um lado. Quebrou o cimento e retirou a terra. Desenroscou a tampa, colocou a mão e voltou a tirá-la imediatamente. Dentro do pote, o dinheiro tinha se transformado numa pasta, como se tivesse retornado a um estado anterior. Do pó ao pó, só que mais úmido.
Uma a uma, ou melhor, fração a fração, foi desgrudando as notas, como se descascasse, uma por uma, as camadas de uma cebola muito fina e quebradiça. No centro, se deparou com uma bola que já era um objeto sólido, como o caroço de um abacate que também guarda seus segredos. Foi grudando nos azulejos, aos pedaços, as notas que pôde recuperar. Estiveram ali todo o dia seguinte, e talvez ainda o próximo. Meu pai lembra de tê-las passado; eu acho que não teria sido necessário.
Ligou para seu amigo Jorge, o que era quase como um irmão, e ele veio de Buenos Aires para acompanhá-lo a Nova-York. Por mais passado que se encontre, o dinheiro que já foi molhado ocupa mais espaço, requer mais ar ao seu redor (como se temesse se afogar de novo). Acomodaram os dólares dentro de caixas de fitas VHS, que iam encaixando entre a roupa nas malas. Imagino aquelas caixas de plástico que se abriam como livros. Se as datas coincidem, é possível que tenham sido as dos muitos títulos que meu pai comprou da videolocadora do bairro, quando chegaram os DVDs e tiveram que substituir todo o acervo. Tinha de tudo, de Branca de Neve a Amarcord. Os filmes foram umedecendo aos poucos, viam-se as linhas brancas em espiral, acompanhando a fita enrolada de ambos lados. Já não as rebobinávamos nunca, uma das grandes vantagens de não precisar devolvê-las.
No Banco de Galícia, abriram uma conta e meu pai pôde depositar a metade mais aceitável dos dólares, os que estavam rasgados, mas inteiros (rotos, pero enteros, como canta Nacha Guevara em Vuelvo). O resto eles levaram de trem a Washington, para trocá-los na Moeda Nacional.
No primeiro escritório indicaram-lhes outro. Ao sair e ver um outro banco na esquina, pensaram em tentar depositá-los ali e evitar mais uma viagem de táxi. Começaram por mostrar duas notas de cem. A mocinha foi consultar lá dentro y tomou-se o seu tempo. Voltou dizendo que fizessem a gentileza de esperar, que em breve um membro do pessoal viria ajudá-los. Que era melhor não saírem para almoçar.
O pessoal era um homem e uma mulher, jovens, altos e belos, segundo descrição que obtive recentemente. Perguntaram se havia mais notas, perguntaram quantas, quiseram escutar a história, pediram-lhes que os acompanhassem. Entraram num sedã azul (imagino um azul escuro, metálico). As portas traseiras não tinham maçanetas do lado de dentro nem controles para abrir as janelas. Naquele banco traseiro, teria feito calor em qualquer mês do ano. Chegaram a um estacionamento e foram recebidos por senhores de ternos pretos. Os acompanharam até uma pequena sala que ostentava na parede uma inscrição avisando: “tudo o que disser poderá ser usado contra você”. Convidaram-nos a sentar em cadeiras fixas no chão por correntes prateadas. Em frente, sentou-se um dos senhores, desabotoando o terno, de modo que pudessem ver notar a culatra de uma pistola.
Praticamente as mesmas perguntas. Que quantos dólares eram. Que porque os traziam escondidos, fantasiados de filmes. Que porque não os tinham declarado. Eram 30.050 dólares, viajavam escondidos porque na América Latina era proibido ter dinheiro estrangeiro, e sim, haviam-nos declarado, colocando um x onde dizia “mais de dez mil”. Ninguém antes tinha perguntado quantos, fato confirmado por algum funcionário da alfândega.
Saía e voltava. Balançava na cadeira. Olhava para o lado. Um meio-sorriso. “Querem contratar um advogado?” Saía e voltava. Sério. “São todos falsos.” Balançava na cadeira. “Isso não é possível, com todo respeito, foram adquiridos em anos diferentes, de procedências diferentes, não podem ser todos falsos.” Saía e voltava. Ajeitava o paletó ao sentar. Sério. “A metade são falsos.” Olhava-os nos olhos. “Também não é possível, como lhe disse, chegaram às minhas mãos em momentos diferentes, em lugares diferentes. Além do mais, nós conhecemos os dólares, até fabricamos um aparelhinho, veja só que interessante, que reaciona à tinta magnética e avisa se um dólar não é real.” Ajeita-se na cadeira, esticando-se para trás. “Liguem amanhã e daremos notícias. Sugerimos que não deixem Washington.” Recomenda-lhes um hotel.
