A natureza das imagens utilizadas pelo amplo espectro de linguagens que as mídias contemporâneas utilizam sugerem, igualmente, uma ampla oportunidade de intervenções, e, assim, me valendo da vastidão deste universo inusitado e em expansão, atuo de variadas maneiras o que, para um artista, é a oportunidade mais nobre de desenvolver incontáveis modos de criar. No meu caso, por exemplo, tenho como ponto de partida de minhas obras a apropriação e intervenção sobre imagens de diferentes procedências. Livros e documentos antigos, pôsteres, erratas, mapas, fotos e biografias anônimas, entre tantos, gerando um grande elenco de procedimentos próprios, combinados, particulares, pessoais, alguns prosaicos, como recortes e colagens, e, outros - do aprofundamento de uma metodologia única - criados por mim, assim como descolagem, escarificação, serpentina e camouflage fundando uma cátedra cirúrgico-poética a serviço da investigação da imagem, além de e sobre referências subliminares, turbulentas, reveladoras, terminais. Assim, a obra gera novos e raros limites entre uma cosmogonia readaptada á interioridade da imagem e a exterioridade secular consumada. E, assim, vou encontrando, na prática, a direção mais exata para explanar aquilo que, como artista, motiva minhas observações e as rotineiras necessidades de analisar as questões sensíveis que o mundo, de forma genérica, propõe e recicla o tempo todo.
Odires Mlászho é um jovem artista que se aventurou pelo mundo da fotografia para descobrir as coincidências e os acasos nascidos do excesso de imagens impressas nas últimas décadas.
O trabalho Cavo um fóssil repleto de anzóis, aponta, paradoxalmente, para a busca do reconhecimento na seqüência sem fim e sem tempo de outros olhares. Percebe-se a transfiguração das formas nos padrões recriados a partir de pedaços de imagens recolhidas nos velhos sebos de São Paulo.
Ele tem a paixão do experimentador e sua trajetória traz o tormento daqueles que ousam e se arrepiam com a eterna obsessão de criar o novo através dos desconhecidos íntimos.
Um trabalho que invade nossa racionalidade atenta e destrói qualquer análise. Perturba a colagem e o insólito não se pode negar a existência fotográfica, nem mesmo fugir ao seu fascínio.
As fotos-devir, como ele mesmo denomina, evidencia, e identifica, os Césares, os Marcus Aurélius, os Augustus e todos aqueles que habitam nossa galeria imaginária, inexplicável e demasiadamente humana.
Rubens Fernandes Junior é pesquisador e crítico de fotografia.
Folha de São Paulo - Ilustrada / 2001 / Pág. 6
Um objeto cortante na mão de um homem obstinado pode causar ferimentos e dor. Quando a obstinação é de um artista e o ferimento uma cicatriz numa fotografia, a dor pode ser mais intensa. É isso o que o ensaio “A Antecâmara da Máscara”, de Odires Mlászho sugere.
Mlászho não é fotógrafo. As imagens com as quais trabalha são adquiridas em brechós de fotografias que ele descobre pela cidade de São Paulo, onde mora. Aficcionado por retratos, possui um acervo inimaginável de álbuns de formatura e de velhas revistas com fotos de atrizes, políticos e gente desconhecida.
Quanto a discussão ética de se apropriar de fotografias alheias para realizar suas obras, o que já lhe rendeu um processo na justiça, o artista tem uma resposta objetiva: “esse é um risco que eu calculadamente incorporo ao meu trabalho”.
Esses retratos esquecidos no tempo são o ponto de partida para o trabalho que Mlászho desenvolve sobre uma mesa branca de um minúsculo apartamento no centro da cidade de São Paulo. A mesa, sobre a qual repousam tesouras, estiletes e objetos perfurantes é a metáfora de numa mesa cirúrgica. As tais imagens perdidas no tempo são os pacientes terminais de Mlászho.
Com a destreza de um cirurgião ele opera cortes, lixa parte das imagens como quem retira a pele da fotografia, clareia os olhos até que eles sumam, ressalta algumas partes do rosto, oculta outras.
