I. PARÊNTESIS
Em março de 2000, o diretor Jean-Luc Godard concedeu uma entrevista ao periódico <Cahiers du Cinéma>[1], alguns meses após terminar de filmar <Éloge de l’amour>, cuja segunda metade foi realizada em vídeo digital. Tratava-se de um número especial da revista. A idéia era investigar como as recentes transformações tecnológicas, econômicas e sociais afetam a maneira de se fazer cinema hoje em dia. O diretor, que é normalmente relutante em conceder entrevistas, aceitou o convite mediante uma condição: que os entrevistadores lhe trouxessem uma cópia VHS do filme <O Iluminado>, de Stanley Kubrick.
O diálogo com Godard é difícil desde o primeiro round. Uma primeira tentativa de fazê-lo falar sobre - entre outras ‘grandes questões’ do cinema contemporâneo - a imagem digital, se há cinema fora do cinema, etc., é seguida de um golpe impiedoso: Vocês realmente se perguntam essas questões, ou é apenas para existir, para agradar, como na televisão? Os entrevistadores continuam, todavia, extremamente entusiasmados com a idéia de que um dos maiores experimentadores do cinema moderno esteja finalmente explorando as possibilidades abertas pelas novas tecnologias. Ele, que já explorou as possibilidades do cinema, do vídeo analógico, que inventou uma maneira totalmente original de se fazer filmes, estaria, enfim, mergulhando no admirável mundo novo da tecnologia digital. E eis que é lançada a pergunta:
O vídeo digital lhe interessa?
Claro, mas não vejo nenhuma razão porque deveríamos falar sobre isso.
II. A IMAGEM-TEMPO
Fazer uso de uma teoria do cinema para se falar de vídeo digital talvez seja um ato de corrupção, de ilegitimidade. Afinal, a vídeo arte já possui uma história própria, uma linhagem ‘não-linear’ que pode ser traçada desde a década de 60, e pode-se dizer que há praticamente um consenso entre teóricos da arte em classificá-la dentro do campo das artes visuais. O que não quer dizer, naturalmente, que os diálogos da vídeo arte com o cinema não sejam frequentes e prolíficos, como nos célebres trabalhos de artistas como Douglas Gordon, Pierre Huygue, entre outros. No campo do cinema, as coisas tornam-se um pouco mais complicadas. Parte indústria de entretenimento, parte experimentação, às vezes o produto ‘filme’ é escorregadio demais para se adequar a qualquer tipo de classificação.
A minha intenção aqui é deixar de lado, por enquanto, as especificidades de cada meio e olhar para a imagem em movimento e a maneira como ela é apreendida. A sugestão é de que o que se faz visível, não apenas no Beijo, como também no corpo da obra de Leandro Lima e Gisela Motta, encontra algumas ressonâncias com as escritas sobre cinema do filósofo Gilles Deleuze em Cinema 2. Partindo da ontologia das imagens proposta por Henri Bergson, principalmente em Matéria e Memória, Deleuze argumenta que no cinema pós-guerra (o primeiro volume Cinema 1, é dedicado ao cinema pré-guerra) ocorre uma inversão do esquema sensório-motor do cinema clássico, onde o tempo era subordinado ao movimento. O cinema clássico é caracterizado pela imagem-movimento, uma imagem que está sempre ligada à ação e portanto necessariamente ligada à uma representação indireta do tempo. O cinema moderno, por sua vez, realiza sua capacidade de fazer visíveis relações temporais que só se tornam visíveis por meio da criação de imagens. É o que Deleuze chama de ‘situações puramente óticas e sonoras’.
Segundo o autor, a segunda guerra mundial é o fator determinante dessa quebra pois ‘causou um aumento considerável de situações a que não sabiámos mais como reagir, de espaços que não sabiámos mais descrever. Eram ‘espaços quaisquer’, desertos porém habitados, galpões abandonados, ruínas, cidades sendo demolidas ou reconstruídas. E nesses ‘espaços quaisquer’ uma nova raça de personagens estava se constituindo, um tipo de mutante: eles viam ao invés de agir, eles eram observardores.’[2] O que acontece quando os personagens não sabem mais agir e se tornam eles próprios observadores é o colapso da imagem-ação do cinema clássico. Mas se a ação perde sua posição central, algo vem tomar seu lugar. E essa é a grande inversão proposta por Deleuze: é o tempo, tempo em seu estado puro, que domina o cinema moderno.
III. O CORPO COMO REVELADOR DO TEMPO
Uma das estratégias do cinema moderno: ‘Às vezes é necessário fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, fazer a imagem rarefeita ao suprimir muitas coisas que foram adicionadas para nos fazer crer que estamos vendo tudo. É necessário fazer uma divisão ou fazer o vazio para se encontrar o todo de novo’[3].
Não há som. Há silêncio. Não há cortes ou enquadramentos diferentes. Há a modulação da imagem, uma modulação incessante da substância orgânica que passa pelos dois corpos e faz com que eles se encontrem no limite imposto pela arquitetura.
Os corpos de O Beijo não são os primeiros corpos no trabalho de Leandro Lima e Gisela Motta. Aqui eles são quase estáticos, imersos num fluxo incessante, como se estivessem inconscientes. Em outros trabalhos, se movem, mas são movimentos banais e repetitivos que não visam completar nenhuma tarefa específica e tampouco nos oferecem uma entrada narrativa na imagem em movimento.
‘Dê-me um corpo então: esta é a fórmula da inversão filosófica. O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo, aquilo que (o pensamento) tem que superar para alcançar o pensar. É, ao contrário, aquilo em que mergulha, ou em que deve mergulhar, para alcançar o não-pensamento, ou seja, a vida’.[4] Segundo Deleuze, essa é a situação do corpo no cinema moderno: (o corpo) não como entidade pensante, mas como aquilo que nos faz pensar sobre o que não pertence ao domínio do intelecto por meio de suas posturas e atitudes. Espera e cansaço, no caso de Antonioni; ou o espaço desconexo que se torna reconectado pelas atitudes dos corpos em Cassavetes.
Que tipo de posturas expressam, então, os corpos de Lima e Motta? Parece-me que um tema recorrente em muitos trabalhos é a incapacidade de agir que, de alguma maneira, atualiza o esquema deleuziano do cinema moderno. O loop, recorrente em muitas (ou em todas?) das obras não se trata aqui apenas de um recurso técnico – é um elemento fundamental na construção da atitude dos corpos. Porque esses corpos não só não conseguem agir – ou quando agem sua ação é mínima – como também parecem estar presos dentro de um espaço e tempo intransponíveis.