Cabe mencionar que tudo isto é rememorado por quem acredita ter passado os dólares e, talvez, um ou outro marco, já esticados pelo contato prolongado com os azulejos. É possível que nada tenha ocorrido assim.
Jorge ligou às dez da manhã e ainda não havia notícias. Ligou novamente mais tarde e estavam sendo esperados. Sentaram-se em cadeiras sem correntes e receberam um envelope pardo, pedidos de desculpas, um beijo na bochecha de uma jovem alta e bela, desejos de boa tarde e o endereço correto da Moeda Nacional.
Imagino um salão com piso de mármore, em tons de cinza. Uma mulher os recebeu, nem simpática, nem antipática, o corpo largo, a pele escura. “Quanto tem?” Preencheu o recibo com os números e letras correspondentes à soma mencionada, sem sequer espiar dentro do envelope.
Um mês mais tarde, chegou um cheque pelo correio.
Carla Zaccagnini
5. Dólares pretos
A agência de carros usados ficava na avenida Pompeia, em frente a um posto de gasolina e ao lado do mecânico mais elegante que eu jamais tenha visto, numa curva, logo ao final de uma descida (ou ao início de uma subida, se nos locomovermos em direção ao rio), uma dessas que, a certa velocidade, faz com que os pneus se afastem do asfalto, provocando aquela sensação no ventre que se apelida “suspiro de virgem”.
Era um trecho propicio a acidentes. Por um lado, a localização no vale facilitava inundações com as chuvas de verão. Por outro, as sensações da descida unidas à curva resultaram em mais de uma colisão, alguma vez contra as grades da agência e os carros estacionados na primeira fileira.
Mas esse dia não. Era um dia tranquilo em que meu pai lia o jornal ou jogava paciência na tela do computador, esperando que entrasse o próximo cliente potencial. Alguém procurando um carro novo, vendendo um carro velho, desejando uma mudança. Entrou um senhor estrangeiro e perguntou o preço de mais de um veículo. “E este?” “E aquele?” “E aquele outro, o prata?” “E o Ford preto?” Anotava os preços.
Chamavam a atenção o sotaque e seu interesse disperso. Não parecia saber o que estava procurando. Foram feitas as perguntas típicas: “É um carro para o trabalho que você procura?” “Tem família?” As respostas eram vagas, às vezes evasivas. Um curioso, pensou. Ou alguém que está estudando o mercado, um possível futuro concorrente.
Três ou quatro semanas depois, voltou com um irmão – ou primo – especialmente simpático. O novo integrante da família trazia debaixo do braço um livro em francês, como se esperasse o momento de retomar a leitura. Um romance, provavelmente. Meu pai já não se lembra do título ou autor, mas foi o idioma do livro que o ajudou a definir o sotaque e deu início a uma conversa que terminou em “somos da Costa do Marfim”.
Igualmente eclético em seus interesses, embora algo mais específico em seus exames, o parente com o livro dirigia discretamente o que parecia ser um passeio ao azar. Caminhavam os dois por entre os carros, parando para perguntar preços e olhar-lhes os dentes. Meu pai seguia-os com a vista, aproximando-se o quanto o pé engessado lhe permitia, sem poder passar pelos corredores mais estreitos formados entre os automóveis estacionados com precisão, quase como se tivessem sido colocados no lugar desde cima, por mãos gigantes e delicadas. Escolheram cinco carros de diferentes marcas, modelos, anos, cores e cilindradas.
Aparentemente, as combinações de marcas, modelos, anos, cores e cilindradas que poderiam ser melhor vendidas na Costa do Marfim. Vinham numa viagem de negócios, disseram. Quem falava era principalmente o parente com o livro: “Temos estado importando automóveis usados da Alemanha” – alguns detalhes que meu pai não recorda preencheriam as próximas linhas – “estivemos estudando possibilidades, fazendo contas, e parece ser mais conveniente levá-los daqui, de barco. Estamos esperando o dinheiro chegar e em breve poderemos fechar negócio. O quê acha de nos encontrarmos na sua casa amanhã para explicar bem como seria feito o pagamento?”
Meu pai estava um pouco nervoso com a visita. Parecia estranho que eles quisessem se encontrar na sua casa, e que a forma de pagamento requeresse tantas explicações. Pediu a um amigo que se somasse, de modo que houvesse dois jogadores de cada lado, e à sua namorada que estivesse no andar de cima, como uma carta na manga.
