Hoje podemos falar de uma desaparição da fotografia. Trata-se de uma desaparição paradoxal, de algo que justamente foi criado para registrar o que potencialmente logo desaparece. A fotografia em papel guardava uma presença, uma densidade que foi e é muito explorada pelas artes plásticas. As potencialidades artísticas da fotografia analógica certamente nunca foram tão exploradas antes da fase de sua desaparição. É como se, diante de seu fim, a fotografa analógica se tornasse ainda mais eloqüente como uma metáfora ambígua de nossa memória, que é sempre inscrição da presença e de seu apagamento. Decerto já possuímos muitas grandes obras de arte na base digital, mas o princípio da fotografia analógica ainda deverá produzir muitas grandes obras também.
Muitos elementos da fotografia tradicional são abalados, em menor ou maior escala, pela foto digital. Por exemplo, a questão dos direitos autorais. Sabemos como este tema já era complicado na era da fotografia analógica. Mas, com o tempo, desenvolveram-se procedimentos de garantia de respeito à autoria das imagens. Com a fotografia digital, que só pode ser compreendida com a paralela abertura do universo da web, esta questão ganhou uma dimensão inaudita. Além da facilidade de manipulação e de multiplicação das imagens, a incrível capacidade de circulação delas acrescenta mais uma dificuldade para se controlar os direitos autorais. Na era digital a autoridade do fotógrafo é posta em questão. Esta autoridade também é abalada pela fantástica democratização dos aparelhos fotográficos. Todos agora somos fotógrafos, e com isso se indica não apenas que somos agentes da fotografia enquanto manipuladores e agentes na sua circulação: todos atuamos na própria captação das imagens. Uma criança de cinco anos já possui hoje sua primeira câmara digital. Além disso, a câmara digital, na medida em que nos possibilita um acesso imediato às imagens capturadas e como não depende de sua tradução para um meio duro, propicia uma multiplicação do próprio ato de captura de imagens. É uma banalidade afirmar que fotografamos muito mais na era digital. Se esta multiplicação quantitativa significa uma elevação qualitativa é uma questão ainda a ser respondida. Esta multiplicação quantitativa pode ser explicada não só pela facilidade técnica, mas também por uma necessidade quase que patológica do indivíduo contemporâneo de registrar tudo em imagens. “Glorifier le culte des images (ma grande, mon unique, ma primitive passion)”, escreveu Baudelaire. Estas palavras caracterizam também o indivíduo contemporâneo com sua sede de construir uma casa em um mundo onde tudo se liquefaz. Como suas imagens também são líquidas ele não pára de inscrevê-las. Nossa era de museus e de arquivos é uma filha de nosso descolamento com a tradição e, mais recentemente, de nossa crise dos limites do próprio humano.
O projeto de Rosangela Rennó, A última foto, propõe um diálogo crítico com essa passagem da era analógica para a digital. A idéia de convidar 43 fotógrafos para fotografar o Cristo Redentor no Rio de Janeiro pode ser interpretada como um verdadeiro ritual de despedida da foto analógica. Esta poderá até se perpetuar, como também muitos ainda hoje preferem escrever em antigas máquinas de escrever. Mas é claro que a virada digital já ocorreu. A exposição, por sua vez, reúne essas fotos ao lado das câmaras que as captaram, formando dípticos, como descreve Rosangela. A câmara já se apresenta assim como peça de museu. O fato do objeto escolhido ser um monumento é digno de nota. A fotografia analógica manifesta assim um desejo de eternidade, diante da ameaça nascida da fotografia digital. Esta, no entanto, “fagocitará” com tranqüilidade as fotos analógicas da exposição, assim como os seus textos. A revolução digital incorpora o passado no seu presente perene, no tempo-lugar da web, onde, para o bem e para o mal, não sabemos mais diferenciar o virtual do real.
According to the artist, "'Experiencing Cinema' comprises the intermittent projection of photographs onto a volatile screen, that is, a smoke curtain, which only appears for a few seconds, deforming, distorting, bringing thickness and movement to static images. Smoke and images simultaneously appear and disappear, prompting a feeling that the image is the effect of an ephemeral materiality – or almost immateriality – of the curtain. This work pays homage to the illusionists and creators of moving image. 'Experiencing Cinema' was conceived as an experiment in the archeology of cinema and particularly refers to the first voyages of image, produced with elementary projectors and magic lanterns in the sixteenth and seventeenth centuries".
The ethereal, ghostlike images that appear projected onto a thin, shifting curtain of smoke, prompt Massimo Tortelli’s words in Figuras do Espanto: photography is that marvellous art that transforms a ray of light into a magic pen which clenches the physiognomy of those dear, to the friend long lost, with ineffaceable signs; that pious art that preserves the comforting images of those who have left us, brought back to life with their sincerest gaze and the very light their eyes once reflected (Frade, Pedro Miguel, “Os Limites de uma Perturbação”: Asa, Lisbon).
Rosângela recovers the power photography has of challenging the inexorable and relentless passage of time, which her work consistently addresses, with the immortal image. Whereas time dissolves and dissipates memory, like a cloud of smoke with a gust of wind, photography maintains the ghostly shadow whenever substance has already vanished. Rosângela Rennó's installation re-enacts the profoundly moving experience and surprise of the first viewers of photography, with her restaging of the art of phantasmagoria. According to Pedro Miguel Frade, in his poignant text 'Os Limites de uma Perturbação', photography establishes a regime of proximity with relation to the remote by means of a multifaceted process whereby the object is substituted with its image, or the subtle confusion between the person and his or her effigy, confusion such that also takes the light reflected by the sitter in, retaining and fixing images which do not belong to the sitters themselves, but are always somehow theirs.
“O diabo na rua, no meio do redemunho” O sertão de Rosângela Rennó é místico, arrebatado por fábulas, crendices e por um amor impossível. A narrativa elíptica junta fenômeno natural e magia. Redemoinho. Espiral abarrocada, ligando terra e céu. Totem brancusiano. Tudo rodopia: a moral, os tabus, o tédio, o desejo. Uma espécie de febre, de ‘sono da razão’ aquece um amor entre iguais. “Então, o senhor me responda: o amor assim pode vir do demo?” Rennó interpreta Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Em vez de viajar ao sertão mineiro, a artista pede emprestado, aos fotógrafos, imagens e depoimentos sobre a rara captura do redemoinho sertanejo. Efemeridade. Sorte. Ela quer incorporar a experiência do outro. As imagens são agora – e não antes – os capetas de Rosa, inventados por Rennó. Então, projeta-se a fábula sobre o aqui-e-agora do instante fotográfico. Devemos lembrar, também, que Grande sertão é uma narrativa da saudade. Saudade de Riobaldo por Diadorim. Sobre tudo isso “o gerais corre em volta”, auto-referente. A arte, aqui, promove uma (re)visita da artista à terra natal, pois, como Rosa nos ensina, “despedir dá febre”.
“A marca do autor está unicamente na
singularidade de sua ausência.” (Michel Foucault)
Singular e ausente: contradição bastante adequada para aplicarmos ao trabalho de Rosângela Rennó. A artista utiliza-se da idéia de autoria como gesto, tal qual define Agamben. Apropria-se do real de forma enviesada, indireta. Porém, na concepção de Foucault, todo autor atesta uma ausência, já que manipula conceitos, idéias preexistentes. Na função-autor há sempre alguém que mesmo continuando anônimo, e sem rosto, “profere o enunciado”. O gesto de Rennó sobre a arte é um gesto de atribuir enunciações. Em Sertão Contemporâneo, Rosângela apresenta-nos dois trabalhos: Febre do cerrado e Febre do sertão. No primeiro, seis seqüências de fotografias de redemoinhos de terra, característicos do interior do Brasil, são ladeadas por relatos dos fotógrafos sobre a captura das imagens. No segundo, dois pequenos vídeos editados a partir da interpretação cinematográfica e televisiva de Grande sertão: veredas, dirigidos, respectivamente, por Geraldo e Renato dos Santos Pereira e por Walter Avancini.
Rennó sobrepõe a paisagem da literatura às paisagens e aos personagens fotográficos, cinematográficos e videográficos. Cria-se originalidade na manipulação. Atingem-se imagens como alvos. Atenta, a artista se posiciona “nos limites dos textos”. Instauram-se “discursividades”. O sujeito-autor “se atesta (...) por meio dos sinais da sua ausência”. Mas de que maneira uma ausência pode ser singular? Esta é uma das questões centrais nos trabalhos de Rennó.
Sobre a escolha geográfica do projeto, Rosângela se interessou pelo interior mineiro, uma região que recebera o nome do romance de Rosa: Parque do Grande Sertão. Assim, começou a processar uma busca pela paisagem da literatura. Chegou à idéia de capturar redemoinhos, presença potente no romance, imagem mágica para a crendice e para o ato fotográfico. Quatro fotógrafos abriram seus arquivos da captura de redemoinhos sertanejos, compartilhando a autoria com Rennó. Uma espécie de dança de demônios. A imagem, aqui, participa “de práticas não artísticas”, de crendices populares.
As fotografias, em Febre do Cerrado, roubam a realidade porque, “antes de tudo, uma foto não é apenas uma imagem (como uma pintura não é uma imagem), uma interpretação do real; é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada ou uma máscara mortuária”. Nos relatos dos fotógrafos, temos este “ir em busca” das pegadas dos redemoinhos. Poderíamos ficar romanticamente procurando o embate com o real: a viagem real, o instante real, etc. Mas, como afirma Sontag, quando olhamos o passado, história, imagens e fatos se misturam.
A foto é “uma emanação do referente”, nos termos de Barthes, um “traço físico de um real”. Digo, respondendo aos teóricos e parafraseando Rosa, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. Deste real na travessia, tratam os relatos, as narrativas. Nos depoimentos, a surpresa, o inesperado. Leo Drumond afirma que “entediado pela monotonia do sertão”, de repente, avista um desses redemoinhos: “Ouvi o grito do redemoinho. Ao passar pela areia fofa, ganhou forma, cresceu bem na minha frente, fazendo um ruído forte.” O sertão, como afirmara Rosa, “é confusão em grande demasiado sossego”. As imagens de Drumond lançam ouro sobre azul. Impactantes, os contrastes resplandecem numa estrada barroca, mineira. Ao mesmo tempo, os redemoinhos podem criar mais intimidade com os fotógrafos. João Castilho, cansado de fotografar a “fauna em declínio”, sentado num bar, captura o pequeno instante com proximidade, no meio da praça, o diabo “no meio da rua”.
A palavra ‘febre’ aparece no romance com sentidos variados. As personagens têm febre por causa da fome, do ódio, morrem de febre, acordam culpados no meio da noite, com febre, entristecem-se com a despedida e caem de febre.
Mas, a febre que esquenta o romance é a do amor de Riobaldo por Reinaldo (Diadorim). Um vício. Riobaldo justifica-se: “Era que ele gostava de mim com a alma; me entende? O Reinaldo. Diadorim, digo.” Rennó instala dois projetores de vídeo, um de frente para o outro, como num diálogo, um namoro. Os fones auriculares são misturados para que possamos ouvir as duas fontes. Assim, o Riobaldo do filme dialoga com a Diadorim da minissérie. Às vezes, consigo mesmo, ou melhor, com seu espelho, seu reflexo, ainda que interpretados por diferentes atores. E Diadorim parece transmutar-se de um tempo ao outro, já que as atrizes são surpreendentemente parecidas. Misturam-se as datas: 1965, 1985 e 2008. Um personagem escorando-se no outro. Um desejo de não se despedir. E o jagunço, apanhando “o silêncio de um sentimento”, não pode mais retroceder. “Travessia de minha vida.” Rompe-se o silêncio e Riobaldo assume o segredo: “fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade”. E nostálgico, rememora: “Me deu saudade de algum buritizal (...) Saudades, dessas que respondem ao vento; saudade dos Gerais.”
Aqui, arrisco a repetir, Febre do cerrado e Febre do sertão são narrativas da saudade.
Uma invenção de virada de século, a fotografia tem sido competente no seu reinventar. Contudo, nunca antes ela esteve num estágio mais imprevisível de desenvolvimento, transformação e catarse. A proliferação recente de câmeras digitais em telefones e computadores alterou profundamente a forma como concebemos e identificamos o mundo ao nosso redor. Ironicamente, esses novos e atrativos agentes de produção de imagens são intrinsecamente distantes, produzindo inúmeros snapshots que deslocam a condição popular de objeto da fotografia impressa. E, por sua vez, não só a imagem digital é armazenada e vivenciada na privacidade, mas também o significado da obra reside em diversos locais, frequentemente vestindo um anonimato que nega qualquer noção de autoria. A fotografia contemporânea e a chegada das tecnologias digitais na América Latina são complicadas, já que a história do meio tem tido, em alguns momentos, uma forte relação com os aspectos literais e associativos de uma realidade distópica (com o cruel absurdo de fotografias serem, algumas vezes, as únicas provas de desaparecimentos em massa sob vários regimes autoritários), em paralelo com o experimentalismo inusitado nos anos de 1990 com a (re)construção do campo imagético tecnocultural latino-americano. Ambos estão presentes na obra internacionalmente reconhecida da artista brasileira Rosângela Rennó.
Como herdeira desse legado geminado, Rennó tem frequentemente levantado questões sobre a amnésia coletiva e a autoria da produção de imagens na América Latina como meio principal através do qual a autoridade impõe seu poder sobre a sociedade. No passado, ela tem apresentado o tema do desaparecimento, do anonimato (que possuem um significado político particular na América Latina) e do gênero fotográfico recorrente que mostra meninos e homens vestindo uniformes militares – ou de aparência militar – assinalando os valores culturais, sociais e espirituais do acentuado militarismo na América Latina do século XX [1]. Enquanto Rennó descobre modos poderosos, embora inovadores, de apresentar tal produção de imagens encontradas, seus “arquivos universais” são também profundamente altruístas. Principalmente porque tentam persistentemente entender e transmitir experiências marginalizadas e negar equívocos e exclusões nas criações de mitos e histórias oficiais do Brasil.
Para seu trabalho mais recente, Rennó contou com 42 fotógrafos para colaborar na criação da exposição A última foto. Cada fotógrafo escolheu uma câmera da vasta e diversa coleção pessoal da artista para produzir imagens da estátua icônica do Cristo Redentor que paira sobre a cidade do Rio de Janeiro. O ímpeto por trás da escolha desse monumento é consequência da controvérsia acerca da venda de souvenires associados à estátua e da luta entre a família do escultor franco-polonês Paul Landowski e a Arquidiocese do Rio de Janeiro pelo controle autoral dessa imagem. Questionando controle e autoria, Rennó cobriu de tinta as lentes das câmeras devolvidas e, frequentemente em parceria com o respectivo fotógrafo, selecionou de cada uma das 43 câmeras uma imagem da estátua, incluindo uma tirada por ela mesma. A exposição resultante na Galeria Vermelho em São Paulo apresentou as “últimas” imagens e as máquinas seladas. Os dípticos de câmera e fotografia deixaram claro que a percepção da mesma estátua icônica diferia de fotógrafo para fotógrafo porque câmeras raramente clicam na mesma fração de segundo e, ainda mais revelador, os fotógrafos (ou qualquer observador nesse populoso ponto turístico) podem ver a estátua colossal em momentos e ângulos diferentes, exigindo uma espécie de olhar cinemático.