Assim como em Deleuze ‘a própria imagem é o sistema de relações entre seus elementos, ou seja, um conjunto de relações temporais cuja variável apresenta apenas fluxos’, em alguns casos o próprio corpo é o sistema de relações entre seus elementos cuja variável apresenta apenas fluxos temporais. São movimentos inerentes ao corpo e não ao intelecto: a pulsação de uma respiração ou da circulação de fluidos. É como se a modulação muitas vezes imperceptível, o movimento microscópico e constante da vida, se fizesse finalmente visível – um revelador do tempo.
IV.ARTIFÍCIO E NATUREZA
Eu gostaria de sugerir, entretanto, que a incapacidade de ação do corpo na obra de Lima e Motta não se limita apenas à capacidade de tornar visíveis certas relações temporais, como na tese de Deleuze. Há um outro elemento recorrente cuja importância não pode ser ignorada. Para tanto, se faz necessário retomar a questão da imagem digital, porque o que se faz visível nesse caso é possível apenas por meio da manipulação digital da imagem. O mau humor de Godard é compreensível: não é o meio que determina a capacidade criativa de um artista. Mas aqui, a imagem digital não serve como uma mera demonstração de inovações tecnológicas: ela é central na criação das atitudes dos corpos.
Em O Beijo, a temporalidade é expressa pelo movimento molecular da natureza, mas de uma natureza construída artificialmente. O corpo, ainda que capturado pela câmera, é único elemento verdadeiramente natural. A ‘natureza’ que o envolve, contudo, é resultado de uma imagem manipulada e, embora este seja um trabalho mais otimista que os passados, os corpos nunca se tocam e consequentemente o beijo nunca acontece. Há mais uma vez a idéia de aprisionamento, que talvez seja o resultado de uma incapacidade de se equacionar o natural e o artificial num ambiente construído, em que o corpo não sabe mais como agir.
Essa tensão e ansiedade emergem da insistência destes corpos em estarem ‘incorporados’ num ambiente construído, diante do qual não sabem como agir, ou não conseguem agir, ou buscam descobrir uma nova postura dentro da sociedade contemporânea da informação.
Se, de acordo com Deleuze, ‘o cinema não nos dá a presença do corpo, e não pode nos dá-la, é talvez porque seu objetivo seja diferente; ele espalha uma ‘noite experimental’ ou um espaço branco sobre nós; trabalha com ‘sementes dançantes’ e uma ‘poeira luminosa’; afeta o visível com uma perturbação fundamental, e o mundo com uma suspensão que contradiz toda a perpcepção natural. O que produz dessa maneira é a gênese de um ‘corpo desconhecido’ que temos no fundo de nossa mente, como o impensado no pensamento, o nascimento do visível que ainda está escondido da visão’[5]. Da mesma forma, o trabalho de Lima e Motta nos mostra um ‘corpo desconhecido’ cuja gênese está ligada a imagem digital, fazendo visível um processo que hoje em dia passa por uma aceleração cada vez maior. Nesse ponto, já não estamos mais no cinema moderno, mas em algum outro lugar em que um novo tipo de imagem está se formando.
[1] Interview republished on Jean-Luc Godard, The Future(s) of Film, Three Interviews 2000/1. Bern: Verlag Gachnang & Springer AG, 2002.
[2] Deleuze, Gilles. Cinema 2: The time-image. London: The Athlone Press, 1989. Preface.
[3] Révélateur
[4] p.21, op cit.
[5] p.189, op cit. Deleuze contends that the reversal that took place in cinema repeats the experience of an inversion that happened over several centuries in philosophy, that is, the subordination of time to movement has been reverted.
[6] p.201, op cit.
* Kiki Mazzucchelli is an independent critic and curator who is currently pursuing a PhD at Goldsmiths College.
[1]Entrevista reproduzida em Jean-Luc Godard, The Future(s) of Film, Three Interviews 2000/1, Bern: Verlag Gachnang & Springer AG, 2002.
[2]Deleuze, Gilles. Cinema 2: The time-image. London: The Athlone Press, 1989. Prefácio.
[3]Idem, p.21.
[4]Idem, p.189. Deleuze defende a idéia de que a inversão ocorrida no cinema repete a experiência de uma inversão que ocorreu na filosofia durante séculos, ou seja, a subordinação do tempo ao movimento foi invertida.
Em Passei-o, Leandro Lima e Gisela Motta fazem uso do vídeo para a criação de um trabalho sensível, que dialoga tanto com a história das imagens, da pintura ao cinema, quanto com o tema da memória. As imagens nos são apresentadas como um(a) vídeo-pintura, na qual a pele dos vagões serve como tela de projeção das imagens do percurso daquele mesmo trem. Paisagens surgem e são rapidamente fundidas a imagens de outros trajetos. O ritmo é intenso e dura breves instantes, desaparecendo quando a composição mergulha no extracampo.
Nos momentos em que contemplamos aquela bela visão, somos convidados a vivenciar a memória de um percurso, como se aquele trem nos dissesse: "Essa é a paisagem/lembrança que carrego comigo, impregnada no meu aço". Em Passei-o, os vagões – objetos pesados – se tornam suporte para algo quase inefável, transitório como nossas vidas e as lembranças que delas carregamos: a imagem como memória e a memória como imagem.
A presença dos trens na história das imagens é conhecida: artistas de várias nacionalidades, como o inglês Turner, o francês Monet e o greco-italiano De Chirico fizeram dos trens tema de suas pinturas, inspirados naqueles volumes de metal envoltos pela fumaça e pelo vapor. As pinturas de De Chirico são aquelas que estabelecessem uma maior ligação com Passei-o: nelas os trens viajam através de ambientes nos quais a memória – onírica, difusa e carregada de melancolia – parece reverberar trajetos há muito acontecidos.
Não foi por mero acaso que a primeira exibição pública de um filme tenha sido a chegada de um trem em uma estação: as imagens que tanto assombraram as platéias da época eram resultado do encontro de duas máquinas, encarando-se na especificidade de suas funções próprias.
O Estado bolchevique lançou mão dos trens: os legendários kino-poezd – os kino-trens – idealizados por Alexandre Medvedkine. Os cinegrafistas documentavam o cotidiano dos trabalhadores e projetavam para eles o que haviam filmado, para superpor as imagens de um passado recente à realidade do momento: os kino-trens eram também trens da memória.