Seu amigo não chegou à hora acordada, embora ainda pudesse chegar a qualquer momento. Chegaram os dois irmãos – ou primos – com uma pasta a que meu pai chama “de 007”. Quem falava era o do livro, embora desta vez não o trouxesse: “O que acontece é o seguinte, senhor Guillermo, o dinheiro já está aqui, está no barco. Encontra-se todo assim”. E lhe estende uma nota tingida de preto.
Apresentou-lhe quatro ou cinco notas, todas pretas. E o parente que nunca havia trazido um livro debaixo do braço pediu um copo com água. O dono da casa fez um gesto como se fosse se levantar. Sua perna engessada tornava qualquer movimento mais dificultoso, por tanto, apontou em direção à cozinha e disse “se não se incomoda, pode pegar você mesmo um recipiente com água.” O homem não se incomodava. Meu pai voltou a ajeitar-se na cadeira. O parente do livro, sem livro, olhava-o sorrindo.
O primo-irmão voltou da cozinha com um prato fundo cheio de água, tirou um frasquinho do bolso, verteu umas gotas do líquido que continha, transparente, na água que também não mudou de cor, e disse: “Este líquido é a única substância capaz de lavar a tintura”. “Só com água não sai?” “Não, não, não, não, não”. Foram aparecendo os tons de verde, os ornamentos, os retratos, os números: duas ou três notas de 20, ou de 10 e uma de 100. Limpas. Como mágica.
O capitão do barco não queria entregar o dinheiro até receber sua parte do trato. Meu pai não entendia, ou fingia que não entendia o problema. Bastaria lavar os dólares necessários para pagar o capitão, em sua cabine, da mesma forma que haviam acabado de demonstrar nesta sala. Mas não, não podiam lavar o dinheiro no porto, não, não, não, não, não. E o capitão era intransigente: até que não recebesse sua parte de dólares limpos, os dólares tingidos não desceriam do barco. Também precisavam de dinheiro para comprar o líquido: caríssimo. Meu pai não se lembra quanto disseram custar, nunca teve boa memória para os números.
A ideia era que meu pai adiantasse o quinhão do capitão, somada ao custo do líquido secreto. Não sabemos os números, mas também não diriam muita coisa, passados tantos anos. Uma porcentagem do lucro pela venda de cinco automóveis usados, num negócio transatlântico. Uma vez sossegado o capitão, eles recuperariam o total com o que pagariam pelos cinco carros reservados além de devolver o adiantamento. Meu pai receberia os dólares pretos e a quantidade de fórmula necessária para limpá-los. Eles retornariam à Costa do Marfim, de barco, com os cinco carros e o capitão intransigente, agora satisfeito.
Em sinal de confiança, deixaram com meu pai uma nota 100, para que visse que era autêntica. “Pode mandar conferir”, disse o do livro. Meu pai já tinha conferido. Conhecia dólares, tinha até fabricado um aparelho que se iluminava ao detectar a tinta magnética usada nos dólares impressos pela Moeda Nacional. E não tinha por que ser falsa. Seria como um mágico que, querendo provar que não há truque, mostra uma carta marcada.
Meu pai ficou de pensar, eles ficaram de voltar à tarde. Tocaram a campainha e ele abriu. Estavam sem a pasta. Ele notou assim que abriu a porta e pensou que seria para estar livres de indícios incriminatórios, caso ele houvesse contatado a polícia. Voltaram a sentar à mesma mesa. “Interessante”, diz meu pai que lhes disse, “mas acredito que tenham que encontrar alguém mais crédulo, comigo não vai funcionar”.
Mantendo a simpatia, sorridentes, foram embora. Sem saber muito bem o quê dizer. Despediram-se amigavelmente e meu pai ficou com os 100 dólares. Um tempo depois, leu no jornal que haviam detido em São Paulo uma quadrilha de golpistas. Descreviam em detalhe o truque dos dólares pretos e havia uma foto da quadrilha algemada. Meu pai acredita ter reconhecido no retrato o primeiro que o visitou, o que entrou em sua cozinha e encheu um prato fundo com água. O parente do livro não estava na foto.
Carla Zaccagnini
7'59''
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Foto still do vídeo5. Dólares pretos
A agência de carros usados ficava na avenida Pompeia, em frente a um posto de gasolina e ao lado do mecânico mais elegante que eu jamais tenha visto, numa curva, logo ao final de uma descida (ou ao início de uma subida, se nos locomovermos em direção ao rio), uma dessas que, a certa velocidade, faz com que os pneus se afastem do asfalto, provocando aquela sensação no ventre que se apelida “suspiro de virgem”.