Para a exposição na Prefix Contemporary Institute of Art, A última foto foi reconstituída através da seleção de 19 dípticos marcando a primeira vez que esse projeto está sendo mostrado fora das fronteiras do Brasil. Recontextualizada de um local para outro, A última foto demonstra as ricas conexões entre alinhamentos nacionais e internacionais e deslocamentos que ocorrem inadvertidamente quando a fotografia é testemunhada em um lugar e depois em outro. De maneira pungente, A última foto sugere que mesmo as poucas imagens icônicas (tais como monumentos como o Cristo Redentor) que, uma vez, haviam sido praticamente as únicas imagens turísticas que atravessavam fronteiras e continentes provavelmente têm significados e ressonâncias diferentes porque podem ser apresentadas de formas tão diferentes. Numa definição artística mais expandida de autoria, A última foto examina referências históricas, narrativas pessoais e experiências vividas através do discurso de ações colaborativas, autoria múltipla e, assim como suturas onde renovações de identidade são trabalhadas examinando pontos de conexão, pontos de identificação temporária e estratégias de localização que surgem em lugares como o Rio de Janeiro. A exposição inclui trabalhos de Nino Andrés, Thiago Barros, Cris Bierrenbach, Eduardo Brandão, Denise Cathilina, Rochelle Costi, Edouard Fraipont, Iuri Frigoletto, Luiz Garrido, Milton Guran, Ruth Lifschits, Walter Mesquita, Odires Mlászho, Wilton Montenegro, Pedro Motta, Marcelo Tabach, Claudia Tavares, Paula Trope e Rosângela Rennó.
Elizabeth Matheson / 2008
* Ensaio escrito em 2007 para a exposição The Last Photograph, Prefix Institute for Contemporary Art, Toronto, Canadá, maio-junho de 2008.
[1] Entre 1955 e 1985, dez grandes países da América do Sul estiveram sob regime militar, incluindo o Brasil, onde os regimes autoritários não apenas aboliram as liberdades democráticas, mas também institucionalizaram a tortura e orquestraram o desaparecimento de milhares de pessoas. Artistas vivenciaram o autoritarismo, em suas formas materiais e psicológicas, como exilados internos ou externos. Não é de surpreender que a fotografia, usada a serviço das ditaduras militares, resistiu ser vista de acordo com noções tradicionais de autoria. As autoridades enfatizaram a natureza objetiva do meio, seu escoramento nas evidências e sua dependência dos modos analógicos de representação como prova de suas qualidades não autorais.
Sobre a curadora: Elizabeth Matheson é curadora independente e escreve sobre arte contemporânea e cultura canadense e internacional. Desde 2000, leciona na Universidade de Saskatchewan. Organizou muitas exposições coletivas em galerias, centros de arte, prédios históricos e espaços externos. Dentre seus projetos recentes estão a curadoria de Back Talk: protest and humour (2006) e de Familiar but Foreign (2007), uma pesquisa sobre a migração transnacional e a publicação de um ensaio sobre Betsabeé Romero (México). Foi a principal organizadora de Missing and Taken: A Symposium, evento internacional com a indicada ao Oscar Lourdes Portillo, que iniciou um diálogo entre diversas comunidades, incluindo artistas, escritores, cineastas, ativistas e famílias, para a troca de informações sobre a tragédia sistêmica de desaparecimento de mulheres no Canadá e no México. Ela vive e trabalha em Saskatoon e Regina, Canadá.
A maioria dos analistas da obra de Rosângela Rennó se volta para o seu trabalho fotográfico e para suas estratégias de apropriação, deslocamento e recontextualização de imagens pré-existentes, destacando o caráter crítico das operações de construção e reconstrução por meio das quais a artista visa desvendar a ideologia da fotografia. Segundo este enfoque, a objetividade e o reflexo historicamente associados à fotografia seriam tratados pela artista, antes de tudo, como produtos inerentes a uma prática social, postos em discussão para interrogar o “valor” da fotografia .
Ao lado da profusão crítica e da convergência de leituras desta vertente da produção de Rennó, o uso de textos, também freqüente na sua obra, não tem sido objeto de interesse tão acurado. Os relatos de jornal colecionados e retrabalhados pela artista - esculpidos, colados ou riscados nas paredes, entre outras modalidades de intervenção -, que tanto podem ser vistos isoladamente, quanto integrar um trabalho mais amplo “falam de gente” (evocando, portanto, o retrato, categoria fotográfica que ela sempre visa) e de fotografia; mas não são acompanhados das imagens correspondentes, cabendo ao espectador imaginá-las. A própria artista costuma reiterar que os textos recebem o mesmo tratamento que a fotografia, devendo desencadear as mesmas operações de “construção” e “reconstrução” que as imagens fotográficas para por também sob exame seus temas de eleição: a memória e o esquecimento, o anonimato e a identidade.
As “imagens escritas” de Rennó (assim ela as nomeia) são, de fato, trabalhadas segundo procedimentos semelhantes àqueles que ela aplica à fotografia: além de acionarem as mesmas temáticas derivadas da amnésia social, em ambas o espectador é levado a se interrogar criticamente sobre sua própria relação com a fotografia, sobre o valor que lhe atribui - pondo igualmente em perspectiva as práticas sociais e as experiências individuais por ela acionadas. Coletados na imprensa ao longo de anos, esses curtos relatos já passaram pela escrita jornalística, que os “codifica” segundo critérios técnicos e ideológicos, fragmenta e torna tão “irrelevantes”, tão anônimos quanto as fotos tão prezadas pela artista. O jornal tem o dom de banalizar as narrativas, de abastardá-las e de devolvê-las ao anonimato de onde saíram, reservando-lhes o mesmo destino – o esquecimento - a que os usos sociais da fotografia também condenam as imagens. Por meio desses textos, Rennó pretende levar o espectador a criar suas “imagens mentais”, fazendo-o ativar sua memória, acionar o seu “arquivo”, atualizando a “reserva” visual inativa” que ele guarda dentro de si.
É em relação a este tipo de participação do espectador que o recurso às narrativas apresenta nuances que o diferenciam do uso das imagens no trabalho de Rennó. Pois a aposta no poder do texto para interpelar o “acervo” visual do espectador e levá-lo à criação da “foto” ausente parece integrar, de outro modo, a passagem do tempo que a artista não pára de interrogar (não por acaso o arquivo é um de seus objetos de eleição). Se as fotografias anônimas implicam o recurso “às margens”, ao “que vai para o lixo”: imagens “descartadas”, “despotencializadas”, o trabalho com os relatos banalizados pela escrita jornalística e pelos hábitos de leitura que ela estabelece supõe, ao contrário, o reconhecimento de uma “potência” do texto (o termo é da artista), potência que tornará o espectador capaz de “construir” a sua “imagem mental”. “O texto determina uma potência imagética muito grande como informação descritiva que a foto não dá, reconhece ela, “até a mais banal (das histórias) tem o poder de gerar uma imagem” .
Que estes textos são dotados de uma grande força imagética, a própria experiência da artista atesta. Ao evocar uma história que a impressionou - a da mulher que processou o marido para obter a metade do negativo de sua foto de casamento, que não queria exposta na casa onde ele viveria com sua nova mulher - Rennó nota como ainda é viva a lembrança de seu “esforço” para imaginar esta “sagrada foto de casamento”. Não por acaso, foi justamente esse esforço que desencadeou seu trabalho com os textos, ao lhe revelar quão “poderosa” poderia ser uma coleção de “fotos anônimas e ordinárias latentes”.
Se como bem disse Fabris, na primeira vertente do trabalho de Rennó a visada crítica é constituída pelo “descolamento” da fotografia de seu referente (o que a artista chama de “potencialização da superfície”), com o texto, que já é dotado de potência própria, o espectador só terá acesso ao referente, à “profundidade” da imagem, cabendo-lhe fornecer a sua superfície - a imagem que lhe corresponderia. Para se desincumbir do “trabalho” que lhe é pedido ele será assim levado a convocar o “lastro” – ao mesmo tempo social e individual – que sustenta suas informações visuais “latentes”: ele imaginará a antiga casa do casal, onde a foto estaria colocada (na sala? no quarto? na parede? sobre um móvel?), pensará na sua instalação na nova casa e na perturbação que ela desencadeou – ou seja, ele se perguntará sobre o “lugar” da foto, ou sobre o que Rennó chama de seu “valor”.
A foto sem título (o restaurador) parece reconstituir, pelo menos em parte, esse trabalho do espectador: pois mesmo tendo a imagem em suas mãos, o restaurador “ouve” uma narrativa (como o leitor tem de ler a sua), que deve levá-lo a “criar” uma imagem. Com a diferença de que, tendo a missão de concretizar esta imagem numa fotografia “real”, ele “reverte” a habitual associação entre fotografia e morte trazendo de volta à vida, pelas palavras do filho, aquela que a fotografia só captou na morte.
O tempo é constitutivo do trabalho de Rennó. Ao interrogar a articulação entre memória e esquecimento, identidade e anonimato, sua obra se nutre da passagem do tempo, ela “consagra” a sua consumação (não por acaso, sua obra Bibliotheca utiliza cem álbuns fotográficos que, dentro de uma vitrine, foram fechados para sempre). O uso dos textos também se nutre da passagem do tempo; mas, no sentido contrário, trata-se de um tempo que se projeta no futuro, que nunca se cumpre, permanecendo para sempre “em aberto” – apontando para um devir.
Se a criação de imagens a partir das palavras é, pela sua própria natureza, uma atividade sem limite, os textos de Rennó se inscrevem nessa passagem sempre reposta, eles realizam o devir-imagem da palavra, num movimento que não pára de se relançar. Enquanto as fotografias anônimas ou de arquivos foram “fixadas” para sempre, remetendo a narrativas que já se estancaram, os relatos jornalísticos fazem, por sua vez, com que a criação de imagens mentais, impossíveis de serem “fixadas”, nunca tenha fim.
A turn of the century invention, the camera has been adept at reinventing itself. Yet, never before has the photograph been at a more unpredictable stage of development, transformation and catharsis. The recent proliferation of digital cameras into phones and computers have profoundly altered the way we conceive of and identify the world around us. Ironically, these new enticing agents of image making are intrinsically detached producing innumerable snapshots displacing the popular objecthood of the print photograph.
Contemporary photography in Latin America is somewhat complicated, as the history of the medium has had at times a strong relationship to the literal and associative aspects of a dystopian reality (with the cruel absurdity of photographs being sometimes the only proof of mass disappearances under various authoritarian regimes) alongside unprecedented experimentalism in the 1990’s with the (re)construction of Latin American technocultural imagery. Both are present in the work of internationally renowned Brazilian artist Rosângela Rennó. As an inheritor of this twinned legacy, Rennó has often posed questions about the collective amnesia and authorship of image making in Latin America as a primary means by which authority imposes its power on society.
For her newest work, Rennó invited forty-two photographers to participate in the creation of the exhibition A última foto (the last photo). Each photographer chose a camera from the artist’s vast and diverse personal collection to produce images of the iconic Christ the Redeemer statue that towers above the city of Rio de Janeiro. The impetus for choosing this monument was due to the controversy of the sale of souvenirs associated with Christ the Redeemer and the struggle for copyright control of its image between the family of the French-Polish sculptor Paul Landowski and the Archdiocese of Rio de Janeiro. Questioning control and authorship, Rennó painted ink on the returned camera lenses and selected one image of the statue from each of the forty-two cameras. The resulting exhibition at Galeria Vermelho in São Paulo displayed the "last" images along with the sealed cameras. The camera and photograph diptychs made it clear that the perception of the same iconic statue differed from photographer to photographer because cameras seldom click at the same fraction of a second, and, even more tellingly, the photographers (or any other observer at this heavily populated tourist site) may see the colossal statue at different times and angles demanding a sort of cinematic mode of looking.
For the upcoming exhibition at Prefix, A última foto (the last photo) will be reconstituted through the selection of twenty diptychs marking the first time this project will be exhibited outside of Brazil’s borders. Recontextualized from one locale to another, A última foto will demonstrate the rich connections between national and international alignments and displacements that unwittingly occur when the photograph is witnessed in one place and then another. It is a theme that has a wide relevance. Poignantly, A última foto suggests that even the few iconic images (such as monuments like Christ the Redeemer) that once were virtually the only familiar touristic imagery shared across borders and continents probably have different meanings and resonances because they can be presented in such different ways. In a Canadian context, A última foto is capable of taking on new significance reflecting upon the slow privatization and commmodification of revered Canadian icons such as national parks. Exhibiting A última foto in Canada, a changing nation in which spaces are simultaneously deterritorialized, re-negotiated and recognized provides an ideal forum for the multiple authorship of this work.
A imagem é hoje uma ferramenta de desatenção. Quanto mais imagens conseguimos devorar, mais imagens acabamos por esquecer. Se nossa capacidade de armazenamento é aparentemente muito elástica, a memória ativa guarda apenas uma quantidade limitada de informação. O resto vai para a vala comum do esquecimento. Rosângela Rennó vem revirar esse cemitério e seus mortos.
Desde as primeiras obras, seu objetivo não era somar imagens ao nosso repertório estético, mas se apropriar de um repertório anônimo existente, que deveria ter funcionado como memória afetiva de alguém sem que o espectador pudesse identificar de quem seria. O exercício proposto é justamente aquele que faremos ao tentar afastar a névoa de uma lembrança exilada há muito tempo: como era mesmo o seu rosto?
O anonimato fotográfico permaneceu como questão ao longo de uma produção que percorreu álbuns de família, retratos 3 x 4, imagens de jornal e de arquivos e textos alusivos à fotografia. Mas, ao invés de identificarem, as obras de Rosângela apagam a diferença entre as pessoas, justamente por elaborarem as técnicas de massificação. Nada identifica mais um modelo do que o outro: todos são intercambiáveis, como nos jogos de Rosângela.
A dimensão social do anonimato fotográfico é uma preocupação constante da artista, que mostra os mecanismos institucionais de dissociação entre memória e imagem. Em vez de pessoas, Rosângela apresenta nosso hábito adquirido de lidar com tipos. Característica de nossa memória desatenta, acabamos por esquecer a visão por mais que insistamos: o esquecimento é conseqüência dos modos instituídos de guarda de nossa memória oficial.
Felipe Chaimovich / nov.96
Texto de apresentação do livro Rosângela Rennó, publicado pela EDUSP em 1997
Publicado no catálogo da exposição Sexta Bienal de la Habana - el indivíduo y su memoria (Paris: Association Française d’Action Artistique, 1997, pg. 117)
A localização histórica do trabalho de Rosângela Rennó já diz praticamente tudo: em duas décadas, a artista atravessou as linhas de pesquisa estética que mudaram a fisionomia da produção contemporânea brasileira. De saída, compreendeu o estatuto político da fotografia, como Oiticica fez da imagem reproduzida na imprensa do corpo de Cara de Cavalo morto pela polícia. E também protagonizou o reconhecimento da fotografia dentro do campo da arte, que até o final dos anos 80, ainda fica afirmando a superioridade das formas tradicionais, notadamente a pintura e a escultura, sobre as investigações técnicas da imagem. Com as características mencionadas acima, o arco ontológico dessa artista abrange desde a catalogação de August Sander dos tipos de homens e profissões até o jogo de relações espaciais instaurado na foto-instalação.
Essas informações, conhecidas de quem é do ramo da fotografia, devem ser lembradas no contexto atual por uma razão muito simples: o uso indiscriminado de aparelhos digitais com recursos cada vez mais sofisticados, quando não enfrenta a formação da experiência fotográfica, pode levar a uma produção “ingênua”. As referências de Rosangela Rennó assumem declaradamente um compromisso com a história da fotografia, como demonstra agora ao comprar da agência Magnum uma imagem famosa de Robert Capa mostrando mulheres carregando o retrato fotográfico de seus mortos. O Brasil conquistou um olhar instruído apto a fazer a distinção entre os movimentos estilísticos da arte. Já não se afirmaria o mesmo em relação às diversas maneiras de se pensar o “ato fotográfico” (para usar uma expressão consagrada por Philippe Dubois).