No filme dos irmãos Lumière e nos kino-trens a imagem, sua captura e sua projeção estavam impregnados do sentido da memória que perpassa o tempo e suas reverberações atingem nossas mentes e corações quando assistimos ao vídeo Passei-o. Como em um palimpsesto, as imagens desse vídeo se superpõem às fugidias lembranças de paisagens observadas durante as nossas próprias viagens de trem, nos fazem refletir sobre nós mesmos – seres construídos sobre alicerces mnemônicos – e nos lembram que, como aquele trem, um dia mergulharemos no extracampo do esquecimento.
* Versão condensada do texto presente na tese: O homem seu olhar holoscópico e seus naói" no Programa de Pós-Graduação em Linguagens Visuais da EBA/UFRJ, cuja defesa será em março de 2007.
1. Lisas, limpas, concisas. Portadoras de inegável apuro técnico e formal, as imagens criadas por Leandro Lima e Gisela Motta enganam: sua ambigüidade não se deixa apreender de imediato, protegida pela aparente transparência. Mas há algo ali, um incômodo que permanece: rumor de fundo, estremecimento sutil.
2. A menina balança (“Sem título #4”, 1999). Uma imagem banal, repetitiva em sua ingenuidade. Imagem-clichê: vai-e-vem, tantas vezes vista e revista. Há, contudo, algo de estranho nessa que nos parece uma cena tão familiar. Algo que se produz por deslocamentos mínimos: as cores saturadas, a paisagem artificializada, a menina abstraída. O enquadramento enviesado, o olhar convexo.
E ali, nesse intervalo “entre” o que, minimamente, se deslocou, o mundo se torna intensa e estranhamente outro. O balanço, a paisagem, o movimento, a câmera, o olhar: do clichê à vertigem, tudo parece se soltar dos eixos.
3. Se a cor verde é a mais verde que existe (Leminski), o que dizer desse verde impossível? (“Verde.dxf”, Lima, 2004) Quando se estampa artificialmente na grama, o paradoxo se instala: a cor é tão verde que esse mundo não pode ser o nosso!
E esse azul, mais azul que o próprio azul? Geometricamente dividido em dois: o mar, o céu, a linha branca. Azul horizontal. Se “Klein blue” - a “marca registrada” de Yves Klein - é o azul matérico da tinta, do corpo e da performance, e se, antes, o azul dos céus de Magritte era propositadamente rarefeito, estilizado, onírico, esse “Azul.dxf” (Lima, 1998/2002) é pura síntese: parece só existir como combinatória de dígitos.
O verde, o azul, o vermelho, o amarelo compõem, nas fotografias, vídeos e instalações de Leandro e Gisela, uma paisagem sintética. Paisagem ambígua: tão semelhante e, ao mesmo tempo, tão distante do mundo natural.
4. A água é uma constante (“Analógico #2”, 1998; “Sem título #5”, 2002). Flui e reflui, soa e ressoa. Mas a sua fluidez está aprisionada em um loop ininterrupto. Aqui também o ambiente é sintético, como a água dos laboratórios (que antes faziam parte apenas da ficção e hoje povoam o noticiário cotidiano), onde se sintetiza todo tipo de matéria-prima, onde se cria e se duplica o orgânico.
5. Ou em “Analógico #3” (Lima, 1998), a água eletrônica da piscina de pixels. Não é essa a nossa situação entre as imagens? Deriva, imersão, mergulho, “Afogamento” (Motta, 2003). Experiência sensorial, mais do que meramente visual.
6. Na obra de Leandro e Gisela, o loop se torna estratégia poética: econômico, automático, circular, impede à imagem remeter-se ao passado ou se suceder em uma imagem futura. Em loop, a imagem não pode narrar nem prever. Apenas se mostra, exibe seu automatismo. Como se a máquina do mundo houvesse emperrado, incapaz de processar novas experiências.
Mas se o loop é repetição, a diferença se produz no encontro entre o pensamento e a obra. A imagem não pára de se repetir, mas o pensamento de quem olha flui incessantemente. E o círculo se torna elipse, já que, a cada repetição, a imagem já não é a mesma, quando encontra outro e outro pensamento. Como no clássico rio de Heráclito, em que a água na qual entramos, sempre a mesma e sempre outra.
7. A paisagem é natural, a cena simples, transparente: algumas pessoas passeiam entre as árvores de um bosque (“Que é de?”, 2003). Mas, como em Magritte (“Carte blanche”, 1965), esse “entre” se torna interstício em que os seres desaparecem. Entre: interface, espaço de passagem. Como se a realidade estivesse repleta de cortes, através do quais os seres pudessem atravessar para outros domínios, invisíveis, desconhecidos, fantásticos.
Mas se, em Magritte, a paisagem é intensa e intencionalmente onírica, surreal, o bosque de Leandro e Gisela mantém-se em uma zona limítrofe, na fronteira entre banalidade e fabulação, entre realidade ordinária e imaginário.
O dispositivo criado para a instalação torna a obra ainda mais ambígua: a imagem só aparece projetada sobre a sombra dos visitantes. Um jogo complexo de aparição e desaparição, de trânsito e passagem entre mundos, entre universos visíveis e invisíveis.
8. Retira-se o bosque e as pessoas continuam passando. Em outra obra (“Marrom”, 2002), tão simples quanto desconcertante, os visitantes são filmados enquanto percorrem a exposição (“agora os objetos me percebem”, diria Paul Klee). Na projeção, eles passam de um lado para o outro, mas não há cenário. Aquele pode ser qualquer lugar: uma exposição? Um shopping center? O estúdio onde se grava um anúncio para a TV? A sobreposição das pessoas em chroma key torna a cena ainda mais “fake”.
Já não é preciso fazer cortes na paisagem, pois ela foi abstraída: da imagem como lugar de passagem à imagem como não-lugar. Ou lugar nenhum.
9. O que se espera de um corpo? Que ele viva. O que se espera de uma performance? Que ela aconteça. Nas (quase ou anti) performances de Leandro e Gisela (“Sem título #1, #2, #3”), o corpo simplesmente não responde. Ou, quando o faz, é tomado por um incômodo automatismo (ou seria autismo?). Corpo autômato, corpo estranho. Corpo em loop.
10. Ou corpo de pernas pro ar (“Interlúdio”, 2003), deitado sobre a própria carapaça, impossibilitado de se virar (como não pensar em Gregor Samsa?).
