MESQUITA, Ivo e RIVITTI, Thaís. “Carmela gross: um corpo de ideias”, uma conversa. In: GROSS, Carmela. Um corpo de idéias. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
A entrevista com Ivo Mesquita, curador da exposição de Carmela Gross na Estação Pinacoteca, foi conduzida por Thais Rivitti, editora desta publicação, alguns dias após a abertura da mostra. O diálogo traz a público momentos significativos do processo de elaboração da curadoria, além de comentar os trabalhos expostos e algumas das questões que envolveram a realização do catálogo.
Thais Rivitti: Nas primeiras conversas que tivemos sobre a exposição de Carmela Gross que você estava organizando, lembro-me de você dizer que ela teria apenas 16 obras, um número pequeno tendo em vista os quarenta anos em que a artista vem produzindo. Como você começou a pensar a lista de obras?
Ivo Mesquita: Quando começo um projeto de exposição, é fundamental saber o espaço onde ela será apresentada. Mais importante do que imaginar conteúdos específicos do trabalho a ser exposto, é saber onde vai ser a exposição. A primeira imagem mostrada para o público tem que levá-lo para dentro do espaço, para dentro do trabalho do artista. Pelo fato de a exposição em questão ser na Estação Pinacoteca, um espaço com o qual tenho intimidade, eu já conhecia as possibilidades de discurso que poderia fazer ali como curador: o número possível de peças, os possíveis percursos. No caso particular de Carmela Gross, a questão que se colocava era qual o recorte a ser feito, pois se trata de uma artista com uma produção vasta e diversificada, seja do ponto de vista dos suportes envolvidos – pintura, desenho, impressões, carimbos, instalações, intervenções urbanas, trabalhos com luz, videotexto, filme –, seja das questões com as quais ela trabalha: a paisagem, o espaço urbano, as formas de construção da representação, o sistema das imagens, a própria arte. Carmela passa por desenvolvimentos mais formais, como na série das Facas (1994) ou Trem (1990), e estratégias mais radicais, como em Buracos (1994) ou nas intervenções com luzes fluorescentes como AURORA (2003). Por outro lado, muitas vezes são trabalhos ambiciosos, extensos: muitas cadeiras que se desdobram, muitas facas, muitas lanças, muitas pedras. Isso me levou a muitas considerações, diante de tantas possibilidades.
Paralelamente, havia uma questão sobre pintura, sobretudo a pintura a partir de 1980, um tema ao qual a Pinacoteca tem dedicado várias exposições. Eu mesmo realizei anteriormente dois projetos nesse âmbito: as exposições de Beatriz Milhazes e de Leda Catunda. Pintura, devo dizer, é o que mais eu gosto na história da arte, sem nenhum prejuízo dos outros meios, questões ou estratégias. Daí que, inicialmente, pensei em falar da questão da pintura na obra da Carmela, pois ela lida com isso de uma forma mais conceitual, analítica, como parte constitutiva do sistema das imagens e representações, tomando-a como referência histórica, como em Projeto para a construção de um céu (1980-1981), ou muitas vezes ironizando-a como em Hélices (1993) ou Fonte (1987). Diferentemente das duas artistas mencionadas anteriormente que, embora também tenham uma base conceitual, estão envolvidas com a prática pictórica, ainda que por meio da apropriação, da colagem, procedimentos característicos da geração a que pertencem, Carmela não é uma pintora. Carmela é de uma geração anterior, para qual a pintura é objeto de crítica institucional.
TR: A questão da pintura é mais evidente na primeira sala da exposição, onde estão as obras Corpo de ideias (1981), Carimbos (1977-1978), Hélices e Recorte preto I (1995).
IM: Justamente. A ideia era eleger um tema, uma questão, um recorte que desse conta de um percurso do trabalho de forma precisa. Aí está outra coisa interessante do ponto de vista de uma curadoria, o exercício de sintetizar, de falar com pouco. O espaço das galerias tem seus limites, evidentemente, e o grande desafio quando se faz uma exposição panorâmica é o de lograr uma síntese do trabalho do artista. A primeira sala é uma espécie de apresentação do repertório da artista. Essa ideia do desenho como projeto, da representação como uma construção, uma narrativa, portanto uma forma de ficção.
TR: A pintura entraria por aí, no questionamento sobre a representação, sobre as possibilidades e impossibilidades de se representar algo?
IM: Projeto para a construção de um céu trata da representação de nuvens, traz-se a pintura, as nuvens na paisagem. O céu é onde os artistas se mostravam: este faz assim, aquele faz mais empastado… Ao mesmo tempo, é uma coisa totalmente transitória, não existe uma forma permanente da nuvem, ela está constantemente em movimento, então entra o tema da efemeridade. O tempo, que é um tema na pintura, está lá.
TR: Projeto para a construção de um céu apresenta, digamos, um campo de interesse dentro do qual se desenvolvem muitos dos trabalhos da artista…
IM: Num certo sentido, a mostra toma como um ponto privilegiado a obra Projeto para a construção de um céu, de 1980-1981. Desse trabalho surgiu a questão central da mostra, ou seja, a passagem do plano da representação para a materialização de uma presença real no espaço, transformadora da percepção. Embora os primeiros trabalhos da artista sejam do final dos anos 1960, poderia se dizer que a década seguinte se caracteriza como um período experimental, em que a artista realiza trabalhos sobre a construção da imagem e da representação usando meios tais como carimbos de borracha, heliografias, projeções, construindo assim um repertório de questões e estratégias. É com Projeto para a construção de um céu que a artista afirma a questão do desenho como fio condutor de seu trabalho, como base conceitual para qualquer projeto e como referência primeira para o pensamento sobre a arte e a prática artística. Trata-se de um trabalho afirmativo, extenso, consistente, uma dissertação – papel que ele realmente teve na vida acadêmica da artista. Além do que, dentro da ideia inicial de uma exposição em torno da pintura, ele apresenta um tema clássico: a paisagem. Entretanto, esse tema não é tratado de modo tradicional, a partir de impressões da observação do real, mas a partir de procedimentos normatizados e catalogados para a construção de uma representação considerada mais “verdadeira” da natureza e da paisagem, segundo os procedimentos da topografia. Assim, ele orientou o recorte para esta exposição: ela descreve o percurso que vai da representação de uma paisagem para os trabalhos mais recentes que são intervenções no espaço urbano e em sítios específicos.
Mas ainda sobre pintura, também são fundamentais os Carimbos, que decodificam os procedimentos do desenho – tipos de linhas, de pinceladas – de forma fria, com carimbos de borracha, para construir uma pintura mecânica, mas ainda assim manual. O trabalho é uma pintura que tem gesto, é um desenho que tem gesto, ainda é uma mão que faz, mesmo que de modo repetitivo ou mecânico. E essa ideia da repetição, que também acho muito importante, essa multiplicação ocorre em todo o trabalho de Carmela.
Acontece também em Corpo de ideias, que dá título à exposição. Nesse trabalho a artista reproduz imagens de livros milhares de vezes, sobrepondo-as por meio da heliografia, criando essa grande plataforma, esse grande monocromo heliográfico formado pela acumulação de imagens. Há aí, a meu ver, uma marcação de um território artificial, que é todo construído, manipulado. É uma questão combinatória. Corpo de ideias é um grande monocromo, tem essa memória de pintura, e, de novo, por ele ser uma heliografia e estar exposto à luz, é natural que vá azulando cada vez mais. O tempo fica marcado, é uma pintura que dá conta da sua passagem. Acho muito bonito esse aspecto do trabalho.
TR: Ele se transforma no decorrer da exposição?
IM: Ele vai escurecendo. No processo da heliografia, o papel é sensibilizado por um produto que queima a imagem sobreposta pela incidência da luz do sol. Portanto toda vez que você mostra essa imagem, ela é exposta à luz e continua queimando. O papel está sensibilizado e continua aquele processo. É até curioso quando você pega plantas velhas que têm faces mais queimadas que outras. Corpo de ideias vai queimando no processo da exposição, como o registro da passagem do tempo de existência do trabalho.
TR: E é uma pintura que está no chão, e por isso mantém outra relação com o público.
IM: Não é uma pintura convencional. Mesmo as duas Hélices são dois azuis em movimento.
TR: Pinturas instáveis, em mutação, não se consegue congelar uma imagem dela.
IM: Exatamente. E tem o trabalho de tecido de que eu gosto muito, Recorte preto I, que é a topografia que permite fazer a passagem da pintura da parede, conceitual (que está em Cascata [2005] e às vezes em pinturas mais antigas como Luar [1987]), para o volume, a topografia real.
TR: Recorte preto I também remete a Buracos, não? Há um espaço que está aquém do plano.
IM: Isso, ele se projeta, você não sabe se ele é para dentro ou para fora. Isso está novamente nos Quasares (1983) e em A negra (1997), que têm a evocação dessa sombra, essa negação do espaço.