Não que Rosângela Rennó deixe as aporias de lado. Com a recente publicação de seu livro, O arquivo universal e outros arquivos (São Paulo, Cosac & Naify, 2003), por ocasião de uma grande exposição no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro), algumas questões filosóficas continuam a buscar uma saída; por exemplo, para a indagação que leva Walter Benjamin a fazer um alerta contra a “estetização da política”, propondo “politizar a arte”. Pois como fica quando os cadáveres se tornam soberbos? É uma questão difícil se o artista ainda preza a formalização de seu trabalho, sobretudo se este trabalho se vale de imagens da violência.
Uma outra questão, indissociável da natureza política da imagem fotográfica, diz respeito à massa dos “desaparecidos” e anônimos para quem Rosângela Rennó edifica verdadeiros monumentos. Onde estão os personagens designados por números (269, 447, 481, 606, 1202, 1220 e assim por diante), letras (D., T., U., M., X., Y., J., X.X., Y.X. e assim por diante) ou codinomes (vulgo, serginho da brahma, dente de lata, zé penetra, pneu, sangue bom, mosca e assim por diante)? Por não terem um nome próprio e por virarem listas e listas sem fim, é à memória ou à entropia que essas obras nos remetem? Aqui caberia uma releitura da figura do herói.
No aspecto formal, à primeira vista, haveria uma sombra de Boltansky (Paris, 1944) pairando sobre Rosângela Rennó. De fato, ambos cultivam os temas da morte e o gosto por relíquias arrumadas em compilações; e ambos se interessam pela “história dos vencidos”. Boltansky deixa claro que prefere trabalhar com o que chama de “memória pequena” e não com a “grande memória” pois esta, segundo ele, se encontra em livros de história. Contudo, inscrever-se artistica e politicamente na sociedade brasileira requer colocar-se no lugar de um cidadão que ainda está construindo sua memória coletiva. Só recentemente, relatos começam a reconstituir um período sombrio da história brasileira, dos fatos e efeitos da ditadura militar. Sem primeiro narrar o que aconteceu não se constrói nenhum futuro.
Agora, há sim uma “grande memória” que atravessa toda a obra de Rosângela Rennó. Trata-se da história da fotografia, uma admiração que passa por exemplo pela experiência dos correspondentes de guerra. Rosângela Rennó se destaca de um Boltansky, afeito à presença simbólica da luz, quase religiosa, em instalações que aspiram a uma vocação tanto teatral como pictórica. Menos voltado para essa grandiloqüência “sentimental”, o olho de Rosângela prima por um brilho seco, quase uma assepsia. Com ela, o espectador testemunha uma chacina que passou, ele já está dentro da morgue, tentando identificar, isto é, fazer um reconhecimento.
Finalmente, gostaria de deixar uma nota a respeito da natureza dos álbuns e da coleção particular de Rosângela Rennó. No início dos anos 90, muitos artistas despejaram “arquivos pessoais” na arte brasileira, instrumentalizando radiografias do corpo e uma multitude de cartas oriundas do enredo familiar. A maioria redundou em anedotas de cunho psicológico-intimista. Não é fácil fazer sua própria história virar matéria-prima da arte. Leonilson figura entre uma dessas raras constelações, que conseguiu formar uma coerência entre desejo, isto é a voz do singular, e necessidade artística. Cada um à sua maneira, Leonilson e Rosângela são dois vetores que, conjuntamente, exercem uma influência sobre a maneira de expressar a urgência do presente. Rosângela Rennó nos brinda com o submundo, uma camada que justamente não tem voz própria. Vem à tona a força bruta da terceira pessoa, a face de um outro que pode ser bem, bem!, próximo. E obriga-nos a compreender, um tanto por abdução, que não se salva a própria pele sem salvar a do outro junto.
Lisette Lagnado é crítica de arte e curadora independente. Organizadora dos arquivos de Hélio Oiticica (www.itaucultural.org.br) e editora da revista eletrônica Trópico (www.uol.com.br/tropico).
The medium of expression used by Rosângela Rennó in her work is nearly always photography, although sometimes she makes use of text or video. Rarely, however, does she take photographs herself. She prefers to draw on the vast inventory of already-existing images that can be found anywhere, investigating, in various ways, their possible and fluctuating meanings in the organisation of everyday conflict and of affection. This procedure presupposes not only the fact that photographs are kept in archives, but also the intention of laying bare the ethics underlying the production and use of such images. Unhampered by the pretensions to certitude that scientific discourse claims—guided first and foremost by her openness to the uncertain—she builds up an archaeology and a genealogy of photography, situating it as an integral part of a system of knowledge and values that anchors forms of power in society, be they clearly defined or more indistinct. Her main strategy for doing this is to present photographs, which she collects from different sources and chooses for varying motives, in a way that makes them appear uncanny to the eye, even though they are familiar or banal. It is when the images are made opaque through this displacement that their meanings can be renewed. Early in her career, Rennó used photographs that were easily available to her (of herself and her family). It was, however, when she started to investigate the vast corpus of images produced by other institutions and individuals that her project took on greater potency and focus.
A clear example of this is the installation entitled Immemorial [1994]. Covering a long stretch of the wall and the floor immediately in front, dark rows of photographs display larger than life faces of men, and those of a few women and some children. As the viewer’s gaze roams over the photographs some indication is provided as to their probable origin. The eye is immediately drawn to the rigid frontal posture of heads, the dignified but modest clothing, and the sobriety of the look in the eyes staring into the camera lens. We do not know how long ago these images were captured, but the clothes that drape necks and shoulders suggest that it was indeed a long time ago. These features, taken as a whole, lead us to suppose that these portraits were taken as part of the formal identification process for individuals entering employment for the first time. This impression is reinforced by the schematic way in which the faces are framed: as in the passport-style photographs widely used for bureaucratic purposes. The photographs are also all numbered, as if to be filed away in an archive that registers people as data. However, it can be seen at a glance that there is no joy or comfort in these portraits and this sensation is reinforced by the sombre tones in which the images are presented. In fact, their arrangement in space inevitably reminds one of tombstones, a metaphor of the loss of unique lives to anonymity, as the social regulation of the contemporary world requires. Above the photographs, the name of the installation (in white letters on the white wall) only points up the repression of identities to which these portraits paradoxically bear witness.
By selecting and removing these images from the files of a company and presenting them in a place and in a way that is very alien to their original purpose, Rosângela Rennó does not, however, succeed in recovering any of these anonymous identities. What is clear is exactly the act of “unremembering” that labour contracts subject employees to, remoulding their ways of belonging to life along the lines of the asymmetrical power relations on which such contracts are founded. Another striking feature is the role that archive photography exercises in this operation of forgetting what is unique, contradicting its supposed purpose of remembering that which has passed and thereby coming to occupy a symbolic place once occupied by the monument. Confronted only by these portraits, the viewer does not, therefore, know the name of any of these employees, or what post they occupied, whether the children are already dead or are still alive and forgotten somewhere. However, on closer observation, the tense appearance of one, the tight and obviously unsuitable clothes of another, or the frightened look of a third, frozen in time by the camera lens, lead one perhaps to imagine the place and time in which they lived and the reason for the social amnesia into which their desires escaped. It is a dubious perception that recalls the words of the female protagonist in the film Hiroshima Mon Amour [1959], by the French film-maker Alain Resnais (1922), for whom photographs reconstitute the past only “in the absence of anything else”: something undefined that is no more and that cannot be, therefore, fully remembered. It is exactly this ambivalence of the photographic image—that of simultaneously obscuring what it apparently reveals, of bringing obliquely to the memory that which it does not show—that most intrigues and inspires this artist in her work.
In the series entitled Alias [1998-1999], Rosângela Rennó presents blown-up portrait photographs from another archive. Again they are human heads (this time only men) and are also clearly part of a larger collection of images. It is immediately apparent, however, that these photos are different from those of Immemorial: instead of the stark frontal view of the passport photos, these show only the backs of the neck and the crown of the head, with hair that is always cropped very close to the scalp. In only one image can a forehead and part of a face be seen, and even in this case, looking down, as if in submission to the observer. These photographs are also much larger, thereby providing for detailed scrutiny of their content. The originally black and white images are highlighted in red around the swirls made by the hair. The size also reveals brief notes made in the margins of the portraits, suggesting that these were individuals under some kind of institutional control and that they are being studied in some way, like psychiatric patients or prisoners. In a way that is analogous to the official company photos, these certainly once served to confer authority on some disciplinary power that founded and justified systems of regulation. This power is known to have drawn on physiognomic types, such as the shape of the skull and face, which supposedly governed the behaviour of those who transgressed socially-agreed norms.
The photographic archive from which these images are taken is, however, a neutral collection of visual information, serving—through the selection, combination, and comparison of the portraits—not the affirmation of more or less arbitrarily chosen models, but an explanation and manipulation of one dimension of reality. Although the images depict unique lives, they also make them equal and indistinct, a mere list of elements to provide empirical proof of generic discursive statements. By recontextualising a part of this specific archive in her work, the artist once again demonstrates how the photographic medium can veil what it supposedly reveals, without, however, failing to provide information on what is not immediately visible. As a counterpoint to the institutional generation of anonymity to which these images attest, they are accompanied by a video – Alias/Text [1998] – in which hundreds of real nicknames are shown (metal mouth, white devil, mad dog, bad boy, rusty…), providing clearer indication that the images are of prison inmates and making explicit one common way of rejecting and resisting the imposed loss of alterity. This defensive strategy does not, however, succeed in recovering the broken social ties; as such nicknames are soon also listed in other files and deprived of an unequivocal relation to individual subjects, as is paradoxically evidenced by their appearance in this piece. Alias and Alias/Text bear witness, like Immemorial, to the diffuse place that some segments of society are destined in the collective memory through the power of the photographic image.
In her video, Vera Cruz [2000], Rosângela Rennó also juxtaposes text and image, this time in the form of a fictional register—based on the report written by Pero Vaz de Caminha to the King of Portugal – of the arrival of the Portuguese in the land that would come to be known as Brazil and his meeting with the local inhabitants. In this piece, there is almost nothing to be seen, except for the moving image of a supposedly old and scratched film, stained by fungi and in an advanced state of decay. There are sounds, apparently only of the wind and the sea. However, although the image and the voice of the Portuguese explorer are removed—thereby expunging that which individualises and confers immediate identity—the latter is at least recorded in the form of written subtitles. It is not an indistinct form of speech, but that spoken by people who perform specific functions in the group they belong to (captains, priests, soldiers, scribes...) and who react to lived experience in particular ways. This artifice bestows on the words the power to describe the encounter with the other, but also to define those who are strange to them (the Indians) in an undifferentiated way. If the subtitles allow the viewer to imagine the scenes that accompany them—thus in some measure recovering the images that the video suppresses—they also contaminate them with the view of a world where difference is viewed merely as a deviation from a presumed normality. Using little more than the printed word, Vera Cruz also demonstrates how film—even, or perhaps especially, the historical, photographic, documentary film—can be an instrument for inculcating hierarchies and thereby annulling the supposed right to narrate life from different perspectives with equanimity. This reinforces the idea that a text, just like an image created by someone or of something, may serve as an instrument of social forgetting.
If in Alias/Text and Vera Cruz it is the words that seek incessantly and unsuccessfully to oppose the anonymity that the archived images generate, Universal Archive [1992- ] moves in the opposite direction to produce similar results. This piece comprises a set of prosaic writings taken from newspapers, in which there is always some kind of allusion to photographs. From such texts written to be read and practically forgotten in the course of a day, the artist removes the names of the individuals mentioned and replaces them only with initials (the farmer X.Y., the decorator D., the former member of the government M.M., the businessman A....), as well as, in most cases, suppressing information that might situate them in time and place. The writings are thus deprived of any marks of human individuation, thereby reducing their power as evidence and divesting their protagonists of any clear identity. The oblivion to which they were originally destined is thus highlighted and confirmed. Reproduced on the walls on a variety of supports and with varying degrees of visibility (framed, projected or glued), the texts are, however, treated almost as if they were images making up a “universal archive” of facts, and it is left to the observer to use them for creative thinking—anchored in the repertoire of knowledge she or he possesses—and, in this way, supposedly re-remember them. By pointing out their power as images, however, Rosângela Rennó submits the collected texts to the same rationale of indistinctness and oblivion to which archived photographs are subjected.
This offering to the imagination of an archive of images is also present in the installation Farewell Ceremony [2003], made up of about forty photographs of newly-weds, in which the grooms, dressed in the customary fashion, are posed inside cars or on motorbikes. Instead of capturing intimate moments, these images bear witness to scenes that existed only to be photographed and have preserved therefore their singularity. For this reason, these black and white images are somehow imbued with an unequivocally nostalgic tone. Each one pulses with a referent, coming from an unmistakable moment in life: when two people stand together to celebrate a project of shared affection. Magnified and organised as a grid on the wall—a form of spatial organisation that makes what is unique only one of a kind—, these photographs end up, however, diluting what once was of distinctive in the individual expectations of each couple, thereby confirming the annulling role of otherness that archives possess. The unknown and irretrievable length of time that has passed since these scenes were recorded also serves to frustrate the expectation of individuality that they provide. Some of these reproductions have faded regions that dissolve parts of the faces or open up creases, suggesting that some time in the future the “originals” will decompose. These physical alterations in fact serve as indicators that, by being fixed in photographic images, these couples have not only become eternal, but also, in a precise sense of the word, dead; for they inhabit the images, from the very moment they were inscribed in them by a social ritual, as beings vulnerable to what is to come. This is the ambiguous power of photography and it can be compared to the machine dreamt up by a character in Morel’s Invention [1940], by the Argentine writer, Adolfo Bioy Casares (1914-1999), which registers and immortalises images of Morel and his friends in an idyllic situation, but, in turn, afflicts them with a disease that brings about their death. This immobility of the portraits in time also reminds the viewer—by opposition to the progressive ageing process to which the men and women photographed in Farewell Ceremony are inevitably subject—of the inevitability of her or his own death. It is precisely this specular and sombre relation to the work—caused by the weakening of the relation between the images presented and something specific to them—which invites the viewer to remember and project personal narratives into these photographs which have been made to seem alike by the artist.
The variety of events lived through by the viewer also were, however—like those of almost anyone—, many of them registered in photographs, freeing those who participated in them of the need to remember. Instead of memories, only images can be kept, given that they prove and evoke presence in places near or far and participation in rites of encounter or passage. However, as memory is defined by imprecision, fluidity and even capacity for error, photography is the depository of the belief of one who only attests and confirms facts; while one mimics errant past events in seeking to recreate them in thought, the other reduces them to a precise and single portrait, making it less an instrument for remembering than—by subtracting doubt—an agent of forgetting. For being the conventional support for photographs, putting them together in an arbitrary narrative, photograph albums are spaces for registering and forgetting individual lives, occupying a privileged position in the affirmation of the ambivalence of this way of fixing and reproducing images. They are instruments that bring together sets of photographs, prove that someone belongs to a family circle and to a particular age, but, at the same time, deprive them of the complexity of their belonging. In extreme cases, the function of albums as depositories of memory seems to be actively put to the test, as they are often thrown out or sold for next to nothing.
Rosângela Rennó acquired around a hundred of these discarded albums (including various boxes of slides in various formats) from open markets, junk and antiques stores and exhibit them in her installation Bibliotheca [2002] (library). By way of a visual confrontation with this collection of archives—supposed vehicles for forgetting what is subtle and uncertain—she paradoxically seeks to find in photography the function of activating the shifting memory of a fact, and not only admitting, through the certainty that an image brings, its unequivocal past occurrence. At first sight, however—using a strategy that only highlights the position she espouses—the piece frustrates the eye, as it encounters, laid out on small tables arranged in groups, not the albums themselves, but the photographs from their covers printed on brilliant acrylic surfaces, each accompanied by a number from 1 to 100. The objects referred to—the albums for collecting images—can be seen immediately under these covers, enclosed in a transparent case of the same material and partly concealed from view. Unable to touch them and only obliquely visible in the sort of display case in which they are enclosed, they seem only to serve as proof that the photographs on display relate to originals that may not be opened. These display-cases also express, in the colours with which cover them, an order that is constructed and imposed on the articles placed therein, just as in any other library. Each of the albums on display is colour-coded by way of a double territorial belonging: the continent on which the photographs contained in them were actually taken (indicated by the colours on the lid) and the continent on which they were found (indicated by the colours of the friezes). Maps of the world installed on the wall nearby each group of four or five of these display-cases are marked with pins which inform the ultimate destination of the albums exhibited and whose heads bear their catalogue numbers and the colours identifying their place of origin.