Em “A Antecâmara da Máscara” o artista reuniu uma série de retratos de mulheres de uma antiga revista estrangeira da década de 70. Originalmente as imagens mostravam belas mulheres, muito bem fotografadas, num ensaio sobre a beleza feminina.
“É um tratado sobre a beleza e a felicidade”, diz o artista. Mas, definitivamente, Mlászho não está aqui para discutir ou criar amenidades. Seu discurso é beligerante e o resultado de seu trabalho um torpedo contra o senso comum e a bestialidade que ronda o mundo fashion dos rostinhos bonitos, das revistas de moda, das agências de modelos, dos estúdios fotográficos e da beleza institucionalizada que inundam a mídia e ditam fórmulas esquemáticas e pasteurizadas sobre o belo. A beleza que ele discute não se leva à mesa. A não ser que seja para cortar, machucar, cegar e, enfim, matar.
Essas mulheres, exemplos dessa beleza conspurcada, foram aprisionadas na antecâmara do artista. Se os olhos são de fato a janela da alma das pessoas, é sintomático o fato de Mlászho apagar os olhos de suas modelos com um processo químico. “Elas são cegas”, diz. Desalmadas seria o termo mais correto.
Um prosaico guardanapo de papel e um pouco de água foram os recursos usados para finalizar a intervenção sobre os retratos. O resultado é, no mínimo, intrigante e assustador.
Destituídas da pele, dos olhos, da carne e do sangue essas mulheres se transformaram em espectros tristes e agonizantes. Belas? Sim, mas de uma beleza fria, desencarnada, esmaecida. Envolvidas por uma espécie de máscara mortuária, elas parecem clamar por algo, por alguém. Tarde demais. Morreram todas por asfixia mas ainda tentam, num último esforço, esboçar um sorriso, um “x”, diante do fotógrafo. Mesmo diante da dor, da falência, é necessário manter a imagem. Pobres criaturas. Estão mortas e nem isso conseguem perceber.
O cirurgião-artista opera seus pacientes não para salvar-lhes a vida, mas para escancarar suas doenças, suas crises de identidade, seus vícios de sociabilidade. Prova de que a crise é geral: Mlászho não existe. É um nome inventado por Odires para encarnar sua porção artista. Perturbador esse tal de não-Mlászho, esse não-fotógrafo.
Emenda um cigarro atrás do outro. Fala, corta, silencia. No pequeno apartamento do 17o andar, no centro de São Paulo, Odires Mlászho vive a emendar resquícios de civilizações. Enciclopédias ilustradas, manuais técnicos, raridades literárias, revistas sexagenárias, retratos de almanaque saem das prateleiras e pairam como etérea matéria no ar, preenchem os vãos. Poderia até ter inspirado uma canção: ama os livros do mesmo amor tácito que vota aos maços de cigarro. Mas seus objetos transcendentes protestam com um gesto concreto: assentam-se sobre a mesa, oferecem-se para o corte calculado e, agora, densas lâminas, aceitam-se e rejeitam-se, machucam-se e cicatrizam-se. Em certos casos, amalgamam-se na foto final.
Mlászho transita entre os sebos do centro da cidade à procura de impressos antigos e atuais, abandonados por motivos diversos. Adota refugos da sociedade. E processa-lhes uma revolução: dá-lhes nova identidade, transmuta-os em novos seres, formas, conceitos. Apesar de não ser fotógrafo, a foto surge, em vários momentos, para resolver a questão da efemeridade do original.
Num trabalho solitário e constante, o artista criou suas próprias técnicas e construiu uma sintaxe particular, forjada a partir da ruptura e reorganização de códigos visuais impressos. Ele realiza delicadas cirurgias no papel, rompendo as camadas embalsamadas do conhecimento sistematizado, da catalogação didática, da informação envelhecida, intervindo na hierarquia do código e provocando sua resignificação.
Corta. Vez ou outra, o artista interrompe-se. Vai atrás de uma imagem. E mais outra. Produz compulsivamente. Latentes nos livros, nas tiras de papel em processo ou já emoldurados, os seres gerados pelo artista o ocupam integralmente. “Diana” está na parede, ideal e concreta; perscruta o ambiente. Ocasionalmente, sobre a mesa, aparece o anjo feito com retalhos de um livro alemão raro, do século 19, “Empilhados na Esteira do Sol”. As imagens pop “David Beckham” e “Leonardo di Caprio”, feitas de tiras de pôsteres, aparecem na tela do computador. Em diferentes planos e de ascendências tão díspares, são todos agora pertencentes a uma mesma estirpe. No encontro entre o cálculo e a imprevisibilidade, “Serpentinas” tiveram na fotografia seu fim.
