“Um poente real é imponderável e transitório. Um poente de sonho é fixo e eterno.”
Livro do desassossego, Fernando Pessoa
Quando Chiara Banfi veio me apresentar seu projeto de exposição para a Galeria Vermelho, como é de meu costume, levantei mil problemas, mas o ceticismo maior residia na sua vontade de fazer a viga mestra do mezzanino “descer e girar” (no âmbito mental, é claro, e não físico) e “abraçar o lugar com o desenho”. Conheço aquele espaço expositivo quando ainda eram três casas geminadas. Depois da reforma, o ponto de sustentação do edifício conta, além da viga original, com cinco tesouras de madeiras que saem para as laterais e constituem a armação do telhado. Do ponto de vista de quem olha de baixo para cima, esta treliça obstrui o efeito sobressalente da trave principal. Deixei que as perguntas mantivessem uma tensão no ar.
Como fazer um texto crítico simultaneamente à criação artística, isto é, a partir de um objeto da ordem das idéias, ainda invisível, que não seja a descrição fria de um resultado que qualquer observador terá capacidade de enxergar uma vez pronto? A tarefa do crítico passa pelo comentário (requisito menos evidente que parece), e depois? Já a busca da interpretação exige, no caso da arte contemporânea, uma ciência de andar tateando no escuro. Chegaremos mais ou menos juntas, Chiara e eu, ela na galeria, eu na gráfica, cegas uma da outra. Porém, não tão cegas assim.
Como poucos artistas de sua geração, Chiara Banfi construiu um repertório próprio, caracterizado por uma linha espontânea, que se dilata em elementos celulares; soltas no espaço, seriam bem-aventuradas conversas com os móbiles de Calder. Ser reconhecível por uma unidade formal é uma faca de dois gumes: ao passo que representa uma conquista, pode sinalizar um acanhamento de experimentar uma façanha fora do território assegurado. Mas não contente de possuir um traço inconfundível, Chiara se deixa guiar pela curiosidade, o que lhe valeu a transição de uma pintura sobre parede para uma ocupação ambiental.
O desenho de Chiara desencadeou-se a partir de uma viagem na Amazônia, do contato com os vestígios de civilizações indígenas e de seu vínculo com os fenômenos da natureza, o campo racional sendo ativado pelo espiritual. Há uma dimensão “mágica” sempre presente nos depoimentos de Chiara, cujo caráter transcendental me trouxe à memória o Kandinski da liberdade com equilíbrio, da pintura integrada à musicalidade. Sua apoteose teve lugar o ano passado em Brasília, com “Várias marés”, primeira individual da artista. Águas e nuvens foram penetrando e saindo de oito escalas de cinzas. Pode-se até dizer que a lenta metamorfose de Chiara adveio de uma onda que prenunciava um surrealismo latente, mas encontrou estabilidade numa espécie de abstração, em que a terceira dimensão corresponde a um plano ideal a ser cautelosamente cerceado. O mundo material, a realidade tal como ela se apresenta, não parece seduzir esta artista.
Ontem, quando cheguei na galeria, a viga já tinha sido posta abaixo. Somente com a força da cor verde. Junto com Calder, era possível distinguir uma tangente em direção às formas de Leda Catunda (gotas, línguas, barrigas). As estruturas de madeira recortada exibiam o contorno de um “cheio” que lhe fora extraído, cada qual mantendo sua autonomia. O desenho em vinil colado ainda não tinha entrado, esperando o fim da fase de lixar e polir que levanta muito pó; nem a trilha do grupo “minima”, que deverá gerar uma impressão de chuva constante lá fora. Quanto ao mezzanino, de repente eu o vi resumido a uma ombreira rudimentar. Além da viga mestra, uma viga líquida, entornada ou embriagada, transborda das paredes ao chão. A viga desceu e há uma viga que quase sobe, inflada pelo desenho. Esta mesma viga, alongada no piso, atrapalha a passagem. Uma viga-obstáculo que certamente propiciará tombos aos distraídos, e dessa desatenção, creio, há de surgir um apuro dos sentidos. O ambiente consegue influir sobre a circulação do público, que vai “evitar” transpassar um muro virtual erguido do simples rebatimento de uma trave que agora divide o espaço.
A função da arte, para Chiara, ainda é próxima do momento em que o sol bate nas folhas e tem a potência de levar o visitante para um outro lugar. Como o coelho de Alice…
Lisette Lagnado, janeiro de 2005
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Interessante observar que a Galeria Vermelho apresenta, na mesma época que a exposição da Chiara, uma instalação inédita, sobre a casa, da fotógrafa Claudia Andujar, conhecida por seu trabalho com os índios Yanomami.