By blocking visual access to the private narratives probably contained in each album, the artist clearly unstitches the intimate relation that photographs have with the time and place they were taken, making them, through this imposition of blindness, belong to an indistinct place and an imprecise time. She therefore hides images so that only from the way they are catalogued can they be made available and reinvented, on the basis of various references in the minds of the observers who cannot actually see them. This desire to recover a mnemonic sense for photography, which marks Rosângela Rennó’s work, is expressed in different ways by two other components of Bibliotheca. One is a card-index for each of the one hundred albums, in which it is possible to read descriptions of their physical characteristics and (supposed or proven) iconographic content. The cards also reveal more information on the geographical provenance of the images the albums contain and the locality where they were discovered. Once again, there is here a clash between text and photography as different ways of approaching facts. However careful scrutiny of the cards cannot match up to the experience of actually seeing the scenes contained in the sealed albums to which they refer. Not only because what is written in them is impossible to describe completely even in the case of the simplest of images, but also because the text, precisely through its descriptive incompleteness, requires the reader to recreate the images in imagination, which spills over, into the realm of re-enactment in thought, the remembrance of stories that the viewer him or herself has lived through. The content of the index cards, therefore, simultaneously falls short of and goes beyond the narrative power of the unseen photographs.
Finally, there is a book, also called Bibliotheca. There is no text in it, only hundreds of copies made of images contained in the albums before they were locked away, thereby justifying the fact that this object has the same name as the installation as a whole. However, there is no indication in the book as to what the photographs refer to or as to their origins. They are displayed in an order determined only by formal or symbolic juxtapositions. Furthermore, by separating these images from their original supports—the albums enclosed in the display-cases—, the artist frees them once again from their function of bearing witness to the construction of unique stories inscribed in a given historical time, turning them, in the process, into mere ruins of the course of past lives. Analogous to the discursive descriptions of the albums organised in the card-indexes, the disorderly and anonymous presentation of the images extracted from them presents anyone casually leafing through the book with the possibility of recovering and projecting onto this new and vague archive of other people’s lost memories their own remembrances, themselves often almost decomposed. Thus, as users of ordinary libraries choose books, in this installation it is the visitors who, by choosing the archived images that interest them or awaken memories, make this collection of information something that belongs to each one and explain the piece in a different way. There is thus not just one Bibliotheca but many.
The potential knowledge that any photograph contains is not, therefore, entirely anihilated by its use as a substitute for memory, which, in turn, induces amnesia. Its surface is abuzz with information ready to be brought to life as facets of cognition of that which it represents as an image shorn of flesh. Furthermore, as if to show such persistence against all evidence, Rosângela Rennó takes from sets of photographs taken by the police at four crime scenes—to register the facts as a basis for investigation—and deconstructs each one into many other images. All these pieces—each one framed as a slide ready for projection – are laid alongside one another on tables or light boxes, inviting the observer to recompose mentally the photographs relating to each of the crimes. Interrupted by the edge of the frames, the scenes lose, however, their power to provide information on the event that they supposedly register. The hierarchy of visual values they contained is broken down and the eye wanders from one fragment to another without knowing for certain where it should rest. This effect, in fact, superimposes itself on the deprivation of the corpses photographed of their alterity, which was already underway from the moment the images were archived as part of the criminal investigation. It is no accident that this series of four pieces is entitled Erasing [2005]. It is the very obliteration of meanings and identities that allows one to see what would be imperceptible if the photograph were preserved as a whole: papers over a wardrobe, the image of a child in a portrait frame, clothes scattered on the floor, knick-knacks on a piece of furniture, the shadow of a fence cast on the ground, rotten fruit, a window ajar, a bottle left in a corner, the hair on the legs of a corpse.
The procedure the artist uses here comes close to that of the photographer in the film Blow-Up [1966], by the Italian director Michelangelo Antonioni (1912), who cuts and blows up a photograph taken by chance because he suspects that in a corner of the photo far removed from the main image there is proof that a crime was committed. In both cases, there is a certainty that photographs also carry an “infra-knowledge”, partial and merely suggested information that cannot be reduced to the facts they present as unequivocally important. Such strategies also contain the idea that a photographic image does not only register the moment of occurrence of a principal fact, but diverse instants, in which sub-events blend into each other, modify and become confused with one another in a heterogeneous way. Although impossible to demonstrate, this notion becomes implicit when Rosângela Rennó superimposes on some of the “erased” crime images fragments of other photographs, thereby forming a palimpsest of scenes that allude not only to separate places but also to different times coexisting in the same fact. The referent is thus not fixed and readily available in the photograph, but established in various ways under the scrutiny of a plurality of observations.
It is of this very imprecision and latent power of the photographic image that the artist seeks evidence in much of her work, making it an important prerequisite for the archaeological investigation of this universally applicable means of reproduction and for understanding the role it plays in social relations. By shifting the focus, blurring, blotting, contradicting, decentring, translating, fragmenting or displacing images that already exist inserted into circuits where signs move rapidly, Rosângela Rennó simultaneously immobilises them and reconstitutes, in the eye of the viewer, the power to resignify them on the basis of a subjectivity that is in part constituted by these very images. Few times this critical desire was most clearly stated than in the panels containing old photographs which were painted over in lead paint to obliterate their power to register or recall something that was lived. Of all the artist’s work, this Blind Wall [2000] perhaps best symbolises the impossibility of finding out about the past by way of carefully catalogued and well-defined images, and makes a powerful case for the existence of “margins of visibility” in any photograph, beyond which nothing more can be seen in it. Desiring to step beyond these margins entails relinquishing blind faith in the photographic image, suspending belief in its established codes and understanding the way it is ambiguously inscribed in the course of life. It entails admitting, even in the face of the clearest of images, that the not yet known may, by way of scrutiny and investigation, insinuate into it.
. FABRIS, Annateresa. "O outro eu". In CCSP– 91:Produções recentes. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1992.
O Outro Eu
Retrato Fotografico: realidade e autenticidade.
Retrato Fotografico: desapropriacao de identidade/ afirmacao do outro.
A crenca positivista da burguesia do seculo passado e a reflexao radical de Roland Barthes imbricam-se sutilmente em A identidade em jogo , cujo eixo central e’ a questao do retrato fotografico como imagem de consumo. Da evidencia , tao enfatizada pelos codigos sociais emerge a ficcao do ser que posa diante do aparelho e que se transforma em imagem. Uma superficie ao mesmo tempo tenue e densa, na qual se inscreve a abdicacao do sujeito `a sua unicidade para converter-se em objeto, para submeter-se ao ciclo repeticao/reproducao , territorial e espacialmente. Nada melhor para provar essa logica produtiva, segundo a qual a identidade se atomiza na quantidade e obedece ao pressuposto tacito da repeticao do ritual diante do aparelho, do que omaterial escolhido por Rosangela Renno. A fotografia de identificacao, produto coercitivo, mas do qual vastas camadas da sociedade encontram satisfeito o desejo de deixar a prova objetiva de sua existencia, poe a nu o mecanismo intrinseco `a imagem tecnica, sua dupla filiacao `a esfera da verdade e `aquela da ficcao, pois da vida a um verossimil ensaiado, ao paradoxo do Narciso despersonalizado.
Esse efeito de estranhamento e’ reforcado por Rosangela Renno’ pelas va’rias manipulacoes a que se submete seu arquivo de imagens de consumo que acabam por potencializar a percepcao do processo de geracao/ circulacao de seus icones. ‘E significativo que, em alguns conjuntos, a fotografa explore diretamente o negativo , o outro lado da imagem dada a ver `a sociedade, ora para obliterar sua visibilidade, ora para torna’-la ainda mais evidente. Instaura-se deste modo, um jogo de remissoes na qual identificacao e desidentificacao se perseguem ao infinito, se transformam num ponto de encontro entre o corpo e o fantasma, entre o real instaurado e a latencia do real.
No outro grupo de trabalhos, Rosangela inverte essa logica articuladora para concentrar-se na desconstrucao da mistica identidade e revelar o processo social que a rege. Nao e’ por acaso que o quebra cabecas e’ o modo de formalizacao escolhido por ela : a imagem e’ construi’da aos poucos, por fragmentos para alcancar nao o imprevisivel, mas uma configuracao predeterminada, na qual o jogo desvela sua estrutura de imprevisto controlado.
Ao explorar o estatuto social da fotografia, sua circulacao e seu funcionamento no interior do Mercado de signos, o objet trouve’ de A identidade em jogo evidencia a realidade precaria da imagem, sua obviedade numa sociedade visualmente polui’da, seu valor de troca. Nao se detem, contudo, nessa primeira constatacao, estabelecendo um jogo dialetico entre a apropriacao como distanciamento do sistema de arte e como partipacao imediata deste mesmo sistema. Enquanto objet trouve’, o retrato de identificao, justapondo e condensado ganha uma nova forca semantica, um impacto em uma densidade visual que o fazem transitar do insignificante ao significante.
A dimensao da citacao, no qual se poderia pensar num primeiro momento revela sua verdadeira natureza de apropriacao como processo que coloca em crise a nocao de autoria, instaurando um mecanismo de distanciamento do sujeito e da subjetividade tradicionalmente atribuida a arte. Visto por este prisma, o ciclo repeticao/reproducao, que rege o estatuto da imagem de consumo, ganha um novo significadfo se a ele aplicarmos uma reflexao de John Berger,que parece responder a proposta de Rosangela Renno’.
Se a reproducao de uma imagem, como afirma Berger, desencadeia um duplo movimento – remissao ao original e estabelecimento de um novo ponto de referencia para outras imagens-, e’ realmente este processo fundamental de A identidade em jogo, sobretudo se lembrarmos que Rosangela Renno’ opta por uma estrutura peculiar como a instalacao. No espaco criado, necessariamente diferente do circuito convencional da imagem de consumo, Rosangela Renno’ afirma seu fasci’nio pela IMAGEM, longe de toda a referencia culturalista, de toda distincao qualitativa ou hiera’rquica. Seus icones adquirem um poder transformador, pois a fotografa nao os recebe mais como fontes de identidade/identificacao, mas como integrantes de um processo de ficcao e de distanciamento cri’tico e participativo ao mesmo tempo.
.FABRIS, Annateresa. "The Other I". In CCSP– 91:Produções recentes. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1992.
The Other I
Photographic Portrait: Reality and Authenticity
Photographic Portrait: Disappropriation of Identity/Affirmation of the Other
Last century’s positivist, bourgeois beliefs and Roland Barthes’s radical reflections subtly intermingle in “The Identity at Play” whose central theme is photographic portraits as images of consumption. Accepted social codes are dismantled, exposing the fiction of the being who poses in front of the apparatus and transforms himself into an image. This image appears as a tenuous, dense surface on which the subject’s abdication to his uniqueness is inscribed. He thereby converts himself into an object, spatially and territorially submitting himself to the reproductive/repetitive cycle. Nothing demonstrates this productive logic -- in which identity quantitatively atomizes itself and obeys the tacit assumptions involved in repeating the ritual in front of the apparatus -- better than the material chosen by Rosangela Renno. Although the I.D. photo is a compulsory product, here vast segments of society satisfy their desire to leave objective proof of their existence. This photo unveils the mechanism intrinsic to the technical image, its double loyalty to the spheres of truth and fiction, giving birth to a rehearsed verisimilitude, to the paradox of a depersonalized Narcissus.
Rosangela Renno reinforces this alienation effect by manipulating her archive of images of consumption in different ways, ultimately strengthening perceptions of the ways in which her icons are generated and circulate. It is significant that in some groupings, photography directly exploits the negative, the other side of the image that society is allowed to see, sometimes obliterating its visibility, sometimes making it even more evident. In this way, a game of erasure is established in which identification and unidentification eternally chase each other, transforming themselves into the site where body and ghost meet, midway between the established and the latent real.
In another collection of work, Rosangela inverts this organizing logic in order to concentrate on deconstructing mystical identity, and in doing so, reveal the social processes it governs. It is no accident that the form she has chosen is a jigsaw puzzle: the image is constructed bit by bit, using fragments to attain not the unpredictable, but a predetermined configuration where the game unveils a structure of the controlled unexpected.
By exploring photography’s social dimension, its circulation and function inside the market of signs, the objet trouvé of “The Identity at Play” clarifies the image’s precarious reality, its exchange value, its obviousness in a visually polluted society. However, it does not stop at this first discovery, but establishes a dialectical game between appropriation as a means of maintaining a distance from the art system, and as instantaneous participation in this same system. Although the objet trouvé, the I.D. photo, gains new semantic strength through juxtaposition and condensation, its dense, visual impact compels it to move from the insignificant to the significant.
At first, one might think that the dimension of quotation reveals the true nature of appropriation as a process which puts notions of authorship at risk, installing a mechanism which distances both the subject and the traditional subjectivity attributed to art. Viewed through this prism, the cycle of repetition and reproduction which rules the laws of the image of consumption gains a new meaning if we apply one of John Berger’s theories which appears to respond to Rosangela Renno’s proposal.
If, as Berger suggests, reproducing an image sets movements in motion, one which returns to the original and another which establishes a new reference point for other images, this is the fundamental action of “The Identity at Play”, especially if we keep in mind Rosangela Renno’s extraordinary installation structure. In the space she has created, which is, of course, different from the conventional circuit of the image of consumption, Rosangela Renno declares her fascination for the IMAGE, far from all cultural references, far from all qualitative or hierarchical distinctions. Her icons acquire a transformative power, for the photographs no longer greet us as sources of identity/identification, but as participants in a fictionalizing and distancing process that is simultaneously critical and participatory.
CAMERON, Dan. “Entre as Linhas” [Between the Lines]. In Rosângela Rennó. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1995, p.6-9.
A arte de Rosângela Rennó lida com a impossibilidade de memória coletiva, e o modo com que ela tende a ser sifonada pelos receptáculos que desenvolvemos para contê-la. Embora a descrição possa parecer extremamente direta, e embora a combinação de fotografia e texto continue sendo para muitos artistas contemporâneos um campo prático definido, existem vários aspectos da prática de Rennó que diferenciam sua obra daquela de outros artistas que trabalham estruturas estilísticas paralelas em outras partes do mundo. Entretanto, o impacto de sua obra se extende para muito além das discussões sobre sua comparativa originalidade, o mesmo sobre sua considerável habilidade em lograr realizá-la.
Por um lado, ela tem estado profundamente engajada pelas qualidades visuais de fotografias antigas (ou nem tão antigas) e semi-autônomas, em especial aquelas que foram produzidas para fins institucionais, jornalísticos, ou legais, e onde houve pouco ou nenhum esforço de produzir uma imagem do modelo que pudesse ser considerado como artística. De fato, às vezes ocorre que as imagens selecionadas por Rennó como base de uma determinada peça mal possam ser decifradas como a semelhança de determinada pessoa. Como exemplos de representação, elas permanecem marginalizadas, tanto no sentido literal como no sócio-cultural da palavra. As imagens estão freqüentemente fora de foco, e seu desafio à autoridade visual de nosso mundo – em outras palavras, ao papel ominipotente desempenhado por uma imagética fotográfica de alto contraste, gerada por computador e baseada em vídeo é quase digna de pena em sua modéstia. Porque elas nos lembram nossos limites e imperfeições (para não dizer nossa mortalidade), as imagens de Rennó provocam uma reação complexa, composta em partes iguais de nostalgia e rejeição do passado.