Criador e criaturas misturam-se no diminuto lar, sendo o próprio Mlászho uma invenção. Aos 35 anos, iniciou sua produção artística e criou seu segundo nome colando pedaços de um dos nomes centrais da vanguarda construtivista do século 20: László Moholy-Nagy. Era 1996. Numa noite, aguardou o fim de uma conferência para apresentar-se ao palestrante. Mostrou-lhe sua primeira série, “Cavo um fóssil repleto de anzóis” – colagens de fotos de esculturas clássicas com olhos humanos. Sentiu do interlocutor interesse e incentivo. Autodidata, Mlászho começou a trilhar, por própria conta e risco, o circuito das exposições. Sete anos mais tarde, seu trabalho, juntamente com o de Cássio Vasconcellos, Kenji Ota e Eustáquio Neves, transformou-se em objeto de pesquisa para a tese “A Fotografia Expandida”, de Rubens Fernandes Junior. Era ele o palestrante a quem mostrara seu primeiro trabalho. Suas séries chegaram também às mãos do curador Eduardo Brandão, que, em 2002, abre a Galeria Vermelho. Entre os trabalhos da exposição inaugural, estariam “Diana” e “Nu em Transe”, duas obras emblemáticas de Mlászho.
A fotografia, apesar de utilizada, a priori, apenas como recurso técnico, acaba por desempenhar diferentes papéis. Em “Um animal farejando o teu sono”, ela é o golpe final que cristaliza retratos extraídos de um livro do século 19, depois de afogados em chás de ervas variadas e asfixiados com cera de vela. A foto também pode ser um purgatório perene, como em “Antecâmara da Máscara”: suspiro congelado de belas mulheres que tiveram seus olhos lixados e descolados e seus rostos cobertos por triviais guardanapos de papel molhados. Ou uma possibilidade de existência para seres gestados a partir de pedaços de corpos de revistas de nu, em “Mestres Açougueiros e seus Aprendizes”.
O reconhecimento do seu trabalho deu-se primeiramente no meio fotográfico, mas as pesquisas de Mlászho apontam também em outras direções. Ele utiliza diferentes suportes e realiza objetos diversos, como “Flaps”, feitos de milimétricas tiras verticais extraídas de cada página de um livro inteiro, preservando sua seqüência exata, ou “Teddy Bear”, ursos feitos com casacos de pele pelo avesso. Ambas as séries fizeram parte de sua mais recente exposição, “O.D.I.R.E.S. – Objetos Derivados, Intrínsecos aos Restos Emulsionados ou Saqueados”, na Galeria Vermelho, em junho de 2006.
Suas pesquisas com o corte, agora radicalizadas, passaram a ser utilizadas não mais para recriar figuras, mas como matéria plástica na depuração de formas e cores, como é o caso do inédito “Christofle – Eggs Mare”, elaborado com técnicas mais complexas, cortes interseccionados em diferentes planos, que o artista batizou de “colagem progressiva”.
Cinco horas no microcosmo de Mlászho, em meio à fumaça intangível do cigarro. Depois, a concretude de um cafezinho na padaria na esquina, faltam quinze para as dez da noite, o artista despede-se. Voltaria para a transcendência dos livros. Para a sutileza e a brutalidade do corte. Para o amor tácito aos maços de cigarro.
