Em 1993, o Chelpa Ferro realizou sua primeira apresentação ao vivo dentro do projeto CEP 20000, organizado pelo poeta Chacal. Interessado na expansão do universo sonoro-visual e na descoberta de maneiras diferentes de organizar suas improvisações, o grupo vem desenvolvendo sua linguagem. Em função da busca por “novos” sons e por possibilidades diferentes de orquestração e montagem, O Chelpa Ferro trabalha com a pesquisa de fontes sonoras acústicas e eletrônicas, com a construção de “máquinas e mecanismos sonoros”, e com a utilização, não-convencional, de instrumentos musicais tradicionais. A isto se soma um diálogo, também ininterrupto, com o cinema, vídeo, teatro e a dança. Nas instalações/concertos o espaço de fronteira e interseção entre as informações visuais e sonoras é o lugar onde se constrói essa experiência com conceitos como textura, organização espacial, sobreposição, perspectiva, densidade, velocidade, repetição, fragmentação, etc. A proposição de um estado de curiosidade e disposição contemplativa para a escuta e a discussão das relações dos sons com o espaço são as idéias principais sobre as quais se apóiam os trabalhos do grupo.
O grupo Chelpa Ferro tem se destacado nos últimos anos por instalações sonoras extraordinárias, nas quais, a par de instrumentos musicais convencionais, são empregados materiais os mais originais: cinzeiros cantantes, máquinas de amolar facas, máquinas de costuras, aparelhos domésticos de todo tipo, até mesmo alto-falantes dentro de um aquário.
Chelpa Ferro, que significa “dinheiro” na antiga linguagem coloquial portuguesa, ama a aura de objetos achados comuns, especialmente quando sons podem ser arrancados deles. Uma broca enferrujada no consultório de um dentista soa como uma amostra de techno eletrônico; de galhos que são sacudidos por motores em miniatura sai o sussurro misterioso da floresta. Ou é talvez um concerto de música experimental? Um grande arco metafórico se retesa, indo de um simples pedaço de lata ou madeira até a obra de arte, poeticamente carregada. Ninguém, exceto Chelpa Ferro, sabe como soou a flauta de osso de cisne, que foi descoberta há pouco tempo por arqueólogos no sul da Alemanha e é, com seus 35 mil anos, o instrumento musical mais antigo do mundo.
Como curadores de um museu organográfico, que não por acaso está situado nos trópicos, Chelpa Ferro revolve nas minas da história e da atualidade da arte e da música. Ora o grupo leva a público um gramofone ou uma flauta de argila, com que os índios do Amazonas imitam o canto de um pássaro durante a caça, ora produz ruídos de uma turbina de avião, de uma sirene de alarme ou o som de uma ravetechno. Cores sonoras escuras e campestres e os barulhos frenéticos da grande cidade se revezam abruptamente. Entende-se por si mesmo que ritmos de percussão, derivados da música popular brasileira, surjam repetidas vezes.A imoderação da natureza tropical e a força de imaginação da arte estão unidas de modo feliz em Chelpa Ferro. Amiúde se trata de situações soando absurdas, que começam deixando perplexo o visitante para depois, dada sua fina ironia, devolvê-lo ao dia-a-dia com um leve sorriso nos lábios.
Além disso, os sons estão em um diálogo constante com o emaranhado de cabos elétricos, que acrescenta às instalações sonoras de Chelpa Ferro a dimensão de um desenho complexo. São laços negros e suaves que se refestelam lascivos pelo chão ou novelos confusos e grosseiros, tão pouco desenredáveis como as disposições sonoras. Desenho e composição são igualmente fragmentários e nervosos. O que de início parece provisório e frágil possui uma força e uma robustez intrínseca. Aos acessos de fúria se seguem momentos de alegre elegância. Ora o elemento de desenho e escultura tem supremacia, ora o elemento sonoro. E, eventualmente, os arranjos levam àquele ponto misterioso em que os sons se extinguem, transitando imperceptivelmente para o campo das imagens.
Alfons Hug
CHELPA FERRO
Graças a sua própria definição, as artes visuais, mesmo em plena contemporaneidade, confiaram muito na arrogância do olho e se dedicaram exclusivamente a pensar a presença das imagens no corpo e nos poros da vida urbana, deixando de lado o som, a massa de ruídos naturais e gerados por meios eletromecânicos que nas últimas décadas tomou conta do cotidiano até por impregná-lo por completo. Mas então veio o rock e com eles os adolescentes, como o quarteto do Chelpa Ferro, que faziam vigília a espera dos discos do Cream, Zappa, Who e Hendrix, curtiam as capas “popistas” de Crumb, Warhol e Hamilton, e o psicodelismo do Dean e da Hipgnosis, e eventualmente estouravam as caixas e amplificadores nos porões e garagens com os sons distorcidos de seus instrumentos. A parte isso, a porta da indústria cultural, ao contrário da alienação, também dava para a música eletrônica de Stockhausen e Henry, além do lance de dados de Cage e seu precursor, Varése.