Para Rennó, a seleção e desenvolvimento de textos tem sido outra preocupação. Procurando seu caminho por entre as vastas florestas de boatos, insultos amargurados e puro folclore que constituem atualmente a imprensa – sobretudo num país com hábitos de leitura tão diversos e vorazes como o Brasil –, Rennó isola e nos devolve certos fragmentos em forma de citações anônimas. Enquanto não podemos valer-nos das fontes para estes fragmentos, e devemos então abandonar nosso compreensível instinto para vê-los como parte de uma continuidade narrativa, o sabor e a intenção originais de cada pedaço de texto são bastante claros. De fato, ao absorvermos os significados submersos que as técnicas de recorte e colagem de Rennó tendem a trazer à luz, nos tornamos igualmente conscientes do fato duplo de que o pretenso leitor do texto não somos nós e que, mais importante ainda, os significados que escolhemos através da reconfiguração de Rennó pretendiam ser absorvidos apenas no nível mais inconsciente e subliminar pelos grupos de consumo aos quais estas revistas e jornais foram dirigidos.
Na [ instalação Hipocampo ], Rennó temporariamente deixa de lado a fotografia por completo e resolve focalizar apenas as palavras – ou melhor, os textos que tomam a forma imagética. Apresentando estes textos através de um complexo sistema de iluminação que modifica de modo significativo a relação perceptual do visitante com a sala em que são exibidas, Rennó transforma o ato público da leitura numa espécie de jogo de visibilidade, invisibilidade e claro-escuro. O ato de tornar visível que é transmitido pela lenta metamorfose de uma parede aparentemente vazia em blocos de texto nos assegura que a relação com a fotografia (sob a forma de técnicas de câmera escura) ainda se vê bastante presente.
De modo realmente profundo, Rennó está interessada nas sobras da cultura – naquilo que foi deixado de lado durante o processo de resolver-se o que tem valor. O irônico nome de Arquivo Universal por ela dado à sua vasta coleção de materiais encontrados reflete uma noção de que a sociedade poderia freqüentemente ser melhor representada justamente através dos tipos de objetos aos quais ela não deseja delegar a responsabilidade de sua imagem. Sua maneira de re-apresentar este material desfaz uma parte da mística da representação, e nos proporciona (em seu lugar) um autoretrato coletivo, baseado nas incontroversas meias-verdades que constituem grande parte da dieta cultural de qualquer indivíduo razoalvelmente letrado. Neste preciso enfoque detalhístico, porém, a atividade de Rennó também pode ser compreendida como uma tentativa de rehumanizar o processo de receptividade para leitores e espectadores. Sua suposição não-declarada parece ser a de que até mesmo o aparente descuido com que as palavras são utilizadas por uma sociedade que se baseia na informação seja apenas o que ela nos convida a fazer. Através do reconhecimento e captura dos aspectos humanos de uma área cada vez mais desumanizada da produção cultural, Rennó nos lembra também que a busca de valores universais constitui o verdadeiro significado da arte.
Dan Cameron / 1995
(publicado em catálogo de exposição na Galeria Camargo Vilaça, São Paulo, 1995)
Rosângela’s Rennó’s installation for the Twenty-Second International São Paulo Biennial uses photographs from family albums and texts gathered from newspapers to articulate the singularity of personal histories with facts which appear in the mass communication media. Blown up and darkened, the photographs are juxtaposed with texts which refer to photographs in news fragments, texts where humam frailty and wretchedness are revealed for the creation of a space to experienced in black and white silence.
They evoke an intensely private life, secret and intimate, and in the effort of allowing themselves to be contemplated they resort to our natural curiosity about the lives of the others. They propose meditations on the image, the creative process and the experience of living in a world where everything has already been invented and is saturated with images and information. Trough an experience of the place where they lodge themselves, they seek to estabilish some possibility of singularity, of the individuation of existence.
It is not a question of writing biographies or an autobiography. On the contrary. The installation proposes to keep away any definition or affirmation of reality so as to create an interaction with the spectator, who is capable of inventing a reality from the interstices of image and texts. But there is something beyond the indetermination of references: texts and images appear as though they were reprocessing memories in addition to fragments of a history, of any history, including that of photography itself. Since the beginning of her career Rennó has dedicated herself to a systematic investigation of the effects of time, forgetting, and social and psychological changes as transformers of memory recorded by photography, in its own right a process of transforming experience into memory.
What is the meaning of these decontextualized texts and images? I propose here to look at the past, to what has already happened, and is used as a deliberate strategy of disguise, infinitely more complex than mere nostalgia or any appeal of an ideological nature. Questioning the codes of identification, photographs are not merely self-evident reproductions of the real – Rennó is interested precisely in the imperfection of memory and photography, as they both fragmentary and approximate lived experiences -, but they are constructs, the product of a way of seeing which ensnares the spectator in a politics of the gaze, proof of the observer as master of the observed.
The thexts appearing alongside the images would be at once parameter and commentary, which might lead the spectator to seek within himself for the keys to an understanding of the environment created by the artist. And yet they estabilish a primordial distance between the text and the image. They concede no explanation which might be manipulated to constitute a meaning or shed light on what we are attempting to see. On the contrary, in phisically distancing themselves from the image they emphasize the space of indefinition. The narrative support trancende the literalness of words and gesture which selects them, channeling notions of state, statute, and indentity which express the precariouness of the implicit.
Rennó is not concerned with the opposition between text and image in the manner of other contemporary artists. The juxtaposition of texts and images, where each is charged with indefinition is not enough to bestow meaning, for the pairs are not agents of the construction of a possible interpretation. This task is left to the spectator who must construct a meaning for them.
Photographs and texts juxtaposed within an environment, are not “empty” only because we cannot know exactly to what it is that they refer.
There is much more beyond the indeterminacy of references. On being presented out of their contexts, they (photographs and texts) reaffirm their condition as things past and reveal with lightness their initial condition for the establishment of another situation, another inscription, other sgnifiers. If what they present is not clearly identified, there is a precise meaning for the place to where they are going: outside the picture, to a space beyond the surface upon which they are supported, to their own perception. Because they are part of the record of a history about the process of the emptying of the image, for it no longer appears unaccompanied and we are left with the responsibility of establishing the connections between image and text.
Rennós installation intende to enable a sort of future memory of the present in a game with time, where past and present unite, are superimposed and are confused. The artist does not shed us in search of a meaning for these photographs ad images as much as she invites us to create an image and found a memory.
Ivo Mesquita
Rosângela Rennó – 22ª Bienal de São Paulo
A instalação de Rosângela Rennó para a 22ª Bienal de São Paulo utiliza fotos de álbuns de família e textos colhidos em jornais, articulando o papel da singularidade das histórias pessoais com os fatos aparecidos nos meios de comunicação de massa. As fotos, ampliadas e escurecidas, justapõe-se a textos com referências a fotografias em fragmentos de notícias onde se revelam a fragilidade e as misérias humanas, para criar um espaço a ser experimentado em seu silêncio branco e preto. Evoca uma vida, intensamente privada, secreta e íntima, recorrendo, no esforço de dar-se à contemplação, a curiosidade natural de todos nós pela vida do outro. Propõe uma reflexão sobre a imagem, o processo criativo e a experiência de viver em um mundo onde tudo já foi inventado e está saturado de imagens e informações. Procura instaurar, através da experiência do lugar em que se alojam, alguma possibilidade de singularidade, de individuação da existência.
Não se trata de escrever biografias ou uma auto-biografia. Ao contrário, a instalação se propõe a ficar longe de qualquer definição ou afirmação da realidade para criar uma situação de interação com o espectador, este sim, capaz de inventar uma realidade a partir dos interstícios das imagens e dos textos. Mas há mais que a indeterminação das referências: textos e imagens aparecem como reprocessando memórias tanto quanto fragmentos de uma história, de qualquer história, inclusive a da própria fotografia. Rennó, desde o início de sua carreira, vem se dedicando a uma investigação sistemática sobre os efeitos do tempo, do esquecimento e das mudanças sociais e psicológicas como transformadores da memória registrada pela fotografia, que por sua vez, é um processo de transformação da experiência em memória.
Qual é o sentido destas imagens e textos descontextualizados? Minha hipotése é de aqui o olhar para o passado, para o já acontecido, é usado como estratégia deliberada de disfarce infinitamente mais complicada que uma simples nostalgia ou que qualquer apelo de caráter ideológico. Questionando os códigos de identificação, as fotografias não são simples reproduções auto-evidentes do real – Rennó justamente se interessa pela imperfeição da memória e da fotografia, pois ambas são vivências fragmentárias e aproximativas – mas são construções, produtos de um modo de olhar que enreda o espectador numa política do olhar, que evidencia o espectador como senhor do observado.
Os textos escavados ao lado das imagens seriam ao mesmo tempo parâmetro e comentário, que levariam o espectador a buscar no interior deles as chaves para a compreensão do ambiente criado pela artista. Entretanto, eles estabelecem uma distância primordial entre texto e imagem. Não concedem uma explicação que pudesse ser manipulada como constituinte de um sentido que jogasse luz sobre o que estamos tentando ver. Ao contrário, distanciando-se fisicamente da imagem eles acentuam o espaço de indefinição. O suporte narrativo transcende a literalidade das palavras e do gesto que os escolhe, veiculando noções de estado, de estatuto e de identidade que exprimem a precariedade do ímplicito.
Rennó não está preocupada com a oposição entre texto e imagem como outros artistas contemporâneos. A justaposição de textos e imagens, onde cada um deles é carregado de indefinição, não é suficiente para conferir-lhes um sentido, pois as duplas não são agentes da construção de uma possível interpretação. Esta tarefa é deixada ao espectador que deverá construir um sentido para eles.
Fotografias e textos, justapostos no interior do ambiente, não são “vazios” apenas porque não podemos saber exatamente a que eles referem. Há muito mais que a indeterminação da referências. Ao serem apresentados fora de seus contextos, eles (fotos e textos) reafirmam sua condição de passado e revelam com leveza sua condição inicial de instaurar uma outra situação, uma outra inscrição, outros significantes. Se o que eles apresentam não está claramente identificado, há um sentido preciso de para onde eles se dirigem: para fora do quadro, para um espaço além da superfície onde estão apoiados, para a própria percepção. Porque eles fazem parte do registro de uma história a respeito do processo de esvaziamento da imagem, pois ela não vem mais sozinha e nós somos deixados com a responsabilidade de estabelecer as pontes entre imagem e texto. A instalação de Rennó pretende possibilitar uma espécie de memória futura do presente, num jogo com o tempo, onde passado e presente se unem, se sobrepõe e se confundem. A artista não nos lança em busca de um sentido para essas fotos e imagens tanto quanto nos convida a criar uma imagem e fundar uma memória.
Pedrosa, Adriano. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2002. Folder de exposição [exhibition folder].
The organization (of nature, of culture) is perhaps modernity’s synthetic task. The most comprehensive and concrete manifestations of this overwhelmingly obsessive and totalizing activity, whose roots are deeply embedded in the Enlightenment, are familiar to all of us: the library, the museum, the encyclopedia, the dictionary. Such institutions collect, conserve, organize, classify, define and interpret a wide spectrum of less tangible (words) or more concrete (things) objects. Recently, the French philosopher Jacques Derrida diagnosed a rather threatening and infectious fever related to this spirit “archive fever” (le mal d´archive).
Rosângela Rennó has been contemplating archives in a critical and poetic way since the end of the ‘80s. Her interest lies primarily in that manifestation which is as special as it is mundane, found mid-way between words and things, and common to both high and low culture: photography. However, Rosângela is a photographer who (almost) does not photograph — an attitude that seems to be founded on the realization that every second the world is flooded by an excess of images.
Rosângela’s interest in what Paulo Herkenhoff has called a “critical portrait of photography” can be seen in her first, more object-like works. She has used photography to re-semanticize other aspects of this medium such as: the political (Paz Armada [Armed Peace], 1990/92); the domestic (Private Collection, 1992/95); the amorous (As Afinidades Eletivas [Elective Affinities]; 1990), the semantic (Private Eye, 1992/1995); and that of genre (Os Homens São Todos Iguais [Men Are All the Same], 1990), in a precise, ironic and ambivalent manner.
Considering the excessive amount of images, Rosângela has chosen to immerse herself in those lost, forgotten or rejected files and albums which wander throughout the world. This is the case with the photographs created from archives of negatives of the Museu Penitenciário Paulista [Penitentiary Museum of São Paulo]: the series Cicatriz [Scar] (1996), Museu Penitenciário/Cicatriz [Penitentiary Museum /Scar] (1997-1998) and Vulgo [Alias] (1998). The notion of the scar here is dealt with in different ways: the prisoners’ ephemeral memories, the uncertain destiny of an archive of 15,000 negatives, the indelible marks incarceration and tattoos leave on individuals and their images. Another connection is established with anonymity: the images which Rosângela enlarges and brings to the Museum never explicitly reveal their objects: all individuals remain almost anonymous except for their distinguishing marks, which are scars and precarious inscriptions inscribed on their skin with ink.
In the Série Vermelha [Red Series] (2000), 16 old photographs of men and children wearing uniforms were collected, recovered, enlarged and transformed into red monochromes. There’s an ambivalence between pure form (red monochrome) and an urgent content, in which color adds new meanings to the images (which range from the role of the military in recent Brazilian history to the emblematic color of socialism). In Espelho Diário [Daily Mirror] (2001), the artist personifies several characters based on 133 stories of women named Rosângela. Here, Rosângela strategically projects herself onto the other and reinvigorates old photographic themes on video: subject and object, portrait and self-portrait, document and fiction.
Bibliotheca [Library] is one of the artist’s most ambitious projects. In 37 display windows and 100 photography albums Rosângela unveils, hides and imprisons domestic photographic archives from several origins, appropriately mapped and filed for our scrutiny. The connection to representation is radicalized with the photograph of the photograph’s archive and the beautifully meticulous comments found in the small metal archive which collects, conserves, organizes, classifies, defines and interprets the albums we can only see from the side, and which we are not allowed to touch, let alone open. The file card of album 36 is revealing:
“There are no signs that the album has been used during any moment of its long existence. It could be said that its pages remain immaculate, despite all marks left by time. It seems as if it has been very carefully stored for decades, since it was acquired in its original, although somewhat damaged, cardboard box. What is significant and melancholic in relation to the existence of this document is that it only seems to have been touched by the passage of time and never by human hands. An empty document, though filled with significance.”
A photograph is worth a thousand words, but it’s impossible to write them down with decency.
— Adriano Pedrosa, curator
A organização (da natureza, da cultura) talvez seja a tarefa-síntese da modernidade. As manifestações mais concretas e cabais dessa atividade, com raízes profundamente iluministas e caráter assustadoramente obsessivo e totalizante, são conhecidas por todos nós: a biblioteca, o museu, a enciclopédia, o dicionário. Tais instituições colecionam, conservam, organizam, classificam, definem e interpretam um variado espectro de objetos, sejam eles menos palpáveis (as palavras), sejam mais concretos (as coisas). Recentemente, o filósofo francês Jacques Derrida diagnosticou certa febre ameaçadora e contagiante nesse espírito: o mal d´archive.
Rosângela Rennó vem especulando de forma crítica e poética sobre o arquivo desde o final dos anos 1980. Seu interesse reside naquela manifestação tão especial quanto mundana, a meio caminho entre as palavras e as coisas, comum à alta e à baixa cultura: a fotografia. Rosângela, porém, é uma fotógrafa que (quase) não fotografa, uma atitude que parece se fundar na constatação do excesso de imagens que a todo segundo inundam o mundo. Esta é a primeira grande exposição panorâmica da artista, reunindo trabalhos realizados desde 1990 até seu mais recente projeto, produzido com o auxílio do Museu e aqui exibido pela primeira vez: Bibliotheca (2002).