11. Estranho esse mundo criado por Gisela e Leandro: desconcertante, fantástico, paradoxal. Ecos de um surrealismo revisitado? Pouco provável. Afinal, há muito o que poderia ser surreal foi superado pelo próprio real.
O que essas obras sugerem vai além disso: esse estranho é o nosso mundo. Tornado artifício, síntese, simulação, ele parece, definitivamente, ter entrado em loop.
Ao artista (e não só ao artista) cabe rasgar, cortar, abrir passagens: fazer do natural e do artificial, do orgânico e do sintético, do vivo e do não-vivo universos híbridos, permeáveis.
12. Como uma flor de lótus (e dígitos) nascendo e renascendo da pele (“Lótus”, Lima, 2003).
(07/2004)
Galeria Vermelho e vizinhança
abril de 2008 a abril de 2009
Unidade Provisória pressupõe obras, realizadas por artistas convidados, que atuem como dispositivo re-estruturador do espaço. Arte e Arquitetura como corpos indissociáveis, imbricados de tal modo em suas materialidades e poéticas que configurem unidades. Um, formado por dois, por uma adição, um e outro, onde a fissura da alteridade permite a conexão e a re-invenção do espaço ocupado. Arte e Arquitetura em mútua contaminação.
O projeto prevê tempo e espaço variáveis. No tempo: uma obra pode ocorrer por um dia, um mês ou durante o ano do projeto. No espaço: pode ocupar uma sala expositiva, um território de passagem, um espaço da cidade nas proximidades da galeria, ou simultaneamente espaços distintos. As obras podem ocorrer isoladamente, em grupos ou mesmo participando de uma exposição e ser também parte desse projeto. A irregularidade tempo-espaço é traço constitutivo dessa premissa.
O reconhecimento da Unidade Provisória se dará através da peculiaridade entre arte a arquitetura confirmada por uma notação gráfica. Ao fim do processo essas notações serão agrupadas como um mapeamento da ocupação.
Proposto por: Marta Bogéa
Notação gráfica: Paula Tinoco
Unidade Provisória 01: Uma e três casas [projeção e prospecção], Carla Zaccagnini [1 a 26 de abril 2008]
Unidade Provisória 02: Sob Controle I Do Not I Cigarras, Leandro Lima e Gisela Motta [10 de março a 04 de abril 2009]
Sob controle I Do Not I Cigarras
Uma algazarra de Cigarras, intermitente, permeia o território de aproximação da Vermelho. Quase imperceptíveis à distância, os buzzers instalados transformam a “vista” arquitetônica, elemento de transição entre interior e exterior habitualmente lido como um plano de visibilidade, numa soleira simbólica. A presença sonora da fachada remete a memória das ocupações nas quais a pele da arquitetura se transforma em territórios de transição. Lembram a algazarra dos pássaros em gaiolas nas varandas ou o cheiro do jasmim que transforma o campo fronteiriço da fachada ampliando-o num campo de travessia simbólico. Aqui trazem a intermitência e o desconcerto de um som aferido “fora de lugar”. Ruído persistente que mesmo ao perder a fachada de vista, ao nos afastarmos dela no movimento de saída, se mantém não mais como “vista” arquitetônica, mas sim na forma de uma “soleira audível” num campo expandido.
Na sala 2 Sob Controle e Do Not reincidem sobre o procedimento: implicam em movimento do corpo no espaço para serem apreendidas. Do Not é uma série com fotografias em baixa definição que invertem o procedimento habitual de irmos ao encontro da imagem para assegurar legibilidade. A leitura nesse caso está garantida à distância. À medida que o corpo se aproxima da obra a imagem se transforma e se “perde” numa abstração geométrica. Sob controle é um vídeo no qual os pequenos oficiais perseguem com o movimento de seus corpos o deslocamento do observador dentro do espaço expositivo.
As duas obras alteram as premissas iniciais da relação obra/espaço dentro dos códigos habituais dos suportes da fotografia e do vídeo. O domínio da fotografia e dos filmes em geral aponta para um ponto de vista ideal. Uma vez encontrado é de lá que melhor se vê a obra. A posição do corpo não altera, em princípio, a informação recebida. São obras que se organizam no plano bidimensional e, mesmo quando aponta para fora, inserindo um campo para além da obra, como na pintura As Meninas (Diego Velásquez, 1656), o faz sem considerar a posição do corpo que vê a imagem. O ponto de observação não altera significativamente a apreensão.
Aqui reside um significativo deslocamento nas três obras propostas por Gisela Motta e Leandro Lima. Essas obras, ocorridas no plano, se organizam pelo movimento dos corpos no espaço. E, nessa medida, ao se ativarem ativam o território que as recebe, revelando sua presença. Obras nas quais o corpo do visitante configura no espaço uma espécie de dança não prevista na qual o visitante re-elabora a percepção da obra. Apoiadas na pele da arquitetura, será então no significativo vazio - elemento intangível, fundamental na constituição dos espaços - que a apreensão desses trabalhos ocorrerá.
Ainda que nesta mostra inúmeras imagens, assim como o seu título, pareçam indicar uma situação de confinamento - consequência de condições extremas de vigilância e documentação - a articulação metafórica em que elas se comunicam abre caminho para leituras de outra ordem, que contradizem a unidirecionalidade programática e que, inclusive, dialogam com essa possibilidade.
O trabalho que abre essa via é a vídeo-instalação Amoahiki, peça em que a visão da natureza, em uma de suas mais contundentes expressões (a selva), e a do ser humano, em uma de suas mais despojadas interpretações (o primitivo), se fundem na conformação de um único e inseparável espírito, quer dizer, em uma relação vital de exata interdependência. A referência que esta obra salienta, em meio ao tom paisagístico com que o canto das cigarras-alarme abre a exposição, adverte claramente à necessidade tanto de comunicar como de se associar a um mundo eminentemente natural às proposições sociais que surjam para seu benefício e desenvolvimento.
Daí, o confronto entre os chamativos desenhos urbanos das plantas de dez cidades – selecionadas a partir do Google Earth e posteriormente convertidas em um circuito impresso – com o latejo que representa Amoahiki. Esse enfrentamento faz dialogar duas formas de imprimir e gravar o mundo; uma mais embasada que a outra, porém igualmente válidas e necessárias.