“Ao me deparar pela primeira vez com o trabalho do Odires Mlászho tive um choque. Primeiro, porque o trabalho se insinuava numa fronteira estética que poucas vezes tinha experimentado; segundo, porque o procedimento da apropriação de imagens e o (re)trabalho era bastante diferenciado daqueles que até então conhecia; terceiro, porque Odires não era um "fotógrafo" convencional (aquele que "tira" fotografia), mas um artista que opera no "fazer" fotográfico - e isso me interessa muito mais. Posso dizer muitas coisas que me surpreenderam naquele primeiro encontro há quase dez anos, mas não posso deixar de dizer que a empatia e a sincronicidade foi tão grande que a primeira coisa que falei após ouvir seu nome, foi aproximá-lo do nome de outro artista - László Moholy-Nagy. O sobrenome "criado" por Odires para afastar-se de sua origem polonesa vinha desse artista húngaro, que é um dos meus preferidos. Odires ficou impressionado com minha velocidade de decodificação e essa surpresa mútua nos aproximou imediatamente e nos empurrou para o mundo das idéias. Outra coisa encantadora, de inteligência e sutileza ímpar, era como ele denominava cada série que produzia. A maneira como Odires trata a questão da imagem contemporânea também é intrigante. A cada série, novas imagens, novas possibilidades de encarar o desafio da criação (o que ele faz com naturalidade), novas intervenções, novos procedimentos. Nada é igual ao anterior. O mundo contemporâneo, povoado de imagens sem limites, é o espaço em que transita Odires, ou seja, é na quantidade que ele consegue criar alternativas críticas e singulares para expressar sua indignação criativa. Enfim, o contato com a obra de Odires acabou ampliando meu universo de compreensão do trabalho no suporte fotográfico e isso ajudou-me a compreender melhor o processo criativo. O conceito de fotografia expandida criado e desenvolvido teoricamente no meu doutorado busca enfatizar a importância dos processos de criação e os diferentes procedimentos utilizados pelo artista. A fotografia é hoje produto cultural complexo que contribui para a transmissão das mais variadas experiências perceptivas”
Odires Mlászhonasceu em Mandirituba, Paraná em 1960. É um artista que utiliza a fotografia como um dos seus principais suportes para produzir e desenvolver seu trabalho. Autodidata, foi assistente durante mais de dez anos do pintor Mário Gruber, período que conviveu e aprendeu com o grande mestre as vicissitudes da sobrevivência artística. Odires, a partir da visibilidade que seus trabalhos alcançaram nos últimos oito anos, conseguiu da continuidade ao seu projeto pessoal: viver do seu trabalho como artista. Apesar da fotografia ser, inicialmente, um procedimento estranho para ele, foi ela que viabilizou sua inserção no circuito das artes.
Claro que certa intimidade com a imagem fotográfica já existia, mas Odires jamais pensou em produzir sua arte nesse suporte. Antes do reconhecimento de seu trabalho ele desenvolvia grandes colagens, de cem a quatrocentos pequenos fragmentos, que demoravam meses para serem concluídas. Como tinha muita intimidade com o procedimento da colagem e montagem, por ter pesquisado durante muito tempo, resolveu construir seu nome homenageando dois grandes mestres. Como não gostava do seu nome de batismo, José Odires Micowski – José Odires , um nome estranho que não o agradava, e Micowski, polonês demais no seu entender – resolveu assumir uma personalidade artística com o nome Odires Mlászho, sendo o último uma montagem de dois mestres dessa arte Max Ernest e László Moholy-Nagy.
Odires Mlászhovem desenvolvendo sua obra mediante o procedimento de apropriação de fotografias, de origens diversas, e apresentando através de várias séries de retratos dos mais instigantes da produção contemporânea, É nosso objetivo apresentar algumas das suas diferentes séries realizadas nos últimos cinco anos, e esclarecer os respectivos procedimentos. Essa variabilidade de processos é que torna seu trabalho bastante singular na fotografia brasileira das últimas décadas, quando vemos artistas de diversas origens se aproximarem da linguagem fotográfica para ampliar sua área de atuação e estabelecer novos diálogos.
Essa é uma das características da fotografia em expansão. No caso de Odires, que trabalha por apropriação, sua busca é um universo de imagens já circuladas que, após seu trabalho criativo, são reinseridas no circuito comunicacional. Para produzir e concretizar suas séries, ele tornou-se um assíduo e compulsivo freqüentador dos sebos do centro velho da cidade de São Paulo. Antes disso o livro já fazia parte do seu universo, mas como objeto de devoção:
´livro para mim era intocável, um objeto de admiração`. O livro para um leitor contumaz como Odires, era considerado um objeto raro, mas deveria se transformar.