TR: Nesse sentido também é curioso o título Corpo de ideias, porque é uma obra totalmente plana, superficial, que ela chama de corpo criando certa ambiguidade entre o bidimensional e o tridimensional.
IM: É curioso. Você olha para o trabalho e vê as imagens sobrepostas, então ele se oferece como uma visão em profundidade do plano, algo para dentro, mas é quase como uma negação dessa presença, para remeter à imaterialidade da ideia.
TR: Já na outra sala, sua escolha foi orientada em outro sentido, não mais tendo como referência a questão da pintura, me parece.
IM: Tenho que dizer que trabalhei um pouco a partir das obras de que mais gostava. Claro que tudo isso foi conversado com a artista. Em vários dos encontros realizados em seu estúdio, nem falávamos da exposição, ficávamos apenas considerando um trabalho ou outro. Naturalmente, há trabalhos com os quais tenho maior afinidade ou interesse – algo normal para qualquer curador – sem nenhum desinteresse pelos outros, claro. Mas alguns fazem parte da minha própria história, constituem minha experiência visual, fazem parte da minha história profissional. Coincidentemente, na primeira vez em que fui monitor – ou educador, como se diz agora – na Bienal de São Paulo, em 1969, estavam expostas as obras A Carga (1968) e Presunto (1968). Ficavam em frente a um grande painel de ferro, uma pintura do Roberto Aguilar feita a maçarico, vazando a superfície na forma de um grafite; e, às vezes, porque não funcionava sempre, armava-se a grande Bolha amarela (1968) de Marcelo Nitsche, que enchia e ocupava o espaço do pavilhão de um modo nunca visto antes. Os três trabalhos juntos traziam algo da rua – escala e conteúdos – para dentro daquela Bienal, algo fresco em uma mostra boicotada internacionalmente por conta da censura prévia imposta pelo governo militar. Estavam entre as melhores coisas daquela exposição.
A Carmela é uma artista cujo trabalho acompanhei, mas numa relação um pouco diferente da que eu tenho com as obras do Iran [do Espírito Santo], da Beatriz [Milhazes] ou da Leda [Catunda], que, digamos, são artistas da minha geração. A Carmela não, ela já era A artista, A jovem artista daquele momento, e eu só tinha 17 anos.
TR: A Carga e Presunto, então, remetem a uma produção mais escultórica, uma outra linha de investigação da artista.
IM: Há uma outra questão no trabalho da Carmela que é o corpo. Um corpo feminino sem ser feminista, um corpo que vem da escultura, é um corpo escultórico. Da mesma forma, é uma coisa que ela guarda da pintura. Como digo, na verdade, ela fala sobre pintura, ela tem uma memória de pintura, mas não é uma pintora. Ela é uma escultora. O desenho é a base do trabalho, mas ela é uma escultora, pois o trabalho sempre põe em questão o espaço. Acho que A Carga, sobretudo, mostra bem isso. A obra tem uma frontalidade na sua apresentação, um enfrentamento do espectador. A lona é modelada em pregas, dobras, um corpo feito pela acumulação de gestos calculados. Da mesma forma que Presunto, que se apropria da forma de um presunto industrializado, um corpo transformado.
TR: Em A negra também podem ser percebidas essas qualidades escultóricas, não?
IM: A negra, por certo, também tem as qualidades de uma escultura tradicional, mas é um volume sobre rodas, que pode ser movido, e neste sentido é uma obra um pouco irônica, como as pinturas da série Hélices, que giram sobre a parede, criando, ao se movimentarem, uma mancha de cor maior do que a sua presença física. Mas A negra traz qualidades e questões enunciadas em outros trabalhos. Ela flutua como uma sombra, tem uma presença evanescente por conta do tule, que lhe confere uma materialidade difusa como a linha de luz em Uma Casa (2006), onde os limites parecem estar vibrando em lugar de definir um volume. A abertura no topo de A negra parece sugar o espaço exterior, evocando os Quasares, que são esses espaços negativos, contrariando, portanto, a afirmação de um corpo escultórico. Ao mesmo tempo, ela pode ser vista como o oposto dos Compactos (1991-1992), na medida em que eles são projeções de uma pintura para fora do plano, corpos que se lançam da parede para o espaço, criando protuberâncias como “corpos prenhes”, para usarmos uma imagem feminina.
TR: Assim, a retirada dos painéis de uma das salas expositivas, deixando o espaço da galeria em comunicação com o exterior do prédio, poderia ser entendida como uma decisão decorrente dessa ligação estreita que os trabalhos de Carmela mantêm com cidade.
IM: A ideia de abrir alguma das galerias para que se pudesse ver a cidade, o espaço do trabalho, existia desde o começo. No processo, chegou um momento em que reunimos um conjunto de projetos, maquetes, registros e documentação sobre trabalhos específicos ou relacionados com essa ideia de intervenção na arquitetura ou na cidade, e pensamos em fazer uma grande vitrine que ocupasse toda a extensão da sala central, de modo a explicitar essa relação. Daí as outras duas galerias, laterais a esse espaço, transformariam-se obrigatoriamente em salas de síntese do percurso da artista, com trabalhos escolhidos. Mas, para mim, essa montagem repetia um pouco a estratégia curatorial usada na exposição da Leda [Catunda]: uma sala central de projetos, de desenhos, explicando duas extremidades definidas temporalmente. Foi a Carmela que propôs usarmos a obra Hotel balsa (2003), que é do acervo da Pinacoteca, para fazermos a ligação entre as duas salas, abrindo a última delas para permitir a visão dos trabalhos colocados na parte externa, Iluminuras (2010) e Se Vende (2008). Dessa forma, enxugamos ainda mais a exposição e o trabalho passou a ter um papel fundamental no discurso curatorial: ele faz a passagem da primeira sala, um espaço interior, para a contemplação, diretamente ligado à experiência do estúdio, com trabalhos mais conceituais e elaborados, para a outra galeria totalmente aberta para a cidade, com peças elaboradas a partir de gestos diretos e incisivos, que confrontam diretamente o espectador. Olhando-se para fora, então, pode-se ver fragmentos de Iluminuras e Se Vende, um trabalho que ironiza e desafia uma situação específica nos movimentos das políticas de urbanização e desenvolvimento da cidade.
TR: Iluminuras é um trabalho novo, feito para a exposição, Se Vende também nunca havia sido apresentado no Brasil. Neles há uma relação mais direta com a cidade, eles se inserem no espaço urbano. Talvez eles sejam a ponta de um processo que se inicia com A Carga e Presunto.
IM: A Carga e Presunto trazem a experiência da rua para dentro do espaço institucional da arte. Os trabalhos realizados por Carmela a partir dos anos 1990 retornam a esse espaço na forma de intervenções pontuais e específicas, afirmando-se cada vez mais como um comentário sobre a paisagem real e sobre as possibilidades do exercício da arte.
Iluminuras é um trabalho particularmente significativo. Evidentemente há nele aspectos mais narrativos, relacionados com a história do edifício (que foi o antigo DEOPS). O caráter de alerta que emana das luzes amarelas pontua essa referência. Mas ele também pode ser visto como uma grande escultura. O prédio da Estação Pinacoteca é de 1911 e, hoje, faz parte do patrimônio histórico da cidade de São Paulo. Entretanto, a cidade cresceu e desenvolveu-se, transformando a escala de suas edificações, do planejamento urbano, das relações nesse espaço. Quando se olha o trabalho, principalmente durante a noite, o que se percebe é um grande volume, uma escultura urbana, na proporção das dimensões atuais da cidade. É como se fosse uma nova versão para A Carga ou uma nova carga.
TR: Se Vende talvez seja o trabalho mais polêmico, por mobilizar mais diretamente conteúdos políticos facilmente perceptíveis. Sobretudo pela provocação que foi montá-lo entre dois prédios públicos no centro de São Paulo.
IM: Se Vende é um signo aumentado, como Uma Casa. E é por essa escala urbana que ele resiste à literalidade do seu significado para dar lugar a uma poética específica: a escolha da cor – o vermelho –, o gesto irregular de uma escritura manual, a memória de algo comum, impessoal, mas preciso no seu sentido. A ideia de um signo está muito presente no trabalho da Carmela. Uma Casa é um signo, os Carimbos são um signo, isso é algo que vem da geração dela, que trabalhou muito com semiótica, nos anos 1970. A própria ideia de uma metarrepresentação, como nos Carimbos ou em Projeto para a construção de um céu, deve-se à presença da semiótica na articulação das questões e debates sobre a imagem, a linguagem, o aparecimento de novos meios como o vídeo, a cópia eletrônica, o cinema experimental naquele momento. Da mesma forma, o interesse pela paisagem é também desse momento. Em 1968, Robert Smithson publicou The sedimentation of the mind, onde ele fala da paisagem como ideia, ao mesmo tempo em que começa a desenvolver seus projetos de land art. Essa noção também pode ser percebida no Projeto para a construção de um céu, assim como no trabalho de outros artistas dessa geração como Luiz Alphonsus, Mario Cravo Neto (antes de dedicar-se integralmente à fotografia) e Marcelo Nitsche entre outros.