Habitar o mundo implicoumarcá-lo, apropriá-lo, transformá-lo e dominá-lo progressivamente. Primeiro, através dos vestígios dos passos e dos movimentos físicos, além das intervenções manuais e, posteriormente, na medida em que a racionalização abriu caminho, por meio de uma cadeia de abstrações de crescente complicação, problema que ao mesmo tempo comportou graves deteriorações ao planeta e aos seres que o povoam, mas também, importantes mudanças e desenvolvimentospara seu benefício.
Por essa última razão, as sociedades tornaram-se autônomas em relação ao seu entorno e a partir dessa distância geraram também estratégias de controle para si mesmas e para a natureza, sem,no entanto,atender à sua lógica, o que teve como consequência o inevitável extravio. Entre a crescente confusão e em meio ao aumento veloz de sistemas científicos e tecnológicos, a desconexão dos fundamentos fez sentir seu significado na medida em que o rumo ao destino desejável dentro das sofisticadas edificações se tornou turvo e complicado.
A saída – Exit – ou a solução – Eject –, tal como se entende na metáfora criada pela dupla Lima-Motta, não se acha entre os vértices de construções fechadas. A alternativa a essa catástrofe é oferecida pela compreensão das distorções que tem acarretado tantos erros de percepção. Daí, que tanto Exit quanto Eject se apresentam nesta exposição como textos inapreensíveis, como formas não concretas, como um reflexo lançado por dispositivos de precisão – Exit – ou como um código – Eject – cuja leitura se faz possível unicamente se observados desde um ponto de vista preciso. Fora deste lugar, a proposição desaparece.
Tal proposição é expressa em Sob Controle, obra que a exposição toma o nome. Devido a um jogo criado na comunicação entre uma câmera e um vídeo, programado num computador, o espectador que se posicione frente à obra tem a impressão de estar sempre sob a vigilância do exército de homens que ali se projetam. Eles seguem as posições e o olhar do espectador não o abandonam enquanto ele opera com o sistema.
Na realidade, assim como Exit e Eject constituem ilusões perceptivas, em Sob Controle o jogo funciona ao revés da primeira interpretação que faz o espectador: é o observador quem dirige o jogo. É a sua posição que gera as possibilidades que podem ativar os dispositivos e, portanto, é a sua interpretação que impulsiona a adaptação. A partir desta compreensão nasce uma metáfora contrária à esperada ou à mais simplista. Se entende-se que é sempre o sistema natural, ou o vivo, que gera adaptações ao programa, a lógica da crítica se inverte e nasce, desta forma, uma versão distinta, mais ampla e mais flexível da noção de controle.
O controle é um modelo sem o qual não vivem os sistemas, sejam esses naturais ou criados pelo homem. Concretamente, o controle é um assunto necessário e por essa razão, é preciso assimilá-lo também como matéria viva, e assim, oferecer progressiva acomodação às mudanças que geram os necessários movimentos. Não aceitá-lo assim, desqualifica de maneira reducionista passos indispensáveis dos processos e funda uma anarquia simplista, suspeita e acrítica, que também não tem saída, enquanto se desconheça o valor do paradoxo.
Como afirmam os dois artistas: quando se adverte que uma situação está sob controle, isso torna implícito que se ultrapassou um estado de caos ou que é isso o que se quer prevenir.
É essa a lógica que demonstrou o conhecimento satelital do planeta, o qual foi possível, em grande medida, devido aos mesmos desenvolvimentos tecnológicos que o deterioraram. Graças a sofisticados sistemas de registro e controle, atualmente a ciência exata sabe que o degelo dos glaciais em um ponto da terra, aumenta o nível e o volume de água em muitos outros, e que isso, por sua vez, repercute em incontáveis variações nas condições de vida, antes mesmo da manifestação dessas mudanças, em afecções geradas pela contaminação que, por sua vez, impulsionaram de certa forma a idéia de progresso.
É uma cadeia infinita de controles e descontroles observável de maneira mais completa na medida em que os mecanismos de registro ganharam maior precisão e possibilidades de distanciamento, e que, com acertado otimismo, se pretende como solução o controle da produção industrial ou da contaminação, entre muitos outros exemplos, para deter e redirecionar as consequências de algumas deteriorações. Apenas a corrente mais retrógrada e desinformada cientificamente entende a necessidade desse controle como retrocesso. Visões mais aguçadas e inventivas cientificamente assinalam outros caminhos de investigação e investimento de recursos na construção de novas soluções que não freiam o desenvolvimento.
Esse conhecimento deslocado da vida social ou política faz visível modelossemelhantes na acomodação e desacomodação dos sistemas gerados pela humanidade para apropriar e controlar, tanto o mundo em que se habita como as reações naturais do homem que cada ajuste ou configuração desencadeia.
A compreensão do ser integrado ao seu entorno e a do entorno integrado ao ser, que propõe Amoahiki, assinala uma reflexão indispensável. Essa metáfora, inserida no meio da beleza de circuitos e desenhos que se apóiam no conhecimento técnico e investigativo em diversos campos, não recorrem a um revival primitivo ou a um pacifismo hippie como solução às problemáticas de violência geradas nas cidades, mas sim à compreensão do ser em uma situação, reflexão que tradicionalmente tem trabalhado a dupla Lima-Motta.
Nesta ocasião, tal reflexão enlaça dois mundos desconectados, ou seja, amplia o alcance de seu foco quando inclui os embasamentos esquecidos sobre os quais se desempenham de todas as maneiras os sistemas de que dependemos e que, por sua vez, nos confinaram e escravizaram. Essa visão ampliada abre uma infinidade de relações das quais se pode redesenhar a única saída possível para qualquer submissão:a compreensão de que são os mecanismos vivos os que geram as formas e a maneira de controlá-las, conforme suas necessidade e vantagens que esperam do mundo. Porquanto, são os mesmo mecanismos vivos os únicos habilitados para reorientá-las.
O ser e seu meio ambiente não deixarão de ser um só espírito, não obstante o meio ambiente seja controlado e habitado por artifícios. O ser tampouco deixará de ser por exercer sua capacidade criativa no espaço que ocupa. Pelo contrário, encontra maior desenvoltura de sua natureza na medida em que desenvolve a criatividade. Também é claro que o maior desenvolvimento das possibilidades de observação, maiores implicações compreende a visão e, dessa forma, mais significativas são as metas do trabalho, da criação e da interpretação.
(03/2008)
(11/2005)
A tecnologia é a resposta, mas qual é a pergunta?A questão levantada pelo arquiteto Cedric Price torna-se talvez ainda mais relevante hoje, quando gerações que cresceram entre os mais diversos aparatos digitais, passam a expressar visualmente vários aspectos da experiência contemporânea.