Desde suas primeiras obras, mais objetuais, anunciava-se o interesse de Rosângela, algo que Paulo Herkenhoff denominou “retrato crítico da fotografia”. Pela fotografia, eram ressemantizados seus aspectos político (Paz Armada, 1990/92), doméstico (Private Collection, 1992/95), amoroso (As Afinidades Eletivas, 1990), semântico (Private Eye, 1992/95) e de gênero (Os Homens São Todos Iguais, 1990) de forma precisa, irônica e ambivalente.
Diante do excesso de imagens no mundo, Rosângela opta por debruçar-se sobre aquelas que vagam por ele: álbuns e arquivos perdidos, esquecidos ou rejeitados. Esse é o caso das fotografias produzidas a partir dos arquivos de negativos do Museu Penitenciário Paulista: as séries Cicatriz (1996), Museu Penitenciário/Cicatriz (1997/98) e Vulgo (1998). A noção de cicatriz aqui é posta em jogo de diferentes maneiras: a memória evanescente dos presidiários, o destino incerto de um arquivo de 15 mil negativos, a marca indelével da tatuagem e do encarceramento dos indivíduos e de suas imagens. Outro jogo é estabelecido com o anonimato, e as imagens do arquivo penitenciário que Rosângela amplia e traz ao Museu nunca revelam seus objetos de forma inequívoca: os indivíduos são mantidos quase anônimos a não ser pelas marcas de reconhecimento que são as cicatrizes e precárias inscrições com tinta na pele.
Na Série Vermelha (2000) 16 antigas fotografias de homens e crianças trajando uniformes foram colecionadas, recuperadas, ampliadas e transformadas em monocromos vermelhos. Há uma ambivalência entre a pura forma (o monocromo vermelho) e o conteúdo urgente, no qual a cor adere novos significados às imagens (do papel dos militares no Brasil de outros tempos à cor emblemática do socialismo). Em Espelho Diário (2001), a artista personifica diferentes personagens baseadas em 133 histórias de mulheres de nome Rosângela. Aqui, Rosângela projeta-se estrategicamente no outro e revigora no vídeo velhos temas da fotografia: o sujeito e o objeto, o retrato e o auto-retrato, o documento e a ficção.
Por fim, Bibliotheca talvez seja o mais ambicioso trabalho da artista. Em 37 vitrines e 100 álbuns de fotografia, Rennó revela, esconde e encarcera arquivos fotográficos domésticos de várias origens, apropriadamente mapeados e arquivados para nosso escrutínio. O jogo com a representação é radicalizado com a foto do arquivo da foto e com os comentários deliciosamente minuciosos encontrados no pequeno arquivo de metal, que coleciona, conserva, organiza, classifica, define e interpreta os álbuns que vemos apenas de lado, e que não nos é permitido tocar, muito menos abrir. A ficha do álbum 36 é reveladora:
“Não há sinais de que o álbum tenha sido utilizado em algum momento de sua longa existência. Poder-se-ia dizer que as páginas permanecem imaculadas, apesar de todas as marcas deixadas pelo tempo. Parece ter sido guardado por décadas, com bastante cuidado, já que foi adquirido com sua caixa original em papelão, ainda que bastante danificado. O que há de significativo e também melancólico, relacionado à existência desse documento, é que ele parece ter sido afetado apenas pela ação do tempo e jamais pelas mãos humanas. Um documento vazio, porém, repleto de significado.”
Uma fotografia vale por mil palavras, mas é impossível escrevê-las com retidão.
— Adriano Pedrosa, curador
Rosângela Rennó’s art deals with the impossibility of collective memory, and the way that it tends to get siphoned off by the receptacles that we have developed to contain it. As direct as such a description sounds, however, and as defined an area of practice as the combination of photography and text remains for many contemporary artists, there are several aspects of Rennó’s practice that make her work quite distinct from those of other artists working within parallel stylistic structures in other parts of the world. Still, the impact of her work extends far beyond arguments about its comparative originality, or even her considerable skills in getting it made.
On the other hand, Rennó has been deeply engaged by the visual qualities of old (or not so old), semi-anonymous photographs, especially those produced for institutional, journalistic or legal purpose, and where little if any attempt was made to produce an image of the sitter which could be thought of as artistic. In fact, it is sometimes the case that the image(s) which Rennó selects as the basis of a particular piece can barely be deciphered as the likeness of a particular person. As examples of representation, they remain marginalized, in both the literal and sociocultural senses of the world. Their focus if often fuzzy, and their challenge to the visual authority of our world – in other words, to the omnipotent role played by high-contrast photographic, computer-generated and video-based imagery in our contemporary visual environment – is almost pitiable in its modesty. Because they remind us of own limits and imperfections (not to mention mortality), Rennó’s images provoke a complex reaction on our part, made up of equal parts nostalgia for and rejection of the past.
The other important area of Rennó’s concern has been in the selection and development of texts. Making her way through vast jungles of rumors, embittered slurs and sheer folklore that constitute the written press of today – especially in a country with such diverse and voracious reading patterns as Brazil -, Rennó has isolated certain fragments and given them back to us in the form of anonymous quotations. While we cannot avail ourselves of the sources for these fragments, and must therefore abandon our understandable instinct to see them as part of a narrative continuity, the original flavor and intent of each piece of text is all too clear. In fact, as we absorb the submerged meanings that Rennó’s cut-and-paste techniques tend to bring to light, we are equally aware of the double fact that the intended reader of this texts is not us, and, more importantly, that the meanings we have gleaned from Rennó’s re-configuration were only meant to have been absorbed on the most unconscious, subliminal level by consumer groups to which these magazines and newspaper are addressed.
In [ the installation Hipocampo ], Rennó has temporarily set aside photographic imagery altogether, and chosen to focus on words by themselves – or rather, on text which takes the form of imagery. Presenting these texts through the medium of a complex lighting system that significantly modifies the visitor’s perceptual relationship to the room in which they are displayed, Rennó transforms the act of reading in public into a kind of play of visibility and invisibility, and of darkness and light. In particular, the act of coming-into-visibility conveyed by the gradual metamorphosis of a seemingly blank wall into a block of text assures us that the relationship to photography (in the form of darkroom techniques) is still very much present.
In a profound way, Rennó is interested in culture’s leftovers – what has been tossed aside in the process of deciding what is valuable. The ironic name Universal Archive, which she has given to her vast collection of found materials, reflects the notion that society can often best be represented through precisely the kind of objects which it does not want to have bear the responsibility of its likeness. Her manner of re-presenting this material strips away some of the mystique of representation, and gives us instead a collective self-portrait, based on the unquestioned half-truths that constitute a large part of the cultural diet of any reasonably literate person. But in this precise focus of detail, Rennó’s activity can also be understood as an attempt to re-humanize the process of receptivity, for readers as well as spectators. Her unstated assumption seems to be that even the apparent carelessness by which words are flung about in an information – based society is merely the opposite side of the coin from the kind of measured, critical reading that she invites us to undertake. Through recognizing and capturing the human aspects of an increasingly dehumanized area of cultural production, Rennó also reminds us that the search for universal values is what making art is all about.
Dan Cameron/1995
Visconti, Jacopo Crivelli. “Evidências ocultas” [Hidden Evidence]. In Shattered Dreams: Sonhos despedaçados / Beatriz Milhazes Rosângela Rennó. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2003, p.42-54[português], p.26-38[english].
Evidências ocultas* / Jacopo Crivelli Visconti
Por qué nos inquieta que el mapa esté incluido en el mapa, y las mil y una noches el en libro de Las mil y una noches? Por qué nos inquieta que Don Quijote sea lector del Quijote y Hamlet espectador de Hamlet? Creo haber dado con la causa: tales inversiones sugieren que si los caracteres de una ficción pueden ser lectores o espectadores, nosotros, sus lectores o espectadores, podemos ser ficticios.
- J. L. BORGES
A técnica da mise en abîme deriva da tradição heráldica de se inserir, no interior da cena que adorna um escudo, um outro escudo de dimensões menores, sobre o qual, por sua vez, representa-se uma cena, geralmente diferente da principal. No âmbito literário, a expressão descreve um simples e difuso estratagema retórico, no qual uma história secundária e circunscrita é inserida em uma história principal, completando-a. Em alguns casos, como aquele célebre de Hamlet, que assiste á encenação do homicídio do pai, é um fragmento ou um resumo a ser cravado no interior da história principal. O mesmo procedimento pode ser utilizado no âmbito das artes visuais, substituindo a narração literária pela iconografia: os desenhos “impossíveis” de Escher são ótimos exemplos dessa tradição.
As obras de Rosângela Rennó, nas quais a artista re-fotografa velhas fotos e velhos negativos1 , podem ser consideradas ótimos exemplos de mise en abîme, tanto do ponto de vista mecânico quanto conceitual. Nascem da repetição mecânica de um gesto (o de tirar fotos) já executado2: ao mesmo tempo, a imagem final remete conceitualmente ao original do qual ela foi tirada, sobrepõe-se a esta e a completa, tornando-a finalmente compreensível em todas as nuances. Como um conto fantástico de Borges, o espectador é colocado diante de duas imagens, mas vê somente uma. De fato, nesta extraordinária mise en abîme, a segunda imagem não é inferior a primeira nem em dimensões nem em importância: ao contrário, é uma reprodução tão fiel, que se sobrepõe perfeitamente ao original, eclipsando-o…
Esse procedimento, além disso, permite outras reflexões. Se sempre se atribuiu a produção fotográfica um caráter eminentemente tautológico, o simples ato de refotografar uma foto cria um curto-circuito. O que vemos não é o que vemos ou, parafraseando Barthes, o cachimbo não é um cachimbo: é a foto de um cachimbo3. Estamos diante, portanto, de uma tautologia não do real, mas, ao contrário, do imaginário: mais do que simplesmente reproduzir a realidade, de fato, a nova fotografia registra a diferença, invisível, entre a imagem de partida e sua segunda versão. Em outras palavras, registra, com um procedimento puramente mecânico, uma idéia. Caso se queira compreender seu verdadeiro significado, a simples observação da foto não pode ser suficiente; será necessário conhecer a história de sua dupla gênese.
Ao se definir Rennó como fotógrafa que não fotografa4 , portanto, corre-se o risco de se omitir um aspecto conceitualmente importante de sua obra, na qual naturalmente falta a preocupação com a escolha de campo, geralmente associada com a praxe fotográfica; mas isso só ocorre porque o problema é superado por uma abordagem intelectual, isenta de considerações de tipo formal. Certamente, o ato de fotografar é fundamental: ratifica uma decisão refletida e não uma intuição ou uma coincidência momentânea de fatores externos.
Imemorial (1994) pode ser considerada a primeira obra importante, na qual a artista trabalha a partir de fotografias preexistentes. Fruto de uma longa pesquisa nos arquivos de Brasília, constitui-se de uma série de ampliações obtidas a partir das pequenas fotos (3x4 cm) das carteiras de identidade de operários mortos na construção da cidade. Desse modo, a artista traz a luz um passado metodicamente apagado pela história oficial5 ,cujas pegadas seria inútil procurar nas linhas sinuosas da urbe inventada do nada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Formada em arquitetura, Rennó é perfeitamente consciente de quanto aquelas formas arrojadas traíram, em seu estilo vagamente “aerodinâmico”, a vontade de nação de se projetar, num impulso, rumo ao futuro. Observando-os hoje, porém, a luz da história dramática do país nos últimos cinquenta anos, esses edifícios paracem ter continuado vítimas de um feitiço: o futuro que ambicionavam nunca chegou e, de monumentos do porvir, transformaram em reminiscências, sem nunca coincidirem com o presente. Essa incongruência lhes confere, em lugar da ambição futurista, um fascínio melancólico.
As fotos de Rennó sobrepõe a esta constatação formal uma denúncia de cunho social difícil de se ignorar, lançando uma nova luz no sonho de modernidade do Brasil. Sustentadas por uma tensão real, vibrante, parecem, nesse sentido, pertencer, também pelo trabalho de pesquisa do qual nasceram, mais ao universo de investigações jornalísticas do que ao da arte; apesar de algumas afinidades formais, é exatamente o rigor ético que torna inconfundíveis as fotos de Imemorial. Com relação as obras publicadas por Christian Boltanski aos “Suiços mortos”, por exemplo, não há aqui nenhum traço de ironia6, somente dramáticas, “fragmentárias interrupções de amnésia”7.
A mesma tensão e a atmosfera de denúncia permeiam também as obras baseadas na recuperação de velhos negativos. Cicatriz (1996), resultado de uma pesquisa da qual nasceram, depois, outras obras, como Museu Penitenciário (1997-99) e Vulgo (1998-99), é uma seleção de fotos de detentos, retirados do extinto arquivo fotográfico criado na Penitenciária do Estado, situadado no antigo complexo do Carandiru, em São Paulo, nos primeiros anos do século XX8. Realizadas provavelmente com o fim de criar um fichário completo dos detentos, as fotos registram escrupulosamente seus “sinais particulares”,principalmente as tatuagens. Incisões feitas grosseiramente na pele, reduzem-se a poucos motivos rudimentares: concebidas para distinguir, as tatuagens acabam por homologar os prisioneiros, tornam-se os sintomas silenciosos de uma doença difusa, de uma dor inconfessável.
Mesmo neste caso, a técnica utilizada é um fator fundamental para a compreensão da obra. Os retratos originais são mecânicos, frios, anônimos: atentado a individualidade de cada um dos sujeitos, justificam sua culpabilização coletiva. Para não ser cúmplice desse atentado, Rennó recoloca-o em cena, revirando a situação técnica e “poeticamente”. Refotografando os negativos, a artista percorre um caminho oposto ao da instituição que encomendou as fotos: se, então, o estado de prisão dos detentos era elevado ao quadrado pelas fotos de identificação, fotografando as fotos Rennó as coloca no lugar dos presos e, por extensão, coloca o cárcere no lugar dos encarcerados. O seu é um gesto social: a tentativa (poética e conscientemente fadada ao insucesso) de recompor a identidade dos sujeitos através de mise en abîme do seu aniquilamento.
Com Série Vermelha (Militares) Rennó dá um último passo para frente. Muito além das transformações formais, realmente evidentes tanto na escolha dos sujeitos como no insólito recurso cromatismo9, o que toca nessas fotos é sua profunda coerência com as obras anteriores. O que os protagonistas dessses grandes retratos10 têm em comum é o mero detalhe das divisas que usam. É evidente a reviravolta com relação ao universo precário dos operários e dos detentos: os sujeitos pertencem todos a classe dominante, e os uniformes são o certificado de que fazem parte, mais do que a um exército fantasmagórico e distante, dessa elite.
Quase que ressaltando sua condição privilegiada, o domínio que sentem em atuar no mundo em que vivem, os protagonistas destas fotos são mortalizados ao ar livre, em lugares de veraneio e entretenimento, de prazer ( lugares totalmente proibidos tanto aos operários quanto, naturalmente, aos detentos). Quando o pano de fundo não é um panorama “de cartão postal”, como a baia do Rio de Janeiro ( Mad Boy ) , é pelo menos uma praia ensolarada ( Castle King ), o jardim de família, onde são fotografados primeiramente o avô, e depois, o neto ( Old Prussian, Young Prussian ) ou ainda – e é talvez o caso mais sugestivo – um muro sobre o qual se possa projetar, bem nítida, a sombra do militar ( Shadow ). Neste detalhe extremamente humano concentra-se a distância abissal que separa os militares dos operários e dos detentos, fotografados sempre diante do canônico fundo neutro, preto ou branco e rigorosamente plano, sem mais direito a luz do sol e, consequêntemente, a uma sombra que sancione esta sua característica de pertencer a sociedade dos homens. A escolha de ressaltar, através do título11, um detalhe aparentemente insignificante, confirma, afinal, sua importância para a compreensão do significado abrangente da obra.