Mas, voltando a Se Vende, ele é, ao mesmo tempo, uma escultura e uma pintura vermelha, que colore tudo… Evidentemente que se ele for colocado no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, daqui a cinquenta anos, talvez já não faça mais sentido. Não o mesmo sentido que tem agora quando o bairro vem passando por transformações, buscando a sua restauração e valorização. É curioso pensar que, no contexto onde ele foi mostrado pela primeira vez, em Madri, onde fazia parte dos projetos especiais da feira de arte ARCO, era percebido como algo irônico sobre a natureza do evento, onde tudo pode estar ou está a venda. Entretanto, ao ser apresentado no Matadero, um recém-criado centro cultural no bairro de Arganzuela, ele fazia uma referência a estratégias usadas nos processos de reurbanização e revitalização de zonas degradadas da cidade, de qualquer cidade, com a criação de dispositivos e equipamentos culturais muito potentes, agregando valor e promovendo a mudança do padrão de vida nessas vizinhanças.
TR: Uma Casa também é uma obra do acervo da Pinacoteca e não está nem na primeira nem na segunda sala, está entre as duas.
IM: Uma Casa é um signo luminoso. O desenho não tem, alguém já disse isso, uma linha delimitada, precisa, porque é luz. Mas ao mesmo tempo o signo dela é tão preciso, novamente um jogo se constrói.
TR: Algo bastante concreto, sólido, como uma casa, apresentado de forma evanescente. E aqui novamente, como em A Carga e Presunto, há o uso de um material industrializado, as lâmpadas, que ela não manda fazer de um certo tamanho, mas usa as já existentes.
IM: Assim como as próprias estantes de partitura adaptadas para sustentar os tubos de luz fluorescente. A escolha do cor-de-rosa, uma cor muito artificial, de novo remete à pintura, pois colore todo o espaço e invade outros. Ao mesmo tempo, é enorme a quantidade de fios – fios prateados! – que tem esse trabalho. Eles funcionam como “escorridos”, como se fosse um muro pichado, se você olhar de repente, chapar, a obra dá essa impressão de um muro pichado.
TR: Uma Casa é um trabalho no espaço que pode ser visto como pintura, num certo sentido… Alagados (2000) também faz um pouco essa passagem, me parece: do desenho, do traço, para o tridimensional.
IM: Isso, Alagados também é uma peça fundamental ali, porque cria esses contornos e ao mesmo tempo dá um peso na sala. Traz a ideia de desenho, do traço, da linha muito bem delimitada, porque é uma fieira de barrinhas de ferro engatadas. É uma peça fundamental.
TR: E em relação ao catálogo? Como conservar essas relações todas entre os trabalhos em um livro?
IM: É, o projeto não é só a exposição. Ele é um seminário, ele é esta publicação. Isso faz parte, todas as escolhas feitas são a partir de movimentos que buscam a afirmação dessa leitura, dessa interpretação do trabalho que a Pinacoteca do Estado está fazendo, neste momento, por meio de nossa curadoria.
É muito importante para abrir essa leitura aparecerem dois textos novos, que foram encomendados, na publicação. Começamos a oferecer mais possibilidades de leitura do trabalho junto com aquela que é a da exposição. Você precisa de coisas complementares, porque aquela da exposição não é final, totalizante, definitiva. É um recorte. O livro tem muito essa função de remeter, de dar o contexto em que essa obra foi produzida.
TR: Falando dos textos, você encomendou um deles para a Marta Bogéa, que é arquiteta.
IM: Ela, curiosamente, adotou uma estratégia para construir o texto ao acompanhá-lo de imagens. Acho que foi extremamente produtivo, ela remete de novo a esse olhar da rua. Mas fala sob a perspectiva de uma experiência. E das redes, dos mapas que o trabalho constrói.
TR: E há também o texto da Carla Zaccagnini, artista, que traz uma visão muito diferente daquela de um crítico de arte. Ela se permite leituras mais pessoais, menos comprometidas com a história da arte.
IM: Eu sempre acho que o artista olha o trabalho de outro artista de um jeito diferente do resto. Sou muito atento a comentários de artistas sobre outros artistas, eles entram por outro lugar que não é o do crítico, nem o do historiador.
O texto da Carla fala de uma noção de pertencimento, que acho que os artistas têm e que talvez a gente não saiba. É importante isso, até porque é uma forma de reconhecer a presença desses trabalhos, dessas obras, digamos, constituídas, e como as outras gerações olham para elas, percebem que têm uma relação com elas. No caso, a Carmela é uma artista de quem a Pinacoteca tem várias obras, de diferentes momentos. É uma artista que está nessa grande narrativa que a Pinacoteca constitui com sua coleção, uma artista muito citada por outros artistas, ela é influente e, também nesse sentido, uma referência. Era importante o livro dar conta dessa questão. Acho fundamental isso no trabalho do museu, não apenas ir acumulando, mas ir propondo reflexões diversas sobre as obras.
TR: E o livro permanece, enquanto a exposição é temporária. Nesse sentido, seu alcance é maior e seus desdobramentos ocorrem num tempo mais alargado.
IM: Exatamente, eu acho que é uma segunda curadoria. Não é simplesmente a escolha das obras numa sequência, mas é algo relativo ao sentido total do projeto, do que a gente quer que ele dê conta. A publicação tem que se articular como outra narrativa, ela não tem os mesmos recursos da exposição.
Neste caso isso foi tão evidente, aqui neste projeto… Quando, no primeiro desenho do livro, as vistas das galerias apareciam emolduradas pelo branco da página, parecia que era uma foto sobre a exposição, enquanto que se você rasga, sangra, toda a página vira a exposição.
TR: São opções editoriais que realmente mudam a leitura. Foi importante neste livro priorizar as fotos de vistas, as relações entre os trabalhos. Claro que depois eles aparecem na lista de obras, grandes, nítidos também.
IM: Pois é. De alguma forma o olhar não domina a página sangrada, do mesmo modo que ele não domina a sala quando entramos nela. Na foto emoldurada, está tudo lá. Quando a exposição é muito enxuta, ela tem que oferecer uma experiência. E Hotel balsa, nesse sentido, joga um papel muito forte, que é a ideia de uma experiência interativa da exposição, de uma interação da exposição com o espectador. E que tem a ver com a experiência do trabalho mesmo. Ele fala disso, dessa coisa mais recente, dos trabalhos dos últimos dez anos, eles têm jogado nessa relação, quase um corpo a corpo com o espectador, que é o que está na última sala. É um corpo a corpo, uma experiência urbana, onde o sujeito é obrigado a se colocar. Acho que é importante o livro passar um pouco essa possibilidade. É disso que estamos falando, dessa passagem da representação para a realidade.
ZACCAGNINI, Carla. Desenhos, desenhos: a título de prólogo. In: GROSS, Carmela. Um corpo de idéias. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
Enquanto assinava meu exemplar do seu encarte para a Bravo!, Carmela lembrava da aula daquela tarde com um sorriso entre cúmplice e provocador: tinha sido boa, não tinha? Horas antes, a apresentação do meu projeto em classe fora recebida com exclamações como “Isso eu não engulo!”.
Tinha sido boa a aula. Porque o que se discutia, tendo aquele projeto como escusa, eram os limites da arte e o papel do artista, os lugares sociais de uma e de outro, as fronteiras que os definem e encerram e outras questões de igual calibre ou fundamento. E se debatiam desde posições que muito tinham que negociar para encontrar uma linguagem comum a partir da qual nomear as discordâncias; o que nos obrigava, a todos, a reformular pensamentos que já se tinham solidificado e a buscar novas formas para dizê-los.
E, em grande parte, era disso que tratava a matéria (palavra preferível ao termo disciplina se compararmos seus sentidos colaterais). Na primeira aula, Desenho, desenhos nos tinha sido apresentada não tanto como um plano de conteúdos, mas como um plano de Carmela para nos fazer trabalhar devagar e passo a passo. Uma proposta de dissecção do processo de concepção e desenvolvimento de um trabalho, para vê-lo e tratá-lo quadro a quadro. A ideia era razoavelmente simples: cada um propunha um projeto e se comprometia a desenvolvê-lo ao longo do semestre. A condição era o tempo: o tempo dilatado. Não teríamos um prazo para chegar a um resultado, como de costume, condição que nos faz sentir o tempo escapando desde o início até que se esgota – mas, ao contrário, seria preciso elaborar demoradamente cada etapa e esclarecer as decisões tomadas a cada bifurcação que encontrássemos. E, cada vez que o projeto parecesse resolver-se antes do fim do curso, era preciso desconstruí-lo para remontá-lo começando por uma outra peça, agarrá-lo por outro lado, dar-lhe a volta.