Era um trecho propicio a acidentes. Por um lado, a localização no vale facilitava inundações com as chuvas de verão. Por outro, as sensações da descida unidas à curva resultaram em mais de uma colisão, alguma vez contra as grades da agência e os carros estacionados na primeira fileira.
Mas esse dia não. Era um dia tranquilo em que meu pai lia o jornal ou jogava paciência na tela do computador, esperando que entrasse o próximo cliente potencial. Alguém procurando um carro novo, vendendo um carro velho, desejando uma mudança. Entrou um senhor estrangeiro e perguntou o preço de mais de um veículo. “E este?” “E aquele?” “E aquele outro, o prata?” “E o Ford preto?” Anotava os preços.
Chamavam a atenção o sotaque e seu interesse disperso. Não parecia saber o que estava procurando. Foram feitas as perguntas típicas: “É um carro para o trabalho que você procura?” “Tem família?” As respostas eram vagas, às vezes evasivas. Um curioso, pensou. Ou alguém que está estudando o mercado, um possível futuro concorrente.
Três ou quatro semanas depois, voltou com um irmão – ou primo – especialmente simpático. O novo integrante da família trazia debaixo do braço um livro em francês, como se esperasse o momento de retomar a leitura. Um romance, provavelmente. Meu pai já não se lembra do título ou autor, mas foi o idioma do livro que o ajudou a definir o sotaque e deu início a uma conversa que terminou em “somos da Costa do Marfim”.
Igualmente eclético em seus interesses, embora algo mais específico em seus exames, o parente com o livro dirigia discretamente o que parecia ser um passeio ao azar. Caminhavam os dois por entre os carros, parando para perguntar preços e olhar-lhes os dentes. Meu pai seguia-os com a vista, aproximando-se o quanto o pé engessado lhe permitia, sem poder passar pelos corredores mais estreitos formados entre os automóveis estacionados com precisão, quase como se tivessem sido colocados no lugar desde cima, por mãos gigantes e delicadas. Escolheram cinco carros de diferentes marcas, modelos, anos, cores e cilindradas.
Aparentemente, as combinações de marcas, modelos, anos, cores e cilindradas que poderiam ser melhor vendidas na Costa do Marfim. Vinham numa viagem de negócios, disseram. Quem falava era principalmente o parente com o livro: “Temos estado importando automóveis usados da Alemanha” – alguns detalhes que meu pai não recorda preencheriam as próximas linhas – “estivemos estudando possibilidades, fazendo contas, e parece ser mais conveniente levá-los daqui, de barco. Estamos esperando o dinheiro chegar e em breve poderemos fechar negócio. O quê acha de nos encontrarmos na sua casa amanhã para explicar bem como seria feito o pagamento?”
Meu pai estava um pouco nervoso com a visita. Parecia estranho que eles quisessem se encontrar na sua casa, e que a forma de pagamento requeresse tantas explicações. Pediu a um amigo que se somasse, de modo que houvesse dois jogadores de cada lado, e à sua namorada que estivesse no andar de cima, como uma carta na manga.
Seu amigo não chegou à hora acordada, embora ainda pudesse chegar a qualquer momento. Chegaram os dois irmãos – ou primos – com uma pasta a que meu pai chama “de 007”. Quem falava era o do livro, embora desta vez não o trouxesse: “O que acontece é o seguinte, senhor Guillermo, o dinheiro já está aqui, está no barco. Encontra-se todo assim”. E lhe estende uma nota tingida de preto.
Apresentou-lhe quatro ou cinco notas, todas pretas. E o parente que nunca havia trazido um livro debaixo do braço pediu um copo com água. O dono da casa fez um gesto como se fosse se levantar. Sua perna engessada tornava qualquer movimento mais dificultoso, por tanto, apontou em direção à cozinha e disse “se não se incomoda, pode pegar você mesmo um recipiente com água.” O homem não se incomodava. Meu pai voltou a ajeitar-se na cadeira. O parente do livro, sem livro, olhava-o sorrindo.
O primo-irmão voltou da cozinha com um prato fundo cheio de água, tirou um frasquinho do bolso, verteu umas gotas do líquido que continha, transparente, na água que também não mudou de cor, e disse: “Este líquido é a única substância capaz de lavar a tintura”. “Só com água não sai?” “Não, não, não, não, não”. Foram aparecendo os tons de verde, os ornamentos, os retratos, os números: duas ou três notas de 20, ou de 10 e uma de 100. Limpas. Como mágica.