Cf. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (p. 487).
Palavras da artista durante um de nossos encontros.
O mundo fica do lado de fora. Só a linha do horizonte, entre o céu e o mar, sinaliza sua presença, ao mesmo tempo distante e envolvedora, de dentro desse outro espaço. Aqui as linhas, cores e texturas dizem tudo, segundo uma outra ordem, que é como se fosse a tradução encantada daquilo que, por fora, tanto se esforça para falar, sem falar. Aqui o mundo fala mais e melhor: o mundo canta.
Numa exposição recente em Lyon (2006), Chiara Banfi cantou de fato: duas versões de “Asa Branca”, a toada trágica de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, lamentosamente decomposta em monodias, com tratamento eletrônico em tempo real. Pelas paredes da galeria, as linhas recortadas da artista coincidiam afinal com seu sempre intuído objeto: eram as próprias linhas musicais, uma partitura da canção, da qual restavam alguns elementos, à medida em que a composição se desdobrava pelas salas, com direito até a semínimas e colcheias, reproduzidas no sertão da parede. Isso no andar de cima. Pelo teto do andar de baixo, pingavam grandes notas, que eram também grandes lágrimas, uma chuva de cajuína negra, continuando a música produndeza abaixo, suspensa sobre o canto da artista.
Também na “Viga Mestra”, que ela apresentou na Galeria Vermelho há dois anos, a música se redescobria ou reinventava nas formas. Seria só pitoresco saber que a artista executou os desenhos e cortes e colagens das linhas de fita adesiva – sem falar na trave verde, um desenho no ar – sempre ao som de sua própria voz, não houvesse nisso uma grande aposta. Mais que aposta: uma certeza, a conquistada intimidade com uma substância viva das coisas, que para Chiara está sempre associada, também, à música. Daí vem a dimensão temporal (que define a arte da música), tão característica do seu trabalho quanto o desejo de abraçar o mundo com linhas e cores.
Que suas próprias obras se deixem agora abraçar pela linha do horizonte sugere outro grau de confiança. Tudo nela sempre foi confiante e alegre. Até a tristeza tem alegria por dentro, como em Matisse ou Calder, duas divindades de uma possível genealogia (que teria de incluir também mestres orientais do desenho, lado a lado com índios do Amazonas). Mas essa alegria e essa confiança chegam agora a um novo estado de calma. Assim como os materiais e métodos se fizeram mais complexos – do recorte manual, com tesoura, para o desenho computadorizado; e desse, de volta à matéria concreta, para a marchetaria – também a gama afetiva ganhou outras nuances. Em termos musicais: sua arte agora é mais rica em contraponto. Seja entre materiais (desenho, madeira, fotografia), seja no que, em cada um desses, ecoa dos outros, apagando diferenças sem apagar a diferença.
No limite, a ilusão que une contrários é a mesma ilusão que os separa. Ela ganha um emblema sintético no trabalho de entrada. O limiar do horizonte, nesse caso, foi substituído por uma linha de marchetaria. E, assim como as fotos do horizonte entram nos quadros com artificiosa naturalidade, aqui o cenário vira naturalmente artificial, e se move segundo o movimento adivinhado da linha que não sai do lugar. Nas grandes janelas de vidro da Fundação Cartier, em Paris, onde Chiara fez uma exposição em 2005, esse jogo se dava precisamente no intervalo entre o dentro e o fora. Outros trabalhos desse período incluem caixas com desenhos internos, dentro de outros desenhos recortados que, por sua vez, se perdem na parede, como sonhos de sonhos que se vão pelo sonho total. Num outro trabalho ainda, do ano passado, em um museu de Boston, terra e areia de vários tipos davam continuidade e volume aos desenhos na parede. Tantas variantes do mesmo enigma se deixam agora escutar para além da linha d’água, que passa de um quadro a outro, cercando o quadrado de concreto da Vermelho.
Ainda outra versão, bem-humorada: as duas mesas ao ar livre. Cada uma tem um furo na altura do pescoço do espectador, que deve enfiar a cabeça para se descobrir no chão de um pequeno jardim – nem tão pequeno assim, para quem assume a visão de um inseto. As plantas viram outra coisa, para quem entra no mundo ao rés do chão, mesmo se esse chão está no ar. Tudo saiu dos eixos, o horizonte mudou. Ou melhor: somos nós que perdemos o chão, para aprender a ver o mundo.