Exatamente no ápice de uma crise com sua coleção de quase quatro mil livros usados, a maioria com imagens, espalhados pelo seu pequeno apartamento-ateliê, foi que Odires percebeu que, para criar, tinha que romper com essa situação. Destruir para criar. Sua primeira série, surgiu quando folheando seus livros descobriu, naquela confusão de imagens e línguas desconhecidas, que dois exemplares diferentes no espaço e no tempo, se destacavam pela semelhança. Um deles apresentava uma diversificado conjunto de fotografias de esculturas clássicas, basicamente o rosto das peças em primeiro plano, impresso em rotogravura, em papel de boa qualidade; o outro, um livro dos anos quarenta, que continha uma série de retratos de líderes, empresários e intelectuais alemães.
Era o que faltava para a tomada de decisão. Depois de tantos anos do exercício da colagem, que envolveu dedicação, pesquisa e estudo de cores e formas, texturas e luminosidades, surgiu a vontade de fazer um exercício mais radical: trocar as centenas de fragmentos por apenas dois, criando, a partir da transformação do livro, uma imagem conceitual. Uma imagem fundida de duas outras, de origens completamente diferentes, mas que se atraíam por semelhança, na qual cada uma delas reforça reciprocamente o caráter da outra.
Foi assim que surgiu a série Cavo um fóssil repleto de anzóis, e nasceu um novo conceito, denominado, inicialmente por Odires Mlászho de fotos devir. Segundo o Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, devir significa: vir a ser, tornar-se, devenir (transformação incessante e permanente pela qual as coisas se constroem e dissolvem em outras coisas). Odires criou o termo para o conjunto de procedimentos que desenvolveu ao reelaborar os conhecidos procedimentos dos dadaístas e inventar outros, conforme, conforme veremos mais adiante. Ele subverte a ordem do fazer artístico desconstruindo com a finalidade de produzir um efeito visual novo, suficiente para perturbar o espectador.
Para Odires, `a apropriação de imagens e sua livre reconstrução, fundamentam, aqui, a reversão da temporalidade, foro particular onde os grandes temas da nossa arte contemporânea se desenvolvem. A subjacência da linguagem fotográfica convencional é resgatada e ampliada numa renovada configuração de sentidos`. O foco do trabalho na série Cavo um fóssil repleto de anzóis, é justamente estudar os dois conjuntos de fotografias – o das esculturas clássicas e o dos retratos alemães – para buscar uma veracidade imaginária. Ele se aventurou nesse universo para descobrir as coincidências e os acasos nascidos do excesso de imagens impressas e veiculadas no século XX.
Odires Mlászhochegou à imagem final através da justaposição de duas imagens: uma proveniente das esculturas, e uma segunda imagem, a que vai destacar enfaticamente a vivacidade do olhar. O conjunto se apresenta harmônico, considerando a proporcionalidade e o posicionamento relativo dos elementos compositivos, mas a imagem, figurativa, de insólita beleza e enigmática ambigüidade se mostra num todo coerente, mas ao mesmo tempo, muito perturbadora.
Seu fascinante e minucioso trabalho de pesquisa vem da experiência de buscar raridades nos sebos da cidade e também do acaso. Quantas vezes um livro não caiu da estante no exato momento em que Odires estava passando por ela. Isso foi decodificado como um sinal, um aviso de que o livro chegou até ele e que, portanto, deveria ser adquirido para ganhar nova trajetória. E, na maioria das vezes, acabou propiciando um trabalho interessante. Para ele, essas imagens abandonadas significam uma ruptura em suas histórias e cabe a ele construir um novo percurso visual para retorná-las ao mundo contemporâneo.
Odires tem a paixão do experimentador e seu percurso traz o tormento daqueles que ousam diante da eterna obsessão de criar o novo. Sua imagem como manifestação plástica revela um simulacro figurativo da a fotografia e deixa explícita a construção fotográfica.
Um trabalho que invade a nossa racionalidade atenta e destrói qualquer análise, pois não se pode negar sua existência fotográfica, nem mesmo fugir ao fascínio de seu forte apelo dramático. Mas, as evidências enganam quase sempre, pois percebemos, em sua concisão narrativa, que ele sabe retirar a energia de outras imagens pela depuração de todo e qualquer excesso. Odires conduziu essa compactação visual a uma pureza lírica desconcertante.