O curso era resultante, explicava, de sua preocupação diante da impressão (repetida, como outras impressões) de que muitas obras que ela via expostas não estavam prontas, ou tinham sido aprontadas às pressas. Como se não tivesse havido tempo suficiente de maturação, de exercício, de ensaio. Como se, entre a primeira ideia e a forma final, faltassem estágios de destilação; umas vezes, ebulição; outras, condensação; no pior dos casos, ambas. E o curso era resultante também de uma aposta ou uma vontade de pôr à prova a hipótese de que adensar o processo modificaria o resultado visível.
Expor o processo durante seu andamento o altera, quanto a isso não há dúvidas. Transformam-se o pensamento e as ações de antemão, para compartilhá-los com sentido por meio do discurso; e transformam-se de novo, de volta, em resposta a questões que surgem durante a fala e a escuta. Mas o que estava em jogo era, também, o quanto as idas e vindas e os caminhos circulares que podem compor um processo dilatado se percebem gravados, talvez invisíveis ou indizíveis, mas sempre presentes, naquilo que dali resulta.¹
Se, por um lado, tratava-se de dilatar o tempo de elaboração de um trabalho como uma estratégia para adensá-lo; por outro lado, interessava pensar na coerência entre a construção do processo e a concepção da obra (ou como se queira recombinar essas quatro palavras). Investigar como a estrutura do resultado se vê estampada nos procedimentos que o desencadeiam e vice-versa; como o processo reflete e informa suas consequências, como os caminhos tomados anunciam e ecoam o lugar de chegada. Como, enfim, a obra se define e redefine em cada momento de sua construção, a partir dos mesmos desejos e das mesmas obsessões, dos mesmos sintomas, das mesmas perguntas; em uma palavra, de uma mesma posição.
Pensando de forma ampliada, tratava-se também de encontrar uma certa coerência (certa como relativa, não como correta) que, com sorte, reverbera em cada concreção do discurso de um artista: em suas obras de diferentes escalas e suportes, em cada etapa do processo que as constitui, em sua fala para diferentes públicos, em suas escolhas, em seus escritos, em seus cursos (nas várias acepções do termo).
POR QUE ESCREVO: NÃO UMA JUSTIFICATIVA, MAS UMA INTRODUÇÃO
Por isso, imagino, a bibliografia de Desenho, desenhos era composta por escritos de artistas que relatavam seu processo de trabalho. Lembro especialmente da autobiografia de Akira Kurosawa e das cartas de Gustave Flaubert. O mais revelador era encontrar nesses textos metáforas semelhantes às dos filmes de um, ou um rigor descritivo característico dos livros de outro; ver tomar forma, perpassando esses relatos, um modo de ver e de narrar que reconhecemos das obras terminadas. Talvez tenha sido essa constatação que me fez tomar gosto por esse gênero e iniciar uma coleção de escritos de artistas sobre arte que ocupa uma estante inteira, e bem à altura dos olhos, na minha biblioteca.
Agora estou lendo uma reunião de ensaios de George Orwell² e acabei de ler um texto intitulado Por que escrevo, originalmente publicado em 1946. Deixando de lado a necessidade de subsistência, Orwell reconhece quatro grandes motivos para sua atividade, que coabitam, em diferentes graus, e proporções oscilantes de acordo com o contexto, em todo e qualquer escritor (podendo este termo ser ampliado a artista, acredito, com alguns ajustes paralelos no texto). São eles:
1. Puro egoísmo. Desejo de parecer inteligente, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de revanche com relação aos adultos que nos desdenharam na infância etc. etc.
2. Entusiasmo estético. Percepção da beleza no mundo externo ou, por outro lado, nas palavras e sua combinação acertada. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza da boa prosa ou no ritmo de uma boa estória. Desejo de compartilhar uma experiência que parece valiosa e que não deveria se perder.
3. Impulso histórico. Desejo de ver as coisas como são, de descobrir fatos verdadeiros e armazená-los a serviço da posteridade.
4. Propósito político – usando a palavra “político” no sentido mais amplo possível. Desejo de empurrar o mundo numa certa direção, de alterar a ideia de outras pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar por alcançar.
Com exceção do terceiro, que é mesmo assim sintético, cada um desses motivos tem suas descrições seguidas de esclarecimentos sobre suas formas de manifestação, que excluo deste relato sem deixar de recomendar a leitura completa do ensaio, onde transparece em forma e conteúdo a busca do autor por ver satisfeitas suas quatro razões.
O interessante aqui, me parece, é pensar nesses desejos de diversas ordens e nas suas combinações, todas impuras. Como se mescla esse desejo de vingança quase amorosa com o desejo de provocar uma experiência estética capaz de recriar o entusiasmo que sentimos nós diante do belo; como se mesclam os dois ao desejo de registrar fatos, acontecimentos, episódios ou hábitos para uma posterior análise apta a reescrever a história; como se combinam estes com o desejo de alterar a consciência política do outro e portanto sua vontade e suas ações? Como é que a mistura desses desejos, às vezes manifestos, outras latentes, resulta no movimento que se condensa ora em obra, ora em texto, ora em aula? E como cada um desses desejos podem estar mais e menos aguçados, num mesmo artista, em momentos diferentes.
Numa presumível confissão com algo de falso testemunho, Orwell diz que por natureza, e entende “natureza” como o estado em que se chega à idade adulta, os três primeiros motivos teriam nele peso maior que o último. “Mas então veio Hitler, a Guerra Civil Espanhola etc.” e, desde 1936, cada linha sua foi escrita, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo.
PERO NADA PUEDEN BOMBAS, RUMBA LA RUMBA LA RUMBA LA,
DONDE SOBRA CORAZÓN, ¡AY CARMELA! ¡AY CARMELA! ³
É curioso como há figuras que só são possíveis num texto, que se constroem à medida que vão moldando a linguagem, desenhando os parágrafos e desencadeando conclusões ou novas hipóteses delineadas de dentro da lógica, temporária e tênue, que vai sendo criada por uma palavra depois da outra e reinaugurada a cada nova frase que, ao mesmo tempo, a permite e a demanda. Cada afirmação escrita resulta do terreno preparado pelas anteriores e as redefine, limita as possibilidades do que pode ser dito depois e permite dizer ideias que antes não teriam lugar onde se concretizar. Desenho, desenhos, desenhos, desenhos etc.
Quando comecei este texto pelo relato daquelas aulas, não sabia que ele desembocaria no livro de Orwell nem, muito menos, que por este chegaria à canção da Guerra Civil Espanhola que comecei a escutar como distração e que agora se apresenta como uma chave para o entendimento da obra a que se dedica este escrito, que por ora falava de outras coisas.
Talvez tenha sido por ter visto antes, sem perceber, o LP Chansons de la guerre d’Espagne, com Guernica na capa e as letras vermelhas, pousado de enfeite na biblioteca quase vazia deste apartamento emprestado. Claro que a lembrança da música se fez presente porque ressoava o nome: Carmela. Fui procurar para ver quem era a personagem aclamada na canção de combate e resistência, mas não se sabe, parece. Ou não importa.
A evocação de um primeiro nome, nesse lamento repetido e ritmado, parece cumprir aqui uma função: remete às relações cotidianas e assim redimensiona a guerra. Canta-se o medo dos bombardeios (“Ay Carmela!”), canta-se a força das tropas (“Ay Carmela!”), cantam-se as vitórias recentes e as próximas batalhas (“Ay Carmela! Ay Carmela!”). É Carmela por um motivo que não se fez histórico. É Carmela como poderia ser Pilar ou Dolores.
Em 2002, Carmela Gross escreveu com lâmpadas fluorescentes vermelhas, daquelas que lembram a sinalização rapidamente decodificável do grande comércio, e todas as letras maiúsculas: EU SOU DOLORES. A frase, maior do que a sala que ocupava, saía pela janela ultrapassando os limites do prédio e aqueles que existem entre o espaço público e o privado. De memória, poderia dizer que Dolores é o nome de uma vidente, das que oferecem serviços com garantia em folhetos distribuídos nas ruas, entregues em mãos e lidos nos pontos de ônibus.
Mas talvez também não importe, aqui, a ocupação dessa outra personagem. O que importa é essa alteração na escala e no suporte, essa transmutação de anúncio a enunciado, essa mudança nos mecanismos de comunicação e a transformação na leitura que, por essa mudança, se opera. A mesma Dolores que todos nós não somos, que passamos a não ser quando a afirmação da identidade ganha visualidade pública, assim como a mesma Carmela a que todo um exército dirige seu lamento, tem a dimensão de uma ponte entre espaços irreconciliáveis.
Não somente coexistem aqui, sem por isso firmar trégua, o público e o privado; também o referencial e o abstrato coabitam ou definem esse lugar de potência ambivalente que se pode reconhecer como formador deste e de outros trabalhos da artista. Os Quasares (1983), por exemplo, ou o Projeto para a construção de um céu (1980-1981). Este último talvez seja o que mais diretamente se refere às relações entre o ato de ver e as outras ações capazes de criar imagens.