Se, nas obras dos anos 90, a diferença entre o espectador e o sujeito da fotografia era evidente, e a reflexão sobre a técnica empregada e sobre o significado da obra podia ser isolada e objetiva, neste caso, o procedimento é mais complexo. Além disso, o confronto com as obras anteriores é fundamental para a compreensão da originalidade da Série Vermelha( Militares ). Em vez das rígidas fotos de identificação, Rennó serve-se, na produção desta série, de simples fotos de recordação, não diferentes daquelas que todos temos em alguma gaveta: documentos sem pretensão e um pouco desbotados de dias passados. A falta de uma injustiça social desorienta o observador: queira ou não, é sorvido para dentro da imagem pela sua “fisionomia social”, idêntica aquela dos sujeitos representados. Principalmente em um país como o Brasil, realmente marcado por enormes contrastes sociais, o espectador de uma exposição de arte contemporânea pertence quase invariavelmente a uma classe social de certa forma privilegiada12. Reconhecendo-se naquele quer vê, é obrigado a se definir como cúmplice do processo que levou a situação desmascarada pela artista.
Trazidas a luz, as evidências ocultas de que se nutre o trabalho fotográfico de Rosângela Rennó mostram os estigmas da passagem pelas trevas da ocultação ou do esquecimento. Sintomas inconfundíveis da patológica ânsia de esquecer de um país jovem e sempre projetado para o futuro, constituem, diante da desordenada aspiração ao bem-estar e a riqueza do primeiro mundo, um salutar momento mori.
NOTAS
* O título remete a uma frase de Rosângela Rennó, contida na entrevista concebida a Hans-Michael Herzog para o catálago da exposição La Mirada – Looking at photography in Latin America today, Edition Oerhli, Zurique, 2002, pág.151: “ Evidências são sempre evidências, mesmo quando elas estão ocultas”. O presente texto retoma algumas considerações contidas em meu ensaio La vita degli altri [ A vida dos outros ], publicado na revista italiana ArteIn, número de fevereiro-março de 2003.
1 Em razão do espaço, só será possível analisar aqui algumas obras. Além da grande importância dessas obras no contexto da carreira de Rennó, a escolha foi guiada pelo desejo de fazer reflexões gerais sobre o trabalho eminentemente fotográfico da artista, cujo ápice, até o momento está representado pela Série Vermelha (Militares), apresentada na 50• Bienal de Veneza e reproduzida integralmente neste catálogo.
2 Não entro aqui no detalhe das várias técnicas utilizadas. Pouco importa, de fato, se a nova imagem é obtida com meios fotográficos tradicionais ou com tecnologias digitais: os dois procedimentos dão lugar a uma mise en abîme.
3 Em seu La Chambre Claire. Note sur la photographique ( Gallimard, Paris, 1980 ), Roland Barthes escreve: “Por natureza, a fotografia tem algo de tautológico: um cachimbo é sempre um cachimbo”. Sobre a natureza da imagem fotográfica, vide também A. Bazin, Ontologie de l’image photographique, in Qu’est-ce que le cinema?, Paris, 1958.
4 Cfr. Tadeu Chiarelli, in Tridimenssionalidade na Arte Brasileira do século XX, São Paulo, Itaú Cultural, 1997, pág.176, mas é uma definiçnao utilizada, depois, também por outros críticos.
5 Durante as pesquisas feitas nos arquivos da cidade, Rennó encontrou, além das fotos que constituem a obra, também provas de um verdadeiro massacre de trabalhadores “rebeldes”, até hoje cuidadosamente escondido pelo governo.
6 Em várias ocasiões, Boltanski declarou sarcasticamente ter escolhido os “Suiços” como protagonistas desta série porque aparentemente “não tem razão nenhuma para morrer”.
7 Paulo Herkenhoff, Espessura da Luz, A fotografia brasileira contemporânea, São Paulo, Câmara do Livro, 1993, p.36.
8 Para uma descrição mais detalhada do processo que levou a produção destas obras, vide La Mirada, op. Cit., p.152.
9 A cor já tinha sido utilizada antes, nas fotos da série Vulgo e em outras “menores”, mas extremamente reveladoras, como Paz Armada (1990-92), mas nunca com uma força comparável aquela presente na Série Vermelha (Militares). É importante observar, além disso, que a cor utilizada é sempre o vermelho, diretamente associado, pela artista, tendo-o admitido explicitamente, ao sangue.
10 Mais uma vez, trata-se de velhas imagens provenientes de álbuns domésticos, refotografadas e, portanto, passadas para o vermelho por um processo digital, a ponto de ficarem quase indistinguíveis.
11 A importância dos títulos e, em geral, das palavras na obra de Rennó poderia ser objeto de um ensaio por si só. Penso nos textos extraídos de jornais e revistas, que confluem no grande Arquivo Universal, reservatório que usa para suas criações; mas penso também nos neologismos e nos calembour, que frequentemente constituem os títulos de suas obras. Trabalhos recentes como Espelho Diário (2001) e a grande instalação Bibliotheca (2002), dão continuidade, nesse sentido, a um discurso iniciado em obras anteriores, aprofundando realmente a dimensão literária (oral, no caso do vídeo, escrita, no caso das fichas de arquivo da instalação), sugerida pelos títulos das fotos da Série Vermelha (Militares) ou, antes ainda, por obras como In Oblivionem (1994), Hipocampo (1995) ou Cicatriz.
Sobre o papel das palavras na obra de Rennó, vide também Paulo Sergio Duarte, Para reler o vermelho e o negro, no folder publicado pela Laura Marsiaj Arte Contemporânea, por ocasião da exposição de Rosângela Rennó em novembro de 2001.
12 De modo geral, o mesmo discurso vale também para os artistas: é significativo que para a 50• Bienal de Veneza, a própria Rennó tenha produzido uma obra a partir de uma velha foto de família, na qual seu irmão é retratado em uniforme militar.
O meio expressivo usado por Rosângela Rennó em seus trabalhos é, quase sempre, a fotografia, embora se valha, por várias vezes, de texto ou vídeo. Raramente, porém, a artista fotografa. Prefere ater-se ao vasto inventário de imagens já existentes e encontráveis em qualquer parte, investigando, de modos os mais diversos, os seus possíveis e instáveis significados na organização da vida em comum, quer no campo do conflito, quer no do afeto. Há pressuposto, nesse procedimento, não apenas o fato de que fotografias são arquivadas, mas também o intento de desvelar a ética que comanda a produção e o uso dessas tantas imagens. Sem a pretensão de certeza que o discurso científico reivindica – procedendo, antes, à sua abertura ao que é incerto –, elabora uma arqueologia e uma genealogia da fotografia, situando-a como parte integrante de um sistema de saberes e valores que ancora formas de poder em sociedade, as definidas como as difusas. Talvez a principal estratégia utilizada para tanto seja apresentar as fotografias que coleta em lugares distintos – e que escolhe por motivos variados – de uma maneira que cause estranhamento a quem as olhe, ainda que sejam conhecidas ou banais: é quando tornadas opacas por esse deslocamento que essas imagens podem, afinal, ter seus sentidos renovados. Tendo se valido, no início de sua trajetória, das fotografias que mais lhe estavam disponíveis (as suas e as de seus familiares), é ao lançar-se à pesquisa do corpo extenso de imagens produzidas por outros – instituições ou indivíduos – que concede ao seu projeto, contudo, maior potência e foco.
É exemplar, a esse respeito, a instalação Imemorial [1994]. Ocupando uma extensão longa de parede e do piso à frente desta, fotografias escuras e enfileiradas mostram, em dimensões maiores que as naturais, rostos de homens e de algumas poucas mulheres, além de outros que pertencem claramente a crianças. Observadas com vagar, as fotografias sugerem sua procedência provável. Chamam a atenção, desde logo, a rígida posição frontal das cabeças, o vestir digno e modesto, e a sisudez dos olhares fitando a câmara que os capturou há um tempo impreciso, embora as roupas que cobrem ombros e colos revelem estar esse momento já afastado. Aspectos que, reunidos, permitem supor ser tais retratos parte da identificação formal de indivíduos para o ingresso no mundo do trabalho. Origem possível que é reforçada pelo esquemático enquadramento dos rostos: o mesmo empregado em fotografias 3 x 4 e largamente utilizado para fins burocráticos. As fotografias são, além disso, todas numeradas, como se a marcar a sua entrada em um arquivo que registra pessoas como dados. Não há, porém – fica evidente mesmo a uma inspeção ligeira do olhar –, alegria ou conforto discerníveis nesses retratos, sensação acentuada pelos tons sombrios em que as imagens são apresentadas. Em verdade, sua disposição no espaço lembra, inescapavelmente, a de lápides feitas em pedra, metáfora da perda de vidas singulares para o anonimato, tal como a regulação social do mundo contemporâneo requer. Encimando as fotografias, o nome da instalação (em letras brancas sobre parede de mesma cor) apenas sublinha o recalque de identidades que esses retratos paradoxalmente atestam.
Ao escolher e retirar essas imagens do arquivo funcional de uma empresa e apresentá-las em lugar e forma estranhos à sua serventia de origem, Rosângela Rennó não resgata, contudo, identidades autônomas quaisquer. O que põe a claro é justamente o deslembrar que os contratos trabalhistas reservam aos empregados, refazendo suas formas de pertencimento à vida a partir das assimétricas relações de poder em que aqueles são fundados. Destaca, ao mesmo tempo, o papel que a fotografia arquivada exerce nessa operação de esquecimento do que é único, contraditando sua suposta função de lembrar aquilo que já passou e de ocupar, assim, o lugar simbólico detido antes pelo monumento. Confrontados apenas com esses retratos, o observador não saberá, portanto, o nome de nenhum daqueles funcionários, qual eram ao certo seus ofícios, se aquelas crianças já morreram ou se continuam a viver em lugar ignorado. Ao observar, porém, o semblante tenso de um, a roupa apertada e definitivamente inadequada do outro, ou, ainda, o olhar assustado de um terceiro que a câmara paralisou um dia, é levado talvez a imaginar o ambiente e o momento no qual viveram suas vidas e as razões da amnésia social para onde seus desejos escaparam. Percepção dúbia que evoca o que diz a personagem feminina do filme Hiroshima Mon Amour [1959], do cineasta francês Alain Resnais (1922), para quem as fotografias reconstituem o passado somente “na falta de outra coisa”: algo indefinido que não há mais e que não pode, por isso, ser plenamente lembrado. E é justamente essa ambivalência da imagem fotográfica – a de ocultar o que aparenta exibir e, ao mesmo tempo, trazer obliqüamente à memória aquilo que não mostra – que mais intriga e anima a artista na construção de sua obra.
Na série intitulada Vulgo [1998-1999], Rosângela Rennó apresenta retratos extraídos e ampliados de um outro arquivo fotográfico com o qual pôde trabalhar. São novamente cabeças humanas (dessa vez, apenas homens) que põe à mostra também como integrantes de um conjunto maior de imagens, embora em uma coisa estas difiram, de imediato, das apresentadas em Imemorial: em vez da frontalidade ostensiva dos retratos 3 x 4, são quase somente as nucas e os cocurutos dos retratados que são dados a ver agora, sob cabelos invariavelmente cortados quase rentes à pele. Em apenas uma delas se vê uma testa e parte de uma face, ainda assim voltadas para baixo, em aparente submissão a quem visualmente as anota. Essas fotografias possuem, ademais, dimensões muitas vezes maiores do que as de seus referentes, concedendo, assim, a oportunidade de um escrutínio detalhado das imagens deles mostradas, cuja ênfase, realçada em tons de vermelho sobre o branco e preto de origem, são os redemoinhos que os cabelos formam. Exame que deixa perceber, ainda, breves anotações feitas às margens dos retratos, sugerindo tratar-se de indivíduos cujas vontades são submetidas a algum tipo de controle institucional e que estão, além disso, sujeitos a procedimentos de análise, como ocorre a internos de sistemas psiquiátricos e prisionais. De modo análogo ao uso de imagens em arquivos laborais, essas fotografias certamente se prestaram, algum dia, a conferir autoridade ao poder disciplinar que funda e justifica sistemas de regulação. Poder que já se valeu de tipologias fisionômicas para atestar o que governaria o comportamento transgressor na vida em comum, como os formatos dos crânios e rostos dos que se desviam de normas socialmente acordadas.
O arquivo fotográfico de onde essas imagens foram subtraídas não é, portanto, um arranjo neutro de informações visuais coletadas, servindo antes – através da escolha, da acumulação e da comparação desses retratos – à afirmação de modelos menos ou mais arbitrários de explicação e manejo de uma dimensão da realidade. Embora abrigue representações de vidas singulares, simultaneamente as torna equivalentes e indistintas, meros elementos arrolados para a comprovação empírica de enunciados discursivos genéricos. Ao recontextualizar parte desse arquivo específico em seu trabalho, a artista uma vez mais demonstra, então, como o uso do meio fotográfico pode velar o que supostamente exibe sem escapar, porém, de informar o que nele não se enxerga de imediato. Como contraponto à geração institucional do anonimato que essas imagens atestam, aproxima delas uma projeção em vídeo – Vulgo/Texto [1998] – em que centenas de alcunhas verdadeiras se sucedem (dente de lata, zé penetra, escadinha, diabo louro, marcinho maluco, beira-mar, jacaré, mau-mau, ferrugem, mão santa...), fornecendo indícios mais claros da condição de internos do sistema prisional dos retratados e explicitando um modo usual de rejeição e resistência à perda imposta de alteridade. Essa estratégia defensiva não logra, entretanto, recuperar laços sociais partidos, posto que tais apelidos são logo também capturados em ainda outros arquivos e também eles privados de uma relação unívoca com sujeitos quaisquer, como prova, paradoxalmente, sua apresentação nesse trabalho. Antes, Vulgo e Vulgo/Texto dão testemunho, como Imemorial igualmente já dera, do lugar difuso a que frações da sociedade são remetidas, na memória coletiva, pelo poder da imagem fotografada.
No vídeo Vera Cruz [2000], Rosângela Rennó também opõe texto à imagem, desta feita na forma de um registro ficcional – baseado, todavia, no relato escrito de Pero Vaz de Caminha ao Rei de Portugal – da chegada dos portugueses à terra que viria a ser chamada Brasil e do seu encontro com os habitantes nativos do lugar. No trabalho, quase nada é dado a ver, exceto a imagem em movimento de um suposto e antigo filme riscado, manchado por fungos e em processo de decomposição avançado. Sons, apenas os do vento e do mar. Mas se de todos é subtraída a imagem e a voz – apagamento do que individualiza e confere identidade de imediato –, dos portugueses é transcrita ao menos, em forma de legendas escritas, a sua fala. Não a fala indistinta, mas aquela dita por personagens que exercem funções específicas no agrupamento do qual tomam parte (o capitão, o padre, o soldado, o escrivão...) e que reagem às situações vividas de modos particulares. Por meio desse artifício, a esses é dado o poder não só de descrever o encontro com o outro, mas também o de definir quem lhes é estranho (os índios) de forma indiferenciada. Se os textos lidos nas legendas permitem ao observador imaginar cenas que lhes façam correspondência – dessa maneira resgatando, em alguma medida, as imagens que o vídeo sonega –, também as contaminam de uma visão de mundo que enxerga o diferente como mero desvio de uma presumida normalidade. Valendo-se de pouco mais que do uso da palavra impressa, Vera Cruz demonstra como também o filme – mesmo, e talvez sobretudo, o filme documental, histórico, fotográfico – pode ser instrumento de afirmação de hierarquias e de anulação, portanto, do direito supostamente equânime de narrar a vida de perspectivas diversas. Reforça, ainda e por isso, a idéia de que o texto pode ser, assim como a imagem criada de alguém ou de algo, instrumento de amnésia social.