A idéia de trabalhar por apropriação de imagens, que após sua intervenção ganha outra autoria, não é nova. Um dos itens discutidos pelo crítico alemão Muller-Pohle, no texto já destacado no Capítulo 4, é exatamente esse, `no sentido de reciclar ou revitalizar a informação consumida`.
Ele denomina esse processo de `interferência no refugo`(Abfall), ou seja, uma reintegração do refugo informativo no ciclo da comunicação. Na mesma direção , temos o teórico e pesquisador também alemão, Joachim Schmid, que acredita não ser mais necessário fotografar. A torre Eiffel, a Estátua da Liberdade,
o Big Bem, o Masp na Avenida Paulista, entre muitos outros, já foram suficientemente fotografados e documentados, assim como os casamentos, os batizados, festas familiares, também, o foram. Para ele, `o que nos falta mesmo é uma outra visão das imagens existentes e uma nova maneira de lidar com elas. Precisamos de uma ordem das imagens.
E é exatamente isso o que faz Odires Mlászho, que aliás, resiste ser à idéia de ser considerado fotógrafo, já que o mundo visível, ou melhor, sua matriz, só pode ser fotografada após a execução de sua construção estudada e pré-visualizada. Ele rompe com a produção indiscriminada de imagens e, por apropriação, inicia seu processo de criação. Seu trabalho é, exclusivamente, elaborado a partir de imagens abandonadas, ou seja, é criado após uma nova articulação daquelas imagens que estavam sem luz nos labirintos dos velhos sebos do centro da cidade. Para essa questão ele tem uma explicação:
´Eu trabalho com imagens que já se perderam, elas se desligaram por algum motivo que desconheço. Esses retratos de formatura, esses velhos álbuns familiares, esses livros antigos, tinham um corpo que cuidava delas; tinham um elo afetivo. O que me interessa saber é quando isso se rompe e elas vão parar nos lugares mais estranhos. A minha intervenção é de usá-las e adotá-las. Mas em troca disso, imponho uma condição: quero a sua alma. Quero alguma coisa em troca nesse jogo perverso. Meu interesse é colocar nesse trabalho que estava abandonado, esquecido, uma energia que seja capaz de fazê-lo circular novamente, com um outro apelo, com uma outra linguagem. Elas estariam congeladas naquele tempo e mofando em algum lugar, mas eu devolvo a elas o meu tempo; concedo a sua volta numa nova trajetória. Eu as devolvo à sociedade em forma de arte`.
Outra série de bastante repercussão em sua trajetória foi Mapas Plasmáticos na Escuridão, em que utiliza imagens dos pensadores clássicos da filosofia e da música erudita retiradas de um único livro do início do século passado. A imagem fotográfica criada por Odires tem, como vimos, uma preocupação em desmascarar a função anterior e criar outra máscara, explicitada pelo procedimento do artista que se sobrepõe á expressão do próprio personagem. Sempre com máscaras, porque é através delas que, eventualmente pode se revelar alguma verdade.
Nessa série, Odires vê nesses homens criativos e inquietos com muitas cicatrizes, a produção de uma obra que aliviou as feridas de suas existências. Então, a partir dessa constatação, ele inicia seu trabalho de intervenção, como se fosse um cirurgião. Em sua mesa de trabalho, branca, onde repousam os retratos que sofrerão interferências, espalham-se tesouras, estiletes, lentes de aumento, réguas, compassos, objetos perfurantes, como se fosse a metáfora de uma mesa cirúrgica. As imagens perdidas nos livros são seus pacientes que serão anestesiados e novamente serão feridos. Através de seu trabalho ele recupera as imagens e os personagens, tentando devolver-lhes á sua condição precária e humana de pessoas comuns.
Novamente o procedimento é simples. Após cuidadosa seleção das imagens, é de posse dos retratos isolados, desprendidos do objeto livro e livres da encadernação, Odires após a limpeza e o tratamento da superfície, refotografas-as acrescentando um chumaço de algodão sobre a face criando uma situação muito peculiar. Além de não ser fácil sua identificação, fica o mistério que ilumina os pensamentos dos espectadores e alarga os critérios entre o desconhecido original que foi apropriado e sua interioridade, até então intocados.