Chelpa Ferro ataca a plasticidade do som em toda sua escala: batendo nas coisas, revelando a peculiaridade de seus timbres, constatando que tudo – das coisas da natureza aos objetos industriais - vibra em resposta a vibração do nosso próprio corpo. E vai ainda além disso, fabricando instalações e objetos sonoros, agindo como geradores de áudio, tratando de demonstrar que as coisas se relacionam entre si através de entrechoques contínuos, ressoando através de soluções que beiram a insolitude e o encantamento.
Este é o caso de “Hum”, instalação apresentada nessa Bienal: a pisada do espectador é quem aciona o pequeno motor que chacoalha os galhos e os frutos/vagens secos de uma árvore fixada na parede, despertando os grãos e fazendo-os soar como pingos de uma chuva lacônica que percorre o ar reverberando sobre as coisas, chocando-se sobre seu corpo até morrer nas covas dos seus ouvidos.
Prof. Dr. Agnaldo Farias
FAUUSP
Texto escrito para o catalogo da 26ª Bienal de São Paulo - 2004
Revealing through contrast
An innovative experiment, the Respiration Project contrasts the enshrined art of the past with the contemporary art of today, within the same setting. This is intended to replicate the strategy of collector Eva Klabin, whose home houses works from many different periods in the history of art, gathered from many different latitudes. The apparent homogeneity conferred on the ambience of the mansion-museum that was also the home of Eva Klabin by its décor and acknowledgment of the history of art is shattered by the sharp contrast between the art of today and the classic art produced of the masters of the past, constituting the key character of this project.
The proposal of the Chelpa Ferro Group is closely aligned with the thoughts of the Curator. Provisional Stability is a quasi-illustration of this idea. The established, the enshrined, wither away before the playful. The disarray generated within such a tightly-structured context where the history of art had the function of creating stable setting for the life of Eva Klabin unleashes a stability (if only fleeting) that serves the purpose of questioning us about the place of things. Here, uncertainty becomes an open-ended value: the same value that has long guided actions in our society. Each moment, all the time, everything may change: due to violence, accident, or the speed with which information anticipates a future situation — through fear or through the increasingly forceful actions of Nature triggered by the environmental imbalances caused by human beings. In fact, the quest for stability / instability that denounces the precarious situation where we are living right on the edge is the main triumph of the Chelpa Ferro installation. It finds the perfect setting in the mansion-museum that was once the home of Eva Klabin, revealing through contrast the discomfort and uncertainty of this precarious and transitory situation.
Marcio Doctors
Curator
Chelpa Ferro offers ours eyes and ears an abundant banquet of synesthesia. Distinguished by its technological obsessions and ritualistic variations, it may be savored in many contrasting ways.
Technical reveries lead the contemplator on a journey through electronic noises suspended in sacks that unleash a nervous, intermittent droning. Seeing and hearing these devices makes us feel slightly nostalgic for the noises of everyday life.
Moving through the intermittence of these pieces we arrive at a mysterious electrified tree. It would appear that Brahma has allowed his sibilant voice to echo in the seed pods hanging from twenty two branches. A ritual murmur may be heard, an aural memory of the timeless sound of rain. The wires that amplify this murmuring poetry allude to the rain sticks of the medicine men of the Amazon. Branches that rustle, whisper and murmur – technology induces the trance of landscapes, the enticing sound of a holy voice.
Seduced by this unusual mixture, human beings grope their way towards a dark tower, an island completely surrounded by sound, and realize they are inside a chamber of humming sounds, a room of aural pleasures installed in the center of this noisy arena. Surrounded by dense, black, hypnotic speakers, they experience the incompatible delights of receiving and transmitting. Curious caverns which summons amplified delight, both dark tower and (as ever) hesitant human beings hum and buzz.
“Hmm! Looks like these machines are trying to tell me something!” says the intrigued passer-by before the banquet he has been offered. Fascinated, he surrenders to a contradictory voluptuousness – at once ritual and technical – and downs a few swallows of synesthesia.
Groping his way through the crowd of hmms (hmms of pleasure and surprise) he eventually discovers the light and sound cables along the wall. He understands that this is a tribute, simple reverence to technological magic. Filled with playful curiosity, he later catches sight of a familiar object – a huge set of drums that can only be contemplated, not played. In reverie, he dreams of Led Zeppelin, Black Sabbath, Metallica and Sepultura and glides through a sort of memory lane of heavy metal.
At the end of this confused pilgrimage, infected by so much noisy playfulness, he receives his instructions: Welcome to life’s synesthetic spectacle, where hmms multiply. The hmms of humans who, dizzy from their frequent fumbling, find only their own inventions.
José Thomaz Brum holds a doctorate in Philosophy from the University of Nice and teaches Aesthetics in the Art History Specialization Course at PUC-RJ.