O Projeto para a construção de um céu é das obras que habitam meu museu imaginário, lembrei desses desenhos uma vez, subitamente, voltando para casa de bicicleta, numa tarde muito branca como podem ser ao norte. Meu caminho atravessava uma área portuária, com um horizonte regular em que uma grande chaminé tinha destaque ao longe, bem mais alta e robusta do que os guindastes que pontuavam a linha d’água. A cor da fumaça sólida, ligeiramente mais escura que o fundo do céu, mimetizava a das nuvens. Pensei: “Agora sim, a fábrica da Carmela”, ou alguma frase parecida, e tirei uma foto menos elucidativa do que este parágrafo.
Não somente o título, mas também parte dos meios de representação utilizados nessa série pertencem ao repertório do desenho técnico. Linhas verticais e horizontais em intervalos regulares e notações em nanquim no pé da página remetem a esses desenhos cuja função é garantir uma leitura inequívoca, com instruções mais precisas que as palavras, de forma a dirigir a construção ou a montagem de uma estrutura assegurando o resultado previsto. Sejam desenhos de arquitetos, ou aqueles que acompanham móveis industriais para armar em casa, informações de segurança em voo ou kits de aeromodelismo.
Por outro lado, somam-se às anotações e linhas em nanquim, áreas preenchidas com lápis de cor, de poucas cores. Um material associado principalmente ao desenho feito por ou para crianças. O desenho infantil tem com o mundo externo à superfície do papel uma relação quase antagônica àquela estabelecida pelo desenho técnico. Onde este último é icônico, o outro é metonímico. O desenho técnico se aproxima daquilo que quer retratar mediante abreviações e sínteses inconfundíveis, que derivarão necessariamente numa consequência dada, ou melhor, preconcebida. O desenho infantil generaliza, não retrata este ou aquele indivíduo específico e sim um grupo, uma espécie, um conjunto de indivíduos sob o mesmo nome, pondo foco num detalhe que o caracteriza como símbolo: a boca enorme e cheia de dentes do jacaré, a casa espiralada às costas do caracol, o cocar na cabeça do índio.
Há também uma diferença temporal ou, ainda, de causalidade entre esses dois modos de representação. Enquanto a criança deseja reconhecer e poder nomear, sobre o papel, um ser como outros que já viu antes, seja no zoológico, no jardim, na televisão ou em livros; o arquiteto projeta o que deseja ver construído, e com sorte terá certo ineditismo. No primeiro caso, é a experiência diante do tigre ou de uma imagem do tigre que se procura reproduzir (talvez movidos pelo mesmo entusiasmo com a beleza descrito por Orwell); no segundo caso, o desenho é ferramenta inaugural, regulador de ações e causador de concreções antes inexistentes. No primeiro caso, o desenho persegue o referente, quer alcançá-lo, caça o tigre, o jacaré, o caracol e o índio (e é provável que agarre primeiro o caracol). No segundo caso, o desenho é comando, palavra de ordem.
Em Projeto para a construção de um céu o desenho é esses dois desenhos, um junto ao outro. Esse projeto é retrato. Talvez sejam 33 retratos do céu em momentos precisos e fugidios. Talvez resulte da experiência (repetida cotidianamente) de olhar e comparar as cores e formas difusas que reconhecemos como sendo o mesmo céu, apesar de suas variações, e seja, assim, a representação de uma somatória de céus justapostos; o retrato de um céu contado de memória. Nesse sentido aproxima-se do desenho infantil. Mas esse retrato é também um plano, como o desenho do arquiteto. O plano para uma sequência (espacial ou temporal) de céu, numerada de 1 a 33 nas diferentes pranchas que compõem a série. Esse projeto para construção é representação de céus já vistos e, ao mesmo tempo, indica as formas e cores, difusas ainda, mas determinadas, de céus subsequentes.
E é impossível afirmar que o projeto não tenha terminado por ser construído passo a passo, que o céu não tenha assumido ou adotado, em 33 instantes posteriores, cada uma dessas configurações. Seria bonito procurar sistematicamente e fotografar 33 céus ou detalhes de céus que reproduzam os desenhos. Posso começar a fazê-lo, embora este, como tantos outros, talvez seja um plano com falhas (de registro e interpretação), que resulte em céus ligeiramente diferentes do previsto. E portanto irreconhecíveis.
Ao contrário desses desenhos que se inserem num tempo indefinido, que ocorre antes e depois do real concomitantemente, as presumíveis fotos congelariam o instante em que as nuvens tivessem a forma buscada e em que a incidência da luz lhes desse as cores necessárias ou desejáveis. Já vimos nuvens assim congeladas antes. Mas Nuvens, de 1967, é, de fato, uma construção projetada, cada parte cuidadosamente recortada uma a uma em material rígido, com espessura de cenário e uma suposta interioridade cor de carne.
Formadas por ondulações quase regulares em um azul turquesa e encerado, as Nuvens se aproximam mais dos cúmulos-nimbos feitos à mão do que daqueles que anunciam tempestades. Têm algo daquele desenho infantil, em que se faz da nuvem uma forma fechada, facilmente reconhecível, num tom de azul que salta sobre o branco. Uma nuvem exemplar, quase. Sua construção é como a espacialização agigantada de nuvens desenhadas com o papel deitado sobre a mesa, que teriam caído em pé ao sacudirmos a folha para livrá-la dos restos deixados pela borracha, ao apagar outras tantas nuvens reprovadas.
Mas é também como se as outras nuvens, as que são conjuntos visíveis de partículas diminutas de água em suspensão na atmosfera, tivessem repentinamente se tornado sólidas e caído imediatamente no chão com o aumento de densidade. E deve ser dessa queda, uma ou outra forma de queda, que resulta a base reta das Nuvens, sua face inferior alisada no impacto com o piso concreto, que não permite as flutuações aéreas, nem aquelas sempre possíveis sobre o papel. A segunda hipótese, a da solidificação súbita de uma forma difusa e transitória é algo parecido com o que se pode ver nos Carimbos (1977-1978): a cristalização do gesto expressivo e sua repetição mecanizada.
Os 80 carimbos que compõem essa série reproduzem traços, linhas curtas, retas tortas, riscos, rabiscos, grafismos, garatujas, gatafunhos, garranchos, manchas, máculas, nódoas, borrões, pinceladas, e gostaria de encontrar outras 66 palavras para descrever as diferentes consequências dos gestos típicos ou inusitados de quem empunha um lápis ou uma lapiseira, uma caneta tinteiro ou esferográfica ou hidrográfica, um bastão de pastel seco ou oleoso, um carvão, um giz ou um pincel.
A materialização desses gestos efêmeros numa matriz de borracha com caráter burocrático, e suas impressões exaustivamente repetidas, lado a lado, como para preencher metodicamente a folha de papel, põem em jogo sobre a mesma superfície meios de representação característicos da arte conceitual e do abstracionismo informal. Há algo irônico na combinação desses dois legados, mas há também, de novo ou já, o estabelecimento de uma convivência de espaços (ou momentos históricos) irreconciliáveis, no mesmo ambiente potencial.
E há, me parece, uma percepção de potência na abstração, e de potência política, me atrevo a dizer. A repetição dos elementos gráficos reproduzidos nos carimbos tem uma função análoga ao “rumba la rumba la rumba la” na canção republicana espanhola. Naquela música, “rumba la rumba la rumba la” é uma pontuação rítmica e melódica que poderia ser dada por violões ou tambores, mas é cantada em coro, talvez por soar ou se ouvir melhor assim, talvez porque as mãos estariam ocupadas com outros instrumentos. Mas a recorrência desse elemento abstrato serve também como mecanismo inclusivo, todos podemos cantar – “rumba la rumba la rumba la” – mesmo sem saber a letra e mesmo sem falar a língua.
Assim são também as formas nos Carimbos: abstratas, repetidas e comuns (ao menos em duas acepções do termo). É como se tratasse, aqui também, de diminuir a distância entre quem fala e quem não fala a língua, quem conhece e não conhece a letra. Esses desenhos não têm nem aludem ao poder de comando dos desenhos técnicos, remetem, se tanto, ao poder limitado e monótono do burocrata senhor dos carimbos que permitem ou negam entrada, saída e permanência. Nem contêm, por outro lado, a admiração que nos despertam os desenhos capazes de nos levar de volta ao lugar da criança, atônita diante de uma representação que lhe entrega o referente como numa experiência sem intermediários.
A simplicidade reconhecível das formas e a tecnicalidade sem surpresas nem segredos dos carimbos de escritório arma uma ponte entre quem detém o discurso e quem ouve ou vê. Somos todos capazes de pinceladas, borrões, nódoas, máculas, manchas, garranchos, gatafunhos, garatujas, grafismos, rabiscos, riscos, retas tortas, linhas curtas ou traços como esses. E o sabemos. Seria bonito, talvez, copiar à mão as carimbadas, usando os diferentes materiais e gestos a que cada carimbo faz referência.
Construir um espaço de trânsito entre aquele que gera o discurso abrigado pelas instituições, selado e aprovado pelos senhores dos carimbos, e aquele que ali entra como ouvinte ou observador é, acredito, fundar um campo de potência política. Um território onde as subjetividades têm que ser renegociadas, onde a história tem que ser revista; um espaço de alerta.