Odires Mlászho vem surpreendendo a cada nova etapa do seu desenvolvimento através de um inesgotável repertório de trabalhos e idéias, no qual a fotografia surge como a mola propulsora dos seus questionamentos e das suas experiências. Seu principal objetivo é reconstruir imagens através de uma dinâmica que pressupõe apropriação e intervenção, para modificá-las e recolocá-las em circulação, estimulando a leitura pelo estranhamento e apontando para um fazer fotográfico consciente, que se constitui numa articulação simples, porém intensificada pelo acréscimo de elementos externos, que amplificam os conteúdos épicos e líricos das suas imagens.
Depois de outras séries – Que a terra lhe seja leve, Retratos Possuídos, Suor de Batismo e Medo, Circunavegação da Íris Bruta, entre outras – vamos destacar a última. Antecâmara da Máscara, por sua simplicidade e por seu efeito avassalador em termos de imagem fotográfica. O procedimento é similar aos outros. A partir de uma coleção de retratos publicitários de lindas mulheres publicadas numa revista estrangeira dos anos setenta, num longo ensaio sobre beleza. Odires inicia uma nova intervenção, agora química, branqueando os olhos e retirando deles toda expressividade que ofereciam ao retrato. Após esse procedimento inicial, as modelos dos retratos se apresentam como cegas, ou melhor, ´desalmadas`, como ele faz questão de salientar.
A segunda etapa do procedimento lida com a casualidade, pois Odires pega um simples guardanapo, molha-o em algumas áreas, e cobre o rosto dessas mulheres. Existe um certo controle na áreas atingidas com o papel molhado, mas tanto a colocação como a absorção do papel formando `manchas` apontam para uma certa aleatoriedade. Este é, até agora, o trabalho mais performático de Odires, já que entra em ação algumas variáveis que não estão totalmente sobre controle, como por exemplo, área total de textura do guardanapo molhado, as eventuais dobras, entre outras. Outro dado interessante é que, ao contrário das outras séries, esta tem que ser fotografada imediatamente á ação do artista.
A frágil identidade dos retratos publicitários foram radicalmente alterados após o branqueamento químico. Depois do guardanapo molhado aplicado parcialmente na fotografia, cria-se uma imagem fantasmagórica que surpreende pela densidade excêntrica e pela exuberância visual. Um ensaio sobre `beleza e felicidade, duas das maiores obsessões culturais ao longo da história, que nas mãos de Odires ganha uma dimensão de ampliação dos limites do desconhecido, do imponderável, com acidentais surpresas trazidas pelo acaso do guardanapo molhado colocado sobre cada uma das imagens. O resultado é tão assustador que os retratos que mostravam belas mulheres, agora mostram máscaras mortuárias, pois o branqueamento químico dos olhos faz emergir figuras sombrias, texturizadas, numa expressão que rejeita os conteúdos óbvios e comprometidos com a imagem convencional.
Suas séries são, quase sempre, apresentadas em grandes ampliações fotográficas, e espantam pelo que são: imagens fantasmagóricas de personagens que estavam abandonados nas estantes labirínticas dos sebos do centro da cidade. Odires faz questão de articular suas metáforas a partir das sobras de uma cultura esquecida. Como um caçador de raridades nesses sebos, o explorador assume sua meta é dar nova vida aos seus escolhidos. Seguir a trilha dos procedimentos de Odires é dirigir o olhar do espectador para o sucessão das operações combinatórias que promove com a finalidade de enfatizar a idéia, parafraseando o poeta Fernando Pessoa, de que `o artista também é um fingidor`.
Esses e outros diferentes procedimentos dão á sua fotografia um olhar sem evidências, que traz a marca da difícil tarefa de identificar o imponderável. Ele pressupõe um distanciamento em seu trabalho que tem pelo menos dois aspectos: pode implicar tanto uma crítica á própria fotografia, como também uma certa postura diante das sensações mais imediatas e sensacionalistas do mundo visual contemporâneo.