Se em Vulgo/Texto e em Vera Cruz é a palavra que busca, incessantemente e sem sucesso, contrapor-se ao anonimato que arquivos de imagens geram, em o Arquivo Universal [1992- ] é produzido movimento de sentido contrário, apenas para chegar-se a resultados similares. Esse trabalho é formado por um conjunto de escritos prosaicos coletados em jornais nos quais há, invariavelmente, alusões a fotografias, mesmo se com ênfases e de modos variáveis. De tais textos, feitos para serem lidos e já quase esquecidos antes do fim de um dia, a artista retira os nomes das pessoas mencionadas e os substitui somente por letras maiúsculas seguidas de um ponto (o agricultor X.Y., a decoradora D., a ex-governante M.M., o empresário A.....), além de, no mais das vezes, suprimir informações que identifiquem sua origem geográfica e temporal. Esses escritos têm, assim, ocultadas as marcas de individuação humana que traziam e reduzido o seu poder de evidência, destituindo, por isso, os seus protagonistas de identidades determinadas. O esquecimento a que já eram destinados é, desse modo, confirmado e acentuado. Reapresentados sobre as paredes em suportes diversos e com graus distintos de visibilidade (emoldurados, projetados, adesivados), os textos são, contudo, tratados como se fossem quase-imagens constituintes de um “arquivo universal” de fatos, cabendo ao observador tomá-los como ativadores do pensamento criativo – ancorado no repertório de conhecimentos que detém – e, dessa maneira, pretensamente rememorá-los. Ao realçar a sua potência imagética, porém, Rosângela Rennó submete os textos colecionados à mesma lógica de indistinção e de oblívio a que se sujeitam fotografias arquivadas.
Esse oferecimento de um arquivo de imagens à imaginação do outro está também presente na instalação Cerimônia do Adeus [2003], composta por quatro dezenas de fotografias posadas de recém-casados, em que os noivos, vestidos para o protocolo de confirmação do enlace, são retratados no interior de carros ou encimados em motocicletas. Menos que a captura de momentos íntimos, essas imagens testemunham cenas que só existiram um dia para serem fotografadas e terem, assim, preservadas a sua ocorrência singular. Há, talvez por isso, nessas imagens em branco e preto que compõem o trabalho, um inequívoco acento nostálgico: de cada uma delas pulsa e emana, vindo de algum instante no passado, um referente que não se confunde com outro algum, o do momento exato em que duas pessoas se deixam imobilizar juntas em celebração de um projeto de partilha de afeto. Quando vistas ampliadas e dispostas todas juntas em grade sobre a parede – modo de organização espacial que faz do que é único apenas parte de um grupo – essas fotografias terminam, entretanto, por diluir o que pôde um dia haver de distinto nas expectativas de cada casal, confirmando o papel de anulador de alteridade que os arquivos exercem. O tempo não sabido e sem retorno que se passou desde que essas cenas foram gravadas também se encarrega, além disso, de confrontar suas promessas de individualidade. Algumas dessas reproduções possuem regiões esmaecidas que dissolvem partes de rostos ou apresentam vincos que anunciam, para um futuro incerto, a decomposição de seus “originais”. Alterações físicas que agem, em verdade, como indicadores de que, ao ser imobilizados em imagens fotográficas, esses casais foram não apenas tornados eternos, mas, em um sentido preciso, também mortos, posto que as habitam, desde o instante em que foram nelas inscritos por um rito social, como seres vulneráveis ao que estar por vir ainda. Poder ambíguo que a fotografia possui e que pode ser comparado ao da máquina concebida por personagem do romance A Invenção de Morel [1940], do escritor argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999), a qual registra e pereniza as imagens dele e a de amigos em idílio e que, em troca, os acomete de doença que acelera o seu fim carnal. Essa imobilidade temporal dos retratos faz recordar, ademais – por oposição ao envelhecimento progressivo e inevitável a que foram ou estão sujeitos aqueles homens e mulheres fotografados e reunidos em Cerimônia do Adeus –, também a morte futura de quem as olha. É justamente essa relação especular e sombria com o trabalho – causada pelo enfraquecimento da relação entre as imagens apresentadas e algo que seja específico somente a elas – que convoca o observador a relembrar e projetar, nessas fotografias tornadas todas semelhantes pela artista, narrativas pessoais.
Os eventos diversos vividos pelo observador também um dia foram, contudo – como os passados por quase qualquer um –, muitos deles registrados em meio fotográfico, liberando os que deles participaram da necessidade de recordá-los. Em vez de lembranças, pode-se guardar, assim, somente imagens, dado que elas provam e evocam a presença em lugares distantes ou próximos e a participação em rituais de encontro ou passagem. Mas enquanto a memória se define por sua imprecisão, fluidez e mesmo sujeição ao erro, a fotografia é depositária da crença de que apenas atesta e confirma fatos; enquanto uma mimetiza a errância de acontecimentos passados em busca de recriá-los no pensamento, a outra os reduz a um relato preciso e único, tornando-se menos instrumento de recordação que – por subtração de dúvidas – agente de amnésia. Por se terem estabelecido como suporte onde fotografias são comumente arquivadas em narrativas arbitrárias, os álbuns são, portanto, espaços simultaneamente de registro e de esquecimento de vidas particulares, ocupando posição privilegiada na afirmação da ambivalência desse meio de fixação e reprodução de imagens. São instrumentos que, ao reunir conjuntos de fotografias, comprovam o pertencimento de alguém a um círculo familiar e a uma época, mas que, ao mesmo tempo, destituem de tal pertencimento a sua conformação complexa. Em situações extremas, a serventia dos álbuns como depositários da memória parece ser mesmo colocada ativamente à prova, dado que muitos são postos fora ou vendidos por quase coisa alguma.
É uma centena desses álbuns descartados (incluindo várias caixas de diapositivos em variados formatos) que Rosângela Rennó adquiriu em feiras livres, brechós e lojas de antiguidade em cantos diversos e que dispõe na instalação Bibliotheca [2002]. Por meio do confronto visual com essa coleção de arquivos – supostos veículos de esquecimento do que é sutil e incerto –, paradoxalmente busca reconhecer, na fotografia, a função também de ativar a lembrança movente de um fato, e não somente a de admitir, pela certeza que uma imagem trai, sua inequívoca ocorrência passada. A uma primeira visada, porém – em estratégia que só realça a posição que advoga –, a apresentação do trabalho chega a frustrar o olhar, posto que sobre pequenas mesas reunidas em grupos se encontram não os álbuns coletados, mas as fotografias de suas capas impressas em brilhantes superfícies de acrílico, cada uma acompanhada de um número de ordenação, desde o 1 até o 100. Seus referentes – os próprios objetos feitos para colecionar imagens – estão imediatamente abaixo de tais coberturas, aprisionados em paredes translúcidas da mesma matéria e fora do pleno alcance da vista. Invioláveis ao tato e somente obliquamente notados pela visão nessa sorte de vitrine em que se encontram lacrados, eles parecem, de pronto, apenas ser provas de que as cópias fotográficas expostas se referem a originais que não podem ser abertos. Essas mesas-vitrines ainda expressam, em cores que cobrem os seus tampos e frisos, uma ordem construída e imposta aos itens ali colocados, de modo semelhante ao que ocorre em qualquer outra biblioteca. Cada um dos álbuns exibidos é classificado, por meio de código cromático aplicado a esses móveis, em função de uma dupla pertença territorial: o continente em que as fotografias neles contidas foram tiradas (são as cores dos tampos que o informam) e o continente onde foram encontrados (fato ensinado pelas cores dos frisos). Sobre mapas-mundi instalados em paredes próximas a cada agrupamento de três a cinco dessas mesas-vitrines, alfinetes que trazem impressos em suas cabeças os números de registro dos álbuns ali dispostos e as cores que identificam o seu lugar de origem são afixados, precisando o seu correspondente lugar de destino.
Ao bloquear o acesso visual às narrativas privadas potencialmente contidas em cada álbum, a artista claramente descose a relação próxima que quaisquer fotografias têm com o lugar e com o momento em que foram tiradas, fazendo-as, por esta imposta cegueira, pertencer a um espaço indistinto e a um tempo impreciso. Oculta imagens, portanto, para que, diante apenas de sua evocação indicial, possam estar disponíveis e ser reinventadas, a partir de referências diversas, nas mentes de quem não as pode enxergar. Essa vontade de resgatar um sentido mnemônico para o meio fotográfico que Rosângela Rennó expressa é asseverada, de maneiras diferentes, por dois outros elementos da Bibliotheca. Um deles é uma caixa-arquivo com fichas catalográficas para cada um dos cem álbuns, onde se podem ler descrições de suas características físicas e de seu conteúdo iconográfico (suspeito ou comprovado), além de indicações renovadas sobre a procedência geográfica das imagens que eles encerram e de sua localização quando foram encontrados. Uma vez mais, há aqui o confronto entre o texto e a fotografia como meios diversos de acercar-se de um fato. Mesmo a consulta mais cuidadosa a tais fichas não iguala, entretanto, a experiência de olhar as cenas contidas nos álbuns lacrados a que remetem. Não somente porque o que está nelas escrito é incapaz de descrever por completo mesmo as imagens mais simples, mas também porque o texto, justamente por sua incompletude descritiva, requer a imaginação do leitor para recriá-las, o que faz escorrer, para o campo dessa re-encenação pensada, a rememoração também das histórias que aquele viveu um dia. O que está contido nas fichas situa-se, portanto, simultaneamente aquém e além do poder narrativo das fotografias não vistas.
Existe, por fim, um livro, também nomeado de Bibliotheca. Nele não há texto algum, trazendo impressas, contudo, centenas de imagens copiadas dos álbuns antes que estes fossem enclausurados, resumo que justifica ter, esse objeto, o mesmo nome da instalação que o abriga. As fotografias não estão, todavia, identificadas no livro em função de seus referentes ou de suas origens, sendo apresentadas em ordem sujeita apenas a justaposições de ordem formal ou simbólica. E ao separar essas imagens dos suportes que amparam suas impressões originais e lhes conferem sentido social – os próprios álbuns fechados nas vitrines –, a artista as libera, uma outra vez, da função de ser testemunhas da construção de histórias singulares inscritas em um tempo histórico dado, tornando-se, por isso, somente ruínas do curso de vidas passadas. De modo análogo ao que o fazem as organizadas descrições discursivas dos álbuns encontráveis nas fichas catalográficas, a apresentação desordenada e anônima de imagens daqueles extraídas oferece, a quem manuseia casualmente o livro, a possibilidade de recuperar e projetar, sobre esse novo e vago arquivo de memórias alheias perdidas, as próprias lembranças, por vezes já quase também decompostas. Assim como em bibliotecas quaisquer que guardam livros, aqui é igualmente o visitante que, ao eleger as imagens arquivadas que animam ou refazem a sua memória – como naquelas outras escolhe volumes escritos –, faz desse conjunto de informações algo que pertence a cada um de modo diverso e que o explica. A Bibliotheca não é, portanto, somente uma, mas muitas.
A potência de conhecimento que qualquer fotografia guarda não é, então, de todo abafada em função de seu uso como instrumento de substituição da memória e, por conseguinte, como indutor de amnésia. Continuam a pulsar, na sua superfície, informações variadas prontas a serem ativadas como elementos de cognição daquilo que ela apresenta como imagem descarnada. E como a demonstrar tal persistência a contrapelo das evidências, Rosângela Rennó toma de conjuntos de fotografias feitas pela polícia em quatro cenas de crimes – produzidas, portanto, para registrar e investigar tais fatos – e desconstrói cada uma delas em muitas outras imagens. Todos esses pedaços – emoldurados individualmente como diapositivos preparados para projeção – são justapostos sobre mesas ou caixas de luz, solicitando, do observador, a recomposição mental das fotografias relacionadas a cada um dos crimes. Assim esquadrinhadas e interrompidas pelas bordas das molduras de suas muitas partes, as cenas perdem, contudo, forçosamente o seu poder de informar sobre o evento que supostamente registra, posto que não há mais nelas uma hierarquia de valores visuais, levando o olhar a vagar de um a outro fragmento sem saber ao certo onde deve repousar. Tal efeito se sobrepõe, em verdade, à destituição de alteridade dos indivíduos mortos fotografados, já em marcha desde quando suas imagens foram arquivadas como parte de processos criminais. Não por acaso, a essa série de quatro trabalhos é dado o título de Apagamento [2005]. É essa obliteração de sentidos e identidades, entretanto, que permite a observação daquilo que não seria percebido caso a integridade da fotografia fosse preservada: papéis em cima de um guarda-roupa, a imagem de uma criança em um porta-retratos, uma roupa jogada no chão, bibelôs em cima de um móvel, a sombra de uma cerca projetada no piso, uma fruta que já não serve, uma janela deixada entreaberta, uma garrafa esquecida em um canto, mesmo os cabelos da perna de uma pessoa morta.
Existe, nesse procedimento da artista, algo próximo ao adotado pelo personagem-fotógrafo do filme Blow-Up [1966], do cineasta italiano Michelangelo Antonioni (1912), que recorta e amplia muitas vezes uma fotografia feita ao acaso por suspeitar que nela, em um ponto distante do assunto central da imagem, reside a prova de que um crime foi cometido. Em ambos, há a certeza de que as fotografias carregam com elas também um “infra-saber”, coleção de informações parciais e somente sugeridas que são irredutíveis aos fatos nelas apresentados como inequívocos e importantes. Há contida, ainda, em tais estratégias, a idéia de que uma imagem fotográfica não registra apenas o momento de ocorrência de um fato principal, mas instantes diversos nos quais sub-eventos se misturam, se modificam e se confundem de modo heterogêneo. Embora de impossível demonstração, tal noção é implicada na sobreposição, feita por Rosângela Rennó com algumas das imagens de crimes que ela “apaga”, de fragmentos de fotografias distintas, formando um palimpsesto de cenas que aludem não só a espaços separados, mas, também, a tempos diferentes que co-existem em um mesmo fato. O referente, portanto, não é fixado de pronto em uma fotografia, mas estabelecido, de formas diversas, a partir de seu escrutínio por olhares diversos.
É dessa imprecisão e desse poder latente da imagem fotográfica que a artista busca evidências em muitos de seus trabalhos, requisito importante para proceder à arqueologia desse meio de reprodução de tudo e entender o papel por ele exercido nas relações de sociabilidade. Ao desfocar, granular, apagar, contradizer, descentrar, traduzir, fragmentar ou deslocar imagens já existentes e inseridas nos circuitos onde signos se deslocam em velocidade, Rosângela Rennó as imobiliza e simultaneamente restitui, a quem as olha, o poder de resignificá-las a partir de uma subjetividade que é, contudo, por elas também formada. Poucas vezes essa vontade crítica foi mais claramente exposta do que na montagem de painéis que abrigam antigas fotografias depois pintadas todas em cor chumbo, dessa maneira obliterando seu poder de registrar ou rememorar o que foi já vivido. Essa Parede Cega [2000] é o espaço que talvez melhor simbolize, em sua obra, a impossibilidade de conhecer o passado através de imagens bem classificadas e definidas e que argumenta, de modo mais veemente, pela existência de “margens da visibilidade” em qualquer fotografia, além das quais nada pode ser mais nela visto. A querer ultrapassar tais margens, é necessário desistir da fé cega depositada na imagem fotografada, suspender seus códigos estabelecidos e entender sua inscrição comprometida no curso da vida. Requer admitir, portanto, que, mesmo diante da imagem mais nítida, se pode sempre insinuar nela, através do pensamento que a percorre e investiga, o que não se conhece ainda.