O mundo fica do lado de fora. Sim, mas a essa altura o que é de fora e o que é de dentro não está tão claro. Para uma artista com esse grau de invenção e esse grau de domínio, o mundo todo vai se tornando material de trabalho, infinitamente moldável a serviço da idéia. E, para nós, em momentos privilegiados de alegria e calma, tudo começa a parecer obra de Chiara Banfi. Nessas horas, o mundo todo vai se tornando música, a música que ela escava no ar como quem tira formas da pedra, para desenhar suas mil e uma canções.
“The real sunset is imponderable and transitory. The sunset of your dreams is fixed and eternal” Livro do desassossego [The Book of restlessness], Fernando Pessoa
When Chiara Banfi showed me her exhibition project for the Galeria Vermelho, I raised a thousand issues – as I usually do – but I was especially skeptical with her wish to make the main beam of the mezzanine “descend and spin” (in the mental, not physical sense, of course) and “embrace the place with the drawing”. I’ve known that exhibition space since it still was three joint houses. After the remodeling, the mainstay of the building consists of five crossbeams scissoring away from the main beam, forming the roof’s framework. From a bottom-up perspective, this trellis obstructs the overlying effect of the main beam. I let my questions keep some tension in the air.
How to write a critique along with the artistic creation, i.e., based on a still invisible object on the order of the ideas, which would not be the cold description of a result visible to any observer once it was ready? The critic’s task requires comments (a less evident requirement than it seems), and then what? Yet the search of interpretation demands, in the case of contemporary art, the knowledge of a fumbling walk in the dark We will arrive somewhat together, Chiara at the gallery and I at the printer’s, blind to each other. Not so blind, however.
Like few artists of her generation, Chiara Banfi has built her own repertoire, characterized by a spontaneous line, which dilates into cellular elements; free in space, they would be blessed conversations with Calder’s mobiles. To be recognizable for a formal unity is a double-edged sword: while it represents an achievement, it can signal a shyness to experiment a feat outside of the assured territory. Not content in having an unmistakable stroke, Chiara lets herself be guided by curiosity, which has given her the transition from a wall painting to an environmental occupation.
Chiara’s drawing unfolded after a trip to the Amazon, from the contact with the traces of Toltec civilization and from her bond with the phenomena of nature, the rational field being activated by the spiritual . There is a “magical” dimension - always present in Chiara’s statements - whose transcendental character reminds me of Kandinski’s freedom with balance, his painting integrated to musicality
Her apotheosis took place last year in Brasília, with “Várias marés” [Many tides], her first individual exhibition. Waters and clouds penetrated and came out of eight shades of gray. It can even be said that Chiara’s slow metamorphosis came from a surrealist wave foretelling a latent surrealism, but found stability in a kind of abstraction, in which the third dimension corresponds to an ideal plane to be cautiously subdued. The material world, reality as it presents itself, does not seem to seduce this artist.
Yesterday, when I arrived at the gallery, the beam had already been taken down. Just with the strength of the green color. Together with Calder, it was possible to distinguish a tangent toward Leda Catunda’s shapes (drops, tongues, bellies). The trimmed wood structures showed the outline of extracted “fullness”, each one maintaining its autonomy. The glued vinyl drawing was not there yet, awaiting the end of the dust-raising sanding and polishing phase; nor was the sound track of the “minima” band, which would give the impression of constant rain outside. As to the mezzanine, I suddenly saw it reduced to a rudimentary shoulder pad. Besides the main beam, a liquid beam, spilled or drunk, overflows from the walls to the floor. The beam is down and there is a beam which almost rises, inflated by the drawing. This very beam, stretched on the floor, gets in the way. This obstacle-beam will certainly trip the inattentive, and a sharpening of the senses will come, I believe, from this inattention. The environment can influence traffic: the public will “avoid” the passage through a virtual wall raised with the simple drop down of a girder, now dividing space...
The role of art, for Chiara, is still close to the moment in which the sun shines on the leaves and has the power to take the visitor to another place. Just like Alice’s rabbit....
Lisette Lagnado, January/2005
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Cf. São Paulo: Companhia das Letras, 2000 (p. 487).
Statements of the artist on one of our meetings.
It is interesting to note that the Galeria Vermelho showed, at the same time as Chiara’s exhibition, photographer Claudia Andujar’s first-time installation on the house proper. Claudia is known for her work with Brazilian Indians.