Os vídeos, fotografias e performances de Leandro Lima e Gisela Motta guardam uma certa afinidade com diferentes trabalhos em variados meios, como Windowlicker, de Chris Cunningham, as canções de Vespertine, de Björk ou The Body Artist, de Don DeLillo. São obras que expressam a tensão que se faz presente na transição do espaço físico para o espaço digital e vice-versa.
O embate insolúvel entre natureza e artifício produz, no trabalho de Motta & Lima, um conjunto de imagens cuja estranheza fascinante e perturbadora exprime novos parâmetros de temporalidade e espacialidade.
(10/2008)
SIMULAÇÕES DA EXCEÇÃO
NOTAS DE UM “ESPECTADOR IDEAL"
O presente texto é fruto do trabalho de acompanhamento, como curador, do processo de criação de obras pelos artistas Leandro Lima & Gisela Motta para a exposição itinerante do Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça, de Fevereiro de 2007 a Junho de 2008. Mas antes de entrarmos no assunto, convém assinalar a partir de que perspectiva ele foi concebido e escrito. Vale dizer: começar pela inscrição do curador (a partir da própria configuração da concepção do prêmio) num determinado ponto de vista que afeta diretamente a sua atuação. É que quem acompanha sistematicamente por um determinado tempo a evolução da criação dos trabalhos se transforma numa espécie de “espectador ideal”. Não no sentido de que é ideal porque seria o melhor de todos, mas sim porque, por um lado ele pode aceder literalmente ao work in progress, e por outro, porque acaba ocupando idealmente o lugar daquele espectador que pode dialogar francamente com o artista e assim, incorporar-se no próprio processo da criação, uma vez que seu feed-back também será integrado como “material” na elaboração. Assim, o “espectador ideal” é o espectador comum trazido para dentro da fatura da obra como mais uma variável da complexidade que ela mobiliza e expressa. As notas que se seguem devem, portanto, ser lidas como reflexões da visão desse espectador, em sucessivas e progressivas aproximações.
Primeira aproximação – 8 de Fevereiro de 2007.
Um dos traços básicos da produção de Leandro Lima & Gisela Motta é a criação de situações singulares que se dão a ver através de imagens ou de um jogo entre imagens cujo caráter insólito, enigmático ou, no dizer de Kiki Mazzucchelli, “estranho”, interpela o espectador e o leva a se envolver com o acontecimento. Mas na maioria das vezes a situação criada não se limita a uma projeção que o observador assiste, porque muitas vezes, ou este é atraído para dentro de uma imagem tridimensional, ou então é a imagem que se desdobra no espaço expositivo, incluindo o espectador no campo de ação do acontecimento. Por isso, os trabalhos dos artistas são freqüentemente vídeo instalações ou instalações multimídia, resultam da criação de imagens e de espaço configurando situações - que podem ser naturais e/ou artificiais, reais e/ou simuladas, virtuais e/ou atuais, com preferência para um “estado fronteiriço” ou uma zona de passagem entre uma coisa e outra. “São obras que expressam a tensão que se faz presente na transição do espaço físico para o espaço digital e vice-versa”, escreve Mazzucchelli, no catálogo da exposição Au-delà du Copan, Supernatural Urbanism.[1] Assim, a primeira aproximação de seus trabalhos evidencia a necessidade de se explorar mais intensamente o estatuto das imagens em cada obra e a natureza dos espaços criados, a fim de identificar que potenciais eles contêm e de que modo as séries de obras poderiam balizar uma problemática que as atravessa.
De início parece obscuro para o crítico o móvel que desencadeia a produção; de todo modo, fica a convicção de que as obras não apelam para o intelecto do espectador, não tentam seduzi-lo, e muito menos procuram “discutir” o meio tecnológico empregado ou fazer da proeza técnica o seu ponto forte. Em poucas palavras: parece que Leandro & Gisela constroem situações dirigidas ao espectador, para nelas “instalá-lo” o mais diretamente possível, porque desejam que este as experimente. Trata-se, portanto, de uma experiência sensorial, mais do que meramente visual, numa situação em que tudo é sintético: o ambiente, a paisagem, a imagem, como tão bem assinalou André Brasil no texto “Poética do Loop[2]”.
Segunda aproximação – 20 de Abril de 2007.
Um esboço da exposição já se delineou. Com efeito, esta parece se concentrar em obras que problematizam a violência contemporânea, ao confrontarem sutilmente o espectador com armas ou imagens de armas que tornam visível e sensível um estado de coisas caracterizado pelos cientistas sociais como estado de emergência, ou de exceção. Como se Gisela e Leandro captassem um “clima” que se encontra bastante difuso porém não menos presente, no qual guerra urbana, terrorismo, campo de batalha e videogame insinuam a existência de um campo de conflitos multifacetado, no qual a realidade da simulação evoca insistentemente a sua contrapartida na atualidade. Assim, tudo é um jogo, tudo pode ser visto como uma brincadeira (até mesmo de humor negro!) – mas por trás da aparência inocente, ou melhor, na própria inocência com que a imagem da violência se apresenta, pulsa a iminência de um “passage à l’acte’, para ficarmos na terminologia freudiana.
Terceira aproximação – 19 de Setembro de 2007
Nessa oportunidade foram problematizados quatro trabalhos, que se encontravam em diferentes fases de sua execução, e considerados, tanto isoladamente, quanto em sua articulação conjunta. Verificou-se que nossa ambígua relação com um “estado de exceção permanente”, um estado de guerra não-declarada nem assumida, é o substrato comum a todos eles, na medida em que as situações criadas remetem o espectador para o caráter propriamente explosivo e/ou violento da condição contemporânea, muito embora essa violência apareça como que filtrada e des-realizada pela nossa convivência com as imagens e pelo modo como passamos, sem discernir, das imagens da realidade para a realidade das imagens. A essa altura, a vídeo instalação I.E.D. – Improvised Explosive Device, já estava praticamente pronta; armas.obj se encontrava em estado de elaboração material; a instalação multimída Alvo já ultrapassava a fase de conceituação; e Tanque na Cidade se esboçava como projeto para completar a série. Como se vê, a questão da guerra atravessava todos eles. Mas seria ainda o caso de apontar uma outra variante da mesma problemática: nessa época, Leandro & Gisela já trabalhavam na série Foreign Element, pois a vídeo instalação Enquadrado mostrava imagens de pessoas enquadradas pela polícia nas ruas, imagens que foram aplicadas, ou melhor, “instaladas” na paisagem de Helsinki para que se pudesse registrar a reação dos finlandeses a essa inserção em seu ambiente urbano.