Iluminuras (2010), a obra que Carmela Gross idealizou e realizou para a exposição que este catálogo originalmente acompanha, transforma, com um gesto único, o edifício ocupado pelo museu em um espaço de alerta, colocando em evidência ambígua tudo aquilo que ele abriga. Cuidado com o que se guarda e se dá a ver aqui dentro! Mas não só. Neste caso, trata-se também e principalmente daquilo que esse edifício já abrigou.
Iluminuras consiste na instalação de 66 sinalizadores giratórios na fachada do prédio hoje ocupado pela Estação Pinacoteca, o mesmo que o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social (DEOPS) ocupou entre 1940 e 1983. A ação é simples e o objeto conhecido. Todos já vimos mais de uma vez viaturas ou ambulâncias com essas luzes acesas e um barulho ensurdecedor. Mas elas passam, quase sempre, e o mais rápido possível.
Aqui a urgência é estática, não se move dali. Dia e noite as luzes permanecem acesas iluminando a rua e o prédio, a rua e o prédio, a rua e o prédio, enquanto giram. Mais visíveis depois que o Sol se põe e o museu fecha, à hora em que os fantasmas, dizem, andam soltos. Mas numa afirmação permanente. E silenciosa. O som que costumamos escutar cada vez que vemos, pela cidade ou em filmes, essas outras luzes de emergência não as acompanha aqui. É um grito mudo. Uma urgência sem tempo, uma urgência em relação ao passado, sem solução nenhuma.
As luzes amarelas giram e o prédio pulsa pulsa pulsa, “rumba la rumba la rumba la”. “…pero nada pueden bombas (rumba la rumba la rumba la) donde sobra corazón…” Difícil acreditar, de fato. Mas canções como esta contribuíram para formar e manter uma ação de resistência.
“Parece-me uma tolice, num período como o nosso, pensar que se pode evitar escrever sobre esses assuntos. Todos escrevemos sobre eles, de uma forma ou de outra. É simplesmente uma questão do lado que se escolhe e da abordagem que se segue. E quanto mais conscientes formos de nossas tendências políticas, mais chance teremos de atuar politicamente sem sacrificar nossa integridade estética e intelectual”, escreveu Orwell em 1946, e poderia ter escrito de novo em 1964, em 1968, em 1984, em 1991, em 2001, amanhã ou ontem.
¹Escrevendo agora sobre isso, que não sei se então já pensava, lembrei-me de uma obra que não conhecia e ainda não vi ao vivo: 1.000 hours of staring (1992-1997), de Tom Friedman. Será que ele olhou, fixamente, por mil horas exatas para a mesma folha de papel em branco? Seria esse olhar, sobreposto a ele mesmo ao longo de cinco anos, capaz de imprimir à superfície alguma carga que o título da obra já não lhe transfira? E, se quisermos ir mais longe, essa característica, se existe, não seria alterada pelas outras tantas mil horas de olhares fixos que pousam sobre a mesma folha, ainda branca, depois de emoldurada?
²George ORWELL – Why I write, Penguin Group, Londres, 2004 [trecho traduzido pela autora].
³Verso de El paso del Ebro, canção republicana da Guerra Civil Espanhola.
BOGÉA, Marta. Canteiro de obras. In: GROSS, Carmela. Um corpo de idéias. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
TRAÇADOS
Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão… ¹
É a lona de caminhão, a tenda, o abrigo, a carga, o canteiro de obras. Não só recolher fragmentos formais dessas situações, mas fazer com que o próprio objeto fosse construído com esses elementos da rua. Lembro-me de quando fui procurar uma firma que pudesse executar meus objetos de lona. A mesma lona com que se cobrem caminhões de carga ou que os trabalhadores usam para construir seus abrigos temporários nos consertos das ruas. Foi perto do gasômetro. Entrei num grande galpão de estruturas de madeira e piso de terra batida. Era uma oficina de costura. Algumas máquinas antigas e não mais que cinco homens confeccionavam uma lona de circo. Entusiasmada comecei a descrever o que seria então o Presunto (1968): costura, cortes, dimensões…²
A cidade pulsa nos trabalhos de Carmela Gross. Uma presença que está engendrada nas obras, não exatamente em suas formas, mas perpassando sua materialidade e produção, e na sempre criteriosa e precisa implantação dos trabalhos no espaço.
De certo modo, há um saber sobre a cidade que emerge dos trabalhos. Sem didatismo ou citação. De onde vem essa presença não evidente da natureza que habita as cidades?
…Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão…
EU SOU DOLORES (2002) se inscreve entre a pele da arquitetura e da cidade. Atravessa o vão, onde antes se instalava uma janela, deixando o “eu” da obra sobre o abismo da rua. Entrevisto por fora, o trabalho se insinua adentrando o edifício sem se limitar à sua escala interior. É objeto exterior, carrega a escala de um letreiro de fachada, mas se põe entre fora e dentro, tensionando e alterando tanto a leitura do edifício como o campo estanque em relação à cidade, transbordando a experiência do interior da sala através do vão que devolve a cidade. Dentro “sou dolores” é antes de tudo um campo de luz, tinge de vermelho a sala com uma espécie de luz matérica. Conector, “ponte” que define a presença das margens – cidade/ edifício – ao se instalar.
Edifício e cidade como um só campo espacial, borda ocupada que aponta para seus extremos, trânsito entre os sentidos de um dentro/fora que redefinem a experiência. Revela uma significativa liberdade com a experiência dos espaços, sejam urbanos, da cidade, sejam espaços interiores, abrigados pela opacidade dos espaços edificados. Reencantados aqui pelos domínios da luz.
EU SOU DOLORES é a luz vermelha que transcreve as terras baixas da enorme cidade no edifíicio ancorado no Belenzinho.
Traço de união, ou quem sabe, disjunção entre o pessoal e o plural, o de dentro travestido no de fora, o menor no maior possível.Letras-vagões feitas de metal e solda, vidro e gás incandescente, enfileiradas como um trem de 24 metros, que invade a sala fazendo estourar as paredes.Corpo presente, ser de luz, horizonte concreto de paralelas rasantes, íngrimes. Exterioridade interna que se projeta minúscula nos olhos vermelhos de quem por aí passar.
EU SOU DOLORES faz parte de um grupo de trabalhos com outros nomes de mulheres, em letras luminosas, que se inserem inesperadamente em espaços interiores.³
DOLORES (2002), AURORA (2003), LUZIA (2004)… mulheres feitas da matéria luz carregadas de intensidade cromática, rosa, vermelho, verde… Anúncio de seus humores? Estável, ordenada, oscilante, fixadas cada qual com um suporte que singulariza delicadamente suas estruturas. Luzia surge cambaleante a partir de fios que sustentam sua luz verde; Dolores, rigorosamente ordenada pela treliça metálica, estruturada em vermelho intenso; Aurora é quase um manuscrito, delineado em suscessivos traços movediços que amparam o fugidio nome em cor-de-rosa.
São letreiros subjetivados pela presença feminina em nomes tão próprios, instalados no interior do espaço. Janelas das quais se pode reconhecer, tão fora de escala, suas presenças cromáticas a transbordar para a cidade.
O código comum de textos luminosos que endereçam os edifícios na cidade e permitem reconhecer usos, aqui, torna-se subjetividade. Reposiciona-se, borrando a fronteira do espaço exterior/interior, objetivo/subjetivo.
A palavra construindo campos de luz foi muitas vezes matéria para Carmela. Um de seus surpreendentes espaços Us cara fugiu correndo (2000-2001), neon que transcreve um grafite de rua na parede do museu (Museu de Arte Moderna, São Paulo), tinge de vermelho cor e luz fazendo vibrar o corredor passagem como campo íntegro, subvertendo o nome próprio do Projeto (“Projeto Parede”).
Carmela vive espaços e nesse sentido coerentemente os preenche na sua plenitude volumétrica. Um preenchimento não apenas matérico, feito não por quem os contempla bidimensionalmente, mas os ocupa.
No MAM, a frase pichada transformada em neon, carregada para o interior/passagem de um museu, ganha outro contorno, outra força, deslocada da origem, nem mais pichação, nem mais neons, dois códigos urbanos bastante desgastados surgem aqui embaralhados, e trazem, de quebra, a rua para dentro do espaço museográfico.
Há outros, como a instalação SUL (2006), posicionada no teto do espaço: fios pendurados construindo um campo entre o céu e o chão do lugar no qual se encontram os reatores das lâmpadas. Deixados propositalmente à mostra, mas criteriosamente ordenados.