O capitão do barco não queria entregar o dinheiro até receber sua parte do trato. Meu pai não entendia, ou fingia que não entendia o problema. Bastaria lavar os dólares necessários para pagar o capitão, em sua cabine, da mesma forma que haviam acabado de demonstrar nesta sala. Mas não, não podiam lavar o dinheiro no porto, não, não, não, não, não. E o capitão era intransigente: até que não recebesse sua parte de dólares limpos, os dólares tingidos não desceriam do barco. Também precisavam de dinheiro para comprar o líquido: caríssimo. Meu pai não se lembra quanto disseram custar, nunca teve boa memória para os números.
A ideia era que meu pai adiantasse o quinhão do capitão, somada ao custo do líquido secreto. Não sabemos os números, mas também não diriam muita coisa, passados tantos anos. Uma porcentagem do lucro pela venda de cinco automóveis usados, num negócio transatlântico. Uma vez sossegado o capitão, eles recuperariam o total com o que pagariam pelos cinco carros reservados além de devolver o adiantamento. Meu pai receberia os dólares pretos e a quantidade de fórmula necessária para limpá-los. Eles retornariam à Costa do Marfim, de barco, com os cinco carros e o capitão intransigente, agora satisfeito.
Em sinal de confiança, deixaram com meu pai uma nota 100, para que visse que era autêntica. “Pode mandar conferir”, disse o do livro. Meu pai já tinha conferido. Conhecia dólares, tinha até fabricado um aparelho que se iluminava ao detectar a tinta magnética usada nos dólares impressos pela Moeda Nacional. E não tinha por que ser falsa. Seria como um mágico que, querendo provar que não há truque, mostra uma carta marcada.
Meu pai ficou de pensar, eles ficaram de voltar à tarde. Tocaram a campainha e ele abriu. Estavam sem a pasta. Ele notou assim que abriu a porta e pensou que seria para estar livres de indícios incriminatórios, caso ele houvesse contatado a polícia. Voltaram a sentar à mesma mesa. “Interessante”, diz meu pai que lhes disse, “mas acredito que tenham que encontrar alguém mais crédulo, comigo não vai funcionar”.
Mantendo a simpatia, sorridentes, foram embora. Sem saber muito bem o quê dizer. Despediram-se amigavelmente e meu pai ficou com os 100 dólares. Um tempo depois, leu no jornal que haviam detido em São Paulo uma quadrilha de golpistas. Descreviam em detalhe o truque dos dólares pretos e havia uma foto da quadrilha algemada. Meu pai acredita ter reconhecido no retrato o primeiro que o visitou, o que entrou em sua cozinha e encheu um prato fundo com água. O parente do livro não estava na foto.
Carla Zaccagnini
7'59''
Parte da vídeo instalação em 5 canais. Cor e som
Foto still do vídeoEm Horizontes USA, título de imagens que constituem a obra, foram retirados da publicação distribuída pelas embaixadas norte-americanas na América Latina nos anos 1970 e 80, Horizontes USA. Na série, Zaccagnini utilizou especificamente as edições de número 6, 26 e 27, empregando propositalmente apenas as imagens e deixando de lado os textos originais que constituíram na época as narrativas escolhidas pelo poder norte-americano.
48 x 63 cm
revista rasgada sobre papel
Foto VermelhoEm Horizontes USA, título de imagens que constituem a obra, foram retirados da publicação distribuída pelas embaixadas norte-americanas na América Latina nos anos 1970 e 80, Horizontes USA. Na série, Zaccagnini utilizou especificamente as edições de número 6, 26 e 27, empregando propositalmente apenas as imagens e deixando de lado os textos originais que constituíram na época as narrativas escolhidas pelo poder norte-americano.
Em Horizontes USA, título e imagens que constituem a obra foram retirados da publicação distribuída pelas embaixadas norte-americanas na América Latina nos anos 1970 e 80, Horizontes USA. Na série, Zaccagnini utilizou especificamente as edições de número 6, 26 e 27, empregando propositalmente apenas as imagens e deixando de lado os textos originais que constituíram na época as narrativas escolhidas pelo poder norte-americano.
63 x 48 cm
revista rasgada sobre papel
Foto Filipe BerndtEm Horizontes USA, título e imagens que constituem a obra foram retirados da publicação distribuída pelas embaixadas norte-americanas na América Latina nos anos 1970 e 80, Horizontes USA. Na série, Zaccagnini utilizou especificamente as edições de número 6, 26 e 27, empregando propositalmente apenas as imagens e deixando de lado os textos originais que constituíram na época as narrativas escolhidas pelo poder norte-americano.