Nesse momento, talvez porque a exposição já tivesse tomado forma, o curador pôde notar que, à medida que evoluía o acompanhamento, ocorria um aprofundamento da interlocução com os artistas. Como se uma confiança mútua e um melhor conhecimento do que está em jogo no trabalho de ambas as partes tivessem nos levado a uma liberdade crescente para abordarmos as implicações das mais diversas opções que surgem no processo de criação e de recepção. Foi então que pareceu ao crítico estar atuando como uma espécie de “espectador ideal” ao refletir e refratar questões conceituais, impressões, sensações, associações, “achados” e detalhes tecno-estéticos que vão sendo suscitados pelo próprio movimento de uma criação que vai se concretizando e tomando forma.
Quarta aproximação – 10 de Outubro de 2007.
De volta de Brasília, onde fomos visitar o Museu da República, primeiro espaço da exposição itinerante, ficou claro que o desafio agora era a questão da inserção dos trabalhos em cada mostra, de modo a maximizar a sua recepção, e o que poderia ser escrito para o catálogo. Ou seja, assim como a arte só pode se completar ao se oferecer ao público, também o trabalho do “espectador ideal” só pode chegar a bom termo com a explicitação do resultado de seu encontro com os artistas. Chegara, então, a fase de escrever sobre as obras.
Quinta aproximação – 12-13 de Junho de 2008.
Vamos a elas.
armas.obj A etiqueta que acompanha o trabalho explica: Arquivos de armas em 3D foram extraídos de videogames, impressos em papel e reconstruídos em tamanho real. Trata-se, portanto, de armas virtuais atualizadas, que saem da tela para o espaço tridimensional, que ganham “vida”, existência, como objetos. Simulações de armas que se apresentam como armas reais, que são reais sendo irreais, materiais sendo imateriais. Leandro & Gisela fazem a operação inversa à que estamos habituados, quando passamos do chamado mundo da vida (mas não no sentido habermasiano) para uma existência virtual. As armas são fantasticamente reais: armas.obj. Mas são, ao mesmo tempo, fantasmaticamente reais, porque expressam o imaginário dos jogadores tal como refletido pelas corporações que fabricam os games. Nesse sentido, constituem uma espécie de inventário das máquinas de matar que o mercado de armas produz e põe em circulação, e que são apropriados ambiguamente pela indústria do entertainment. Entretanto, é preciso não esquecer que essas imagens não estão mais no jogo, pois foram dele extraídas – para entrar em que outro jogo? Simplesmente no jogo estético de brincar de criminoso no mundo real, jogo perverso que só efetivamente se revela nas mãos de um colecionador capaz de possuí-las - armas.obj é uma obra que se constitui como arsenal colecionável.
Já sabemos, portanto, a quem ela está destinada e já conhecemos o seu caráter. Mas, ao mesmo tempo, nos damos conta de que armas.obj faz jogo duplo. Pois se por um lado pretende que as imagens sejam tomadas como coisas pelo seu possuidor, por outro, como que num outro tabuleiro, paralelo ao primeiro, não deixa de afirmar, incessantemente, que se trata de puro design, design de uma interação virtual-atual cuja finalidade foi planejada para capturar o espectador através da manipulação do potencial que ele tem de se tornar um fora-da-lei. É claro que esse segundo jogo se dá na dimensão da simulação. Nele, porém, quem dá as cartas, ou melhor, quem faz o jogo, ao contrário do que se poderia supor, não é o usuário, mas quem concebe e desenha as regras – as regras da experiência da interação. Portanto, armas.obj constroem e desconstroem nossa relação com as armas e com as armas.obj. Nesse passo, a imagem das armas, ponto central do trabalho, se afirma como a interface entre a concepção e o objeto, como operador de passagem de idéias, projetos, intenções, cálculos e projeções (no sentido designer-usuário) em troca de afetos, emoções, engajamento, comprometimento e também projeções... de outra natureza, evidentemente (no sentido inverso). Como se se tratasse de trocar cálculo por desejo, quantidade por qualidade, abstração por intensidade; em suma, economia política por economia libidinal.
O jogo é duplo, mas as armas também são duplas; não só porque são imagem e coisa, e sim porque são, ainda e simultaneamente, imagem e conceito. Fazendo o caminho inverso ao habitual no estabelecimento da relação virtual-atual, Leandro e Gisela nos trazem e expõem todo o jogo, a saber, todo o processo que vai da abstração à coisa, passando pela imagem. O que equivale a um armar-desarmar da percepção.
Talvez seja esse, mesmo, o sentido mais forte do trabalho dos artistas: uma espécie de constante experimentação do armar-desarmar da percepção pelas novas tecnologias digitais. O resultado buscado é, no mais das vezes, uma expressão poética, e até mesmo lírica, desse engatilhar-desengatilhar, como ocorre em Passei-o, tão bem analisada por José Wenceslau Caminha Aguiar Jr.[3], ou ainda, em Lótus # 1. Em cada um desses casos, os procedimentos são diferentes, mas o princípio é sempre o mesmo: a passagem pela imagem, isto é a sua própria configuração, pressupõe a ativação de um certo tipo de agenciamento que enlace o olhar, que o capture e que o submeta (seja tal submissão voluntária ou involuntária). Implicada no trabalho de Leandro & Gisela se encontra toda uma logística da percepção, não propriamente no sentido a ela conferido por Paul Virilio - pois para este, a logística da percepção é sempre regida pelo imperativo e pela dinâmica da guerra e da mobilização total -, mas sim no sentido de que ela também pode ser regida por outras dinâmicas: a do amor (O Beijo), do desejo (Lótus # 2), do trabalho (Demolidora, Transportadora e Construtora Ilimitada) e sobretudo pela dinâmica imanente do objeto técnico. Com efeito, neste último caso, importa explorar como o engate-desengate é articulado tanto no olho do espectador quanto no olho da câmera, mas também no monitor, no computador, no projetor e até nos cabos, em suma na máquina e no dispositivo tecnológico acionado. Voltando, porém, aos casos da série em que a logística da percepção remete diretamente à guerra: além dos trabalhos aqui analisados, o banner iRock para o Blog do Prêmio Sérgio Motta de Arte e Tecnologia foi um desdobramento de armas.obj numa nova direção. Inspirando-se nos anúncios típicos da publicidade da internet, os artistas substituíram as imagens originais por imagens de armas, projéteis justapostos a frases originais dos anúncios da Apple. O resultado é uma propaganda controversa, entre cínica e desaforada, que pirateia e desvia o investimento sobre um dos objetos de desejo mais mobilizadores da moçada, o iPod. “A idéia é a de um comercial anunciando produtos numa estética ‘apple’, onde todas as frases foram retiradas do próprio site da empresa e que, vendo sob esse ponto de vista, parecem terem sido criadas especificamente para esses produtos. São um tanto quanto ambíguas, esperançosas”, afirma Gisela no site do Prêmio.