E, talvez um dos mais ardilosos, HOYEL, que ocupou a fachada do Pavilhão da Bienal, em 2002 (25ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo)4. Construído com uma estrutura de 3 metros por 3,5 metros e lâmpadas fluorescentes, Hotel ocorre como letreiro. Todavia, em vez de “informar”, desloca o sentido e o uso do espaço. Opera na brecha de um “desendereçamento”: não seria aqui a locação de espaços uma forte questão? A obra desloca o nome em relação ao uso oficial do espaço, embaralha os sentidos, atuando a partir de uma materialidade arquitetônica e urbana recorrente que, em geral, endereça lugares.
Ação tão pertinente quanto improvável no uso dos códigos urbanos. Demonstra uma intimidade que vai além da simples observação das cidades. A pista surge nas conversas com Carmela, na esteira de suas andanças que mapeiam uma certa São Paulo.
Aqui uma significativa constatação: a cidade que Carmela habita é uma cidade experienciada. Cartografada pela busca de seus variados artífices. A cada material distinto, a cada forma de fazer, a artista procura parceiros específicos. É assim que nasce sua intimidade com a cidade, uma cidade vivida e não idealizada, uma cidade que se inscreve a partir do ofício, na procura dos parceiros, nos endereços inusitados, nas lógicas tão singulares que vão da loja de tules à fundição de alumínio. Surgem assim endereços tão naturais quanto improváveis: Neon Tochi, em Guarulhos; Fundição Marieta de Alumínio, em Osasco; Lonas, no Parque Novo Mundo…
Na procura dos artífices de cada matéria, Carmela constrói uma cartografia do desejo do trabalho, mapeia a cidade. Aprende com a cidade sua estranha lógica, para reinaugurar com uma lógica tão singular uma outra cidade.
Quando eu estiver velho, gostaria de ter no corredor da minha casa
Um mapa de Berlim
Com uma legenda
Pontos azuis designariam as ruas onde morei
Pontos amarelos, os lugares onde moravam minhas namoradas
Triângulos marrons, os túmulos
Nos cemitérios de Berlim onde jazem os que foram próximos a mim
E linhas pretas redesenhariam os caminhos
No Zoológico ou no Tiergarten
Que percorri conversando com as garotas
E flechas de todas as cores apontariam os lugares nos arredores
Onde repensava as semanas berlinenses
E muitos quadrados vermelhos marcariam os aposentos
Do amor da mais baixa espécie ou do amor mais abrigado do vento. 5
A cidade ocupada por Carmela é, de certo modo, uma cidade benjaminiana, experienciada, e sua intimidade com ela se dá imbricada em uma cartografia inscrita pelas deambulações ocorridas na esteira do desejo e das lógicas dos trabalhos.
MOVIMENTOS
…Tua sombra a se multiplicar…
As obras de Carmela se constituem a partir de uma variedade significativa de materiais. Seu canteiro de obras é rico, partilha convívios e práticas, aprende no fazer do outro e subverte as lógicas sem impor uma matéria inédita, pois o ineditismo está na maneira de organizar o que existe. Não precisa inventar uma lâmpada, usa a que existe, acata suas limitações e com surpreendente liberdade constitui a diferença a partir do dado real.
Ela sabe, como poucos, usufruir do saber do outro sem dissolvê-lo em um princípio de autoria ensimesmada. Constrói com o outro, articulando seu domínio ao de quem domina a matéria que a atrai, constituindo possibilidades não previstas e, nesta medida, reinforma o mundo por uma poética resultante através das práticas que tangencia. Nesse sentido, lembra muito Lina Bo Bardi, arquiteta para quem o fazer era parte constitutiva da descoberta da alteridade que a encantava e de que partilhava, sendo um dos exemplos mais emblemáticos e conhecidos o SESC Pompeia. 6
Não persegue o desenho de autor, reconhece no desenho o gesto de origem que significativamente transformado resultará no trabalho. Os Buracos (1994), por exemplo, resultam da ampliação sucessiva de um primeiro desenho, feito à mão em ordinária caneta BIC, no momento de uma reunião acerca da implantação do projeto. Uma sucessão de ampliações e a definição das dimensões estabelecem o desenho final a ser escavado.
Há aqui uma bela contradição, a artista de uma rigorosa precisão acata a imprecisão inevitável do mundo. Reconhece que a feitura dos buracos levará inevitavelmente, pela natureza artesanal desta escavação, à adulteração da geometria indicada.
Sem fazer disto uma bandeira, os modos de fazer são, talvez, seu traço mais recorrente. Muda a matéria, mudam os parceiros, mudam as escalas, mantêm-se as formas de enfrentar o mundo e de reinventá-lo. Os elementos já estão lá mas, ao redefinir suas possibilidades, reinventa a forma de olhar. Um olhar que serenamente reconhece a variedade do mundo sem buscar aplainá-lo em idealizações.
…Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão…
Corpo de idéias 7 (1981) resulta da sobreposição de xerox em papel vegetal das páginas de uma enciclopédia visual reproduzidas em cópia heliográfica. Espessa tessitura de imagens que redefine outros registros.
Resgata do espaço ordinário um campo extraordinário. Reconhece beleza e poesia em pequenas coisas cotidianas. Às vezes em registros técnicos, que ordenam o mundo sem registrar seu encanto.
Carmela, reencanta o mundo a partir dos registros e recorrências, transformando-os por uma singular poética que os fazem se transformar.
É capaz, por exemplo, de propor um Projeto para a construção de um céu (1980-1981), série de 33 desenhos, a lápis e nanquim, constituídos a partir do código dos desenhos técnicos de arquitetura e astronomia. Esse céu projetado, tanto possível porque aderido ao real, quanto improvável porque impossível (será mesmo?), guarda um dos mais doces encantos, aquilo que tem de humano na desconcertante potência de acreditar poder construir. E, quando na esteira do sonho, a fulgurante beleza que há em, de fato, poder construir, como estes paradoxalmente potentes e delicados mundos construídos.
Carmela constrói mundos, porque os habita.
Para mim, só é possível “pensar arte” como máquina social e urbana, que se produz nesse meio e a ele se destina, em suas trocas ativas e múltiplas; daí meu interesse maior pelas cidades de fronteira, do que pela geografia, uma vez que o trabalho a ser realizado deverá “pertencer” à fronteira em questão.
Não consigo “pensar arte à distância”; preciso da experiência concreta, direta, corporal, visual, com o espaço que “receberá” a obra, ou “se transformará” na obra suas vizinhanças, entornos, sombras, que serão componentes indissociáveis dela. 8
Fronteira, fonte, foz (2001), trabalho para uma praça na cidade de Laguna, em Santa Catarina, é um dos projetos urbanos de Carmela. Constrói no pavimento em mosaico português uma sombra, um vestígio de homem em linhas circulares. No corpo a corpo com o pedestre apenas uma vibração de ondas, na visão aérea das sacadas vizinhas, o vulto se anuncia. Dois tempos de uma imagem que, antes de tudo, retoma um certo modo de fazer tão peculiar aos nossos passeios públicos, pavimento recorrente nas nossas cidades reinventado por Burle Marx, no que veio a se tornar uma significativa referência em nosso imaginário urbano: o calçadão de Copacabana, lugar de idas e vindas, território de alegres deambulações à beira-mar.
A praça de Laguna sintetiza esse poderoso imaginário articulado a outro, dos corpos, da subjetividade, dos vultos das artes plásticas (O grito de Munch?), da vibração das respirações.
O mundo proposto por Carmela aparece assim, geometricamente preciso, ardilosamente fugidio e subjetivo, encantadoramente humano. Guarda a sofisticação adensada de tantos circuitos simbólicos e eruditos estrategicamente aderido ao que ordinariamente se encontra colado na pele/experiência de qualquer um.
E desse improvável mundo proposto por ela será possível emergir das mãos de uma bordadeira um delicado traçado em tons variáveis de vermelho do mapa da rede hídrica registrado pelo geógrafo Aziz Ab’Saber. Fios d’água a redefinir possibilidades. 9
…Catando a poesia
Que entornas no chão…
Pelo reconhecimento da alteridade, Carmela põe o mundo em movimento. E o movimento em Carmela surge como uma dança.
Seja na forma como, a partir da materialidade das obras, propõe o movimento do corpo, como em Em vão (1999), no qual é preciso bordejar o espaço, ou nas Hélices (H1, H6, MAX, todas de 1993), onde o gesto explicitado é necessário para ativar a obra.
Mas talvez o movimento mais intrigante seja aquele no qual ela delicadamente põe em deslocamento as coisas.
E é a matéria quem dança no espaço. Ilhas (1995), Em vão, Alagados (2000) e Fronteira, fonte, foz, guardam entre si a semelhança de um gesto que reconhece um território e o redefine. Nas dobradiças de Alagados, no elástico de Ilhas e Em vão, no mosaico de Fronteira, fonte, foz surgem rastros de territórios, memória de experiência de espaço, alguns deles transformados no espaço mesmo. Alguns deles a exigir corpos que deambulam para compreender o traçado da obra.
Ou desestabiliza o espaço por uma suave perturbação, como em Expansivo (1988), no qual um campo fugidio de espelhos faz “retrair” a parede imóvel. Distingue-se das outras ocupações da mesma natureza pois faz a matéria retrair o espaço, estilhaços que fazem vibrar o plano inicialmente estável.