I.E.D. Improvised Explosive Device- Nessa videoinstalação vê-se e ouve-se um coração que acelera, que se expande até a iminência da explosão, e depois desacelera. Trata-se, porém, da modulação de um movimento interno que, na realidade, não pode ser contido. Mas, paradoxo, a explosão nunca chega a estourar, a se realizar. Como, então, conceber, esse coração inconcebível? Na verdade, estamos diante de um improvised explosive device que “funciona” aparentemente como um coração; mas que é, ao mesmo tempo, um aglomerado de bombas caseiras que efetivamente explodiram. Então, a intervenção de Leandro e Gisela consiste em criar as condições para capturar, na imagem das bombas que explodem, os contornos, as pulsações, os brilhos e as luzes de uma matéria inorgânica “vivificada” prestes a se desintegrar.
Com efeito, os componentes das bombas caseiras em formato de coração – maços de cigarros, celular, latas de refrigerantes, recipiente de vitaminas, envelope de papel, fios, garrafas plásticas de detergente, de óleo, foram amarrados com fita para empacotar o conjunto num órgão vivo, animado. Evocação poética do terrorista? Metáfora da condição do homem-bomba? Ou do prosaico cidadão da metrópole, como sugerem as formas conhecidas dos produtos de consumo cotidiano? Metáfora do corpo e do espírito do paulistano, no limite do stress? É importante que o coração vá explodir sem explodir... tendo no entanto explodido, como cada um de nós paradoxalmente pode ver sem ver! A contenção da expansão provoca a reversão de nossa expectativa no exato momento em que esperávamos que a explosão se consumasse. Assim, uma agonia toma conta do espectador, atirado no movimento contraditório que se instaura entre uma explosão que se dá efetivamente no plano do objeto e uma contenção que se dá no plano da edição da imagem. Tensionado ao extremo por tal movimento, tomando a imagem pela coisa, o espectador não consegue fixar o acontecimento, atordoado pelo deslocamento constante e pela mútua conversão da expansão em contenção e da contenção em expansão
O loop, neste caso, expressa uma situação circular que evoca o que acontecia em Trabalhando em círculos, em Voando em círculos e em Andando em círculos. Mas lá, as máquinas giravam em roda, no espaço, sempre em frente e, no entanto, sempre voltadas para trás, um círculo vicioso. Aqui o coração gira em falso explodindo-não explodindo, bombando a bomba infinitamente num eterno presente de uma situação-limite que não passa.
Alvo– Trata-se de um trabalho que dialoga com os outros da série, não só porque também tematiza a violência, mas sobretudo porque implica diretamente o espectador na logística da percepção (agora no sentido explorado por Virilio), ao transformá-lo num objeto visado e facilmente alvejável, assim que ele entra no campo de ação da câmera-arma. O que se passa? Ao entrar no espaço expositivo, o corpo do espectador se expõe a uma câmera conectada a um computador, cujo software através de um processo chamado tracking, decodifica as coordenadas do espectador no espaço e permite que essa informação seja utilizada para que o símbolo de uma mira venha se projetar sobre ele e passe a persegui-lo, quando o sujeito se desloca.
O dispositivo só é acionado, e portanto só se revela, quando alguém penetra no campo de atuação do trabalho. Seletivo, ele foi programado para projetar o alvo sobre um único visitante de cada vez, priorizando aquele que mais se mover e se agitar. Estamos, portanto, diante de um sistema de detecção que, ao simular no espaço expositivo a operação da busca policial ou militar, transforma o espectador num análogo da vítima de uma batida, sem que ele saiba a razão e o propósito de tal interpelação. Assim, o dispositivo eletrônico se configura como aparelho automático de captura cuja percepção não-humana do ambiente e dos seres animados que nele se movimentam reconfigura o espaço da exposição como espaço estriado do controle hiper-tecnologizado. Agora o espectador descobre que ele pode não ser o esteta convidado a contemplar tranqüilamente a explosão-não explosão do coração-bomba, e nem mesmo o jogador instado a brincar de fora-da-lei – colocado sob suspeição segundo critérios que desconhece, ele se torna um joguete de maquinações de poder que o ultrapassam.
O jogo estético no universo das simulações insinua que as mesmas tecnologias que produzem imagens lúdicas também servem para nos pôr na linha de tiro, na mira, servem portanto para matar. A sinergia entre os trabalhos se faz cada vez mais intensa. Da imagem de I.E.D. ao espaço de Alvo, passando pela virtualidade-atualidade de armas.obj, há todo um percurso que vai e vem, informando a experiência do espectador e problematizando as situações de exceção em que ele se encontra.
Resta, ainda, o projeto de realização de um último trabalho, planejado para ser executado em Recife, durante uma residência dos artistas no Mamam. Trata-se de uma nova simulação, desta vez com tanques de guerra (um modelo em escala, de plastimodelismo, essas miniaturas perfeitas que apareceram após a 2a. Guerra Mundial, foram empregadas em simulações e treinos, e agora são amplamente comercializadas por diversas marcas, como a Revel). No vídeo, dois tanques radio- controlados percorrem duas paisagens distintas como se estivessem se procurando, talvez em busca do confronto; mas como não se encontram a guerra não faz sentido, permanecendo no entanto a mobilização. Portanto, o estado de exceção.
[1]Mazzucchelli, Kiki, Au-Delà du Copan Supernatural Urbanism, 2005, Ecole National Supérieure des Beaux-Arts, ISBN: 2-84056-187-5
[2]Brasil, André. A Poética do Loop. Dossier, julho de 2004.
Site:http://www.videobrasil.org.br/ffdossier/ffdossier004/portugues.htp
[3]In O homem seu olhar holoscópico e seus naói, Tese de doutorado, Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Linguagens Visuais da EBA/UFRJ.