Nesse sentido, aproxima-se do Hotel balsa (2003). Espécie de tablado sobre o qual o visitante é convidado a se instalar, e que percorre o espaço em lento movimento ladeado por um plano de luz e outro de espelho, no qual está escrito hotel. Jogo de reflexos, luzes, movimentos. Suave movimento que dissolve as certezas do mundo.
Mas é em A negra (1997) que Carmela faz da cidade um salão e a dança, de fato, se anuncia enquanto “a negra” espera alguém que a tire para dançar na Paulista.
Da cidade cartografada vemos então surgir traçados tão improváveis quanto delicadamente (im)possíveis a serem apreendidos num campo simultaneamente expansivo e subjetivo que Carmela nos convida a também habitar.
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¹A música As Vitrines, de Chico Buarque, surge em uma das conversas com Carmela, em seu ateliê, durante o manuseio
dos projetos, em um texto de aula dada por ela, encontrado entre os papéis da obra A negra (1997). A letra na íntegra: “Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão/ Dá tua mão/ Olha pra mim/ Não faz assim/ Não vai lá não/ Os letreiros a te colorir/ Embaraçam a minha visão/ Eu te vi suspirar de aflição/ E sair da sessão, frouxa de rir/ Já te vejo brincando, gostando de ser/ Tua sombra a se multiplicar/ Nos teus olhos também posso ver/ As vitrines te vendo passar/ Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão/ Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ Catando a poesia/ Que entornas no chão”.
²Carmela GROSS – 5 Depoimentos ao Departamento de Pesquisa e Documentação de Arte Brasileira, São Paulo, 22/2/1978.
³Carmela GROSS – Projeto para Eu sou Dolores , junho de 1999, inédito
4 Disponível em: 5 Walter BENJAMIN – “Fragmento” (1932), apud Willi BOLLE, Fisiognomia da metrópole moderna, EDUSP, São Paulo, 1994, p. 313. 6 Ver: Marcelo Carvalho FERRAZ – Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1996 e vídeo documentário dirigido por Aurélio Michilis Lina Bo Bardi, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, São Paulo, 1993 7 Em Corpo de ideias, a operação é de reconhecimento, a partir da descoberta da enciclopédia como matriz, e de sobreposição. 8 Carmela GROSS – Projeto Fronteiras, Itaú Cultural, 1999, inédito. 9 Vale registrar uma pequena história contada por Carmela acerca desta obra: a sua definição se deu pelo bordado, pela escolha de seu traçado, do ponto e da cor – vermelho – sendo que a posição de cada tom foi definido pela bordadeira. Confirma-se assim a serenidade com que Carmela estrutura seu trabalho, acatando a presença bem-vinda do gesto do artesão com quem partilha a feitura da obra.
LEIRNER, Sheila. Carmela Gross, a perfeita anatomia de um enigma.
O Estado de S. Paulo, São Paulo,
02 out. 1983, p.32.
O dicionário define quasar como uma fonte de rádio de origem ainda misteriosa, que tem aspecto visual estelar, mas chega até nós de forma diferente do que qualquer grande galáxia brilhante. Em astronomia, quasar é uma quase-estrela. Esta é a idéia metafórica, a expressão do pensamento estético, poético e filosófico que orienta inteligentemente “Quasares”, a mais recente exposição de Carmela Gross, uma de nossas jovens artistas de maior seriedade. São 11 trabalho em off-set, expostos no Centro Cultural São Paulo (Espaço ABC - Arte Brasileria Contemporânea/Estação Vergueiro do metrô), que se desenvolveram, segundo ela, “a partir de pequenos desenhos recolhidos de ilustrações impressas. Pelo controle de sucessivas operações técnico-mecânicas, afirma Carmela, pude modificar a configuração inicial das imagens para romper os limites de uma visualidade reconhecível”.
Com efeito, cada reprodução apresenta a imagem nebulosa, às vezes quase abstrata, de um desenho que só a artista conhece. Um desenho que foi des-construído, não apenas para discutir no campo das propabilidades, como ela diz, a sua concepção original, mas sobretudo para trazer de volta, de maneira inversa e conceitual, o próprio processo de construção do desenho, seus signos e significados.
Não é de hoje, afinal, que o trabalho de Carmela questiona principalmente a arte e os próprios procedidmentos e concepções gráficas. Seus “Cantos”, “Carimbadas”, “Corpo de Idéias”, “Projeto para a Construção de um Céu” (na XVI Bienal Interncacional de São Paulo) sempre indagaram o próprio processo, curiosos com o desenho, suas origens, etapas e destino.
Esta é uma exposição que não tem o impacto daquela que ofuscou a representação brasileria na última Bienal. É tão pequena e recatada que, fisicamente, parece perder-se nos enormes espaços agora disponíveis, diante de retumbantes pinturas e gigantescas propostas. No entanto, o que ela apresenta são signos que remetem mais ao conceito do que à intenção formal do resultado plástico. Seus trabalhos são, sobretudo, o desenvolvimento de uma idéia. Qual é, afinal, o tamanho de uma idéia?
Hoje, a escala e a importância desse tipo de trabalho prendem-se à noção contemporânea para a qual a predeterminação, impulso e necessidade “medem” a sua relação com os outros meios. Os valores físicos e de qualidade podem finalmente ser descartados. Dentro de seu aparente hermetismo e rigidez, “Quasares” é uma exposição com uma dimensão poética e filosófica tão grande, profunda e eloqüente quanto os “Céus”.
Essa mesma união da racionalidade à sensibilidades revela, desta vez, que o fascínio da artista pela arte não é menor do que aquele que a lição de anatomia humana exerceu sobre Rembrandt. Tanto é, que ela executa, e com sucesso, a anatomia perfeita de uma enigma. Aquele que faz com que um objetivo original seja transformado em um novo objeto por meio da visão privilegiada do artista.
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. Especulações. In: GROSS, Carmela. Carmela Gross. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 1997. Folha dobrada.
...e se fosse possível arrancar da casa, a escala? do lençol, a superfície? pensar a horizontalidade do tampo de uma mesa, a proximidade de uma fronha, o tato direto de um lenço..., de modo a desprender certas relações do cotidiano, deixando nele esquecidas as coisas e os objetos? e se por meio disto fosse dado guardar precisas dimensões, pelas quais as relações humanas viessem se transbordar no universo?
A mediação do corpo entre as coisas do mundo restitui a instância fundamental da atuação artística de Carmela Gross. Carmela elabora a abertura da obra a longo curso, como lembram casos em que o impalpável se materializa em nuvens concretas, em que a vista toca à distância o céu, em que o ritmo do tempo imprime a repetição do gesto, em que o íntimo se reveste de austera aparência. A liberdade de ir além, atravessando o mundo das coisas, e a permeabilidade de se deixar falar pelos processos da vida moderna constituem motivos primordiais, que a artista submete à vontade construtiva.
Feche a porta é o nome emprestado a este trabalho que apresenta no Centro Cultural São Paulo. Enunciado de uma simples passagem do dia a dia, em imperativo de ordem, em relação com outra pessoa. Carmela teria associado a frase à obra recente, em virtude de considerações encontradas, nas leituras das Cartas Exemplares. Em confidência, diz Flaubert que “é tão fácil tagarelar sobre o belo. Mas para dizer em estilo próprio ‘feche a porta’ ou ‘ele tinha vontade de dormir’, é preciso mais gênio que para fazer todos os cursos de literatura.” A passagem desperta a complexidade que está por trás de expressões diretas, aparentemente simples, recorrentes e repetitivas, como nossos próprios hábitos profundamente arraigados.
A obra em exposição é materialização de puras linhas de desenho, em peças delgadas de ferro. Concretiza a linha-fenômeno bruto. A arte, na concepção da Carmela, é sempre “coisa mental”. É projeto, utopia – o que equivale dizer: lugar nenhum. De fato, a estrutura vazada do desenho expõe o vazio do recinto, que lhe emoldura.
Carmela instiga o fruidor a adentrar um mundo estranho. Somente invisíveis relações de escala podem restituir certa humanidade à obra, estabelecida entre o espaço da arquitetura e do objeto, ou melhor, em uma esfera que abrange e outra que interrelaciona. Contudo, as tenções entre humano e desumano, entre desconhecido e conhecido, entre o racional e o irracional não param de inquietar.
Quem visse estes componentes mecânicos de ferro construídos em poucas linhas, anteriormente amontoados, em desordem no chão, não poderia supor que tenderiam ao raio, ratio, ou razão, a medida em que fossem elevados à verticalidade humanizadora da superfície mural, na qual são propostos e recebidos nas categoricas relações ortogonais. A obra de Carmela move-se nos limites entre a organização e a desordem. As barras de ferro, revestidas de pó grafite, sustentadas na parede, levemente elevadas do chão, flutuam como idéias em suspensão. Articuladas por dobradiças, tornam-se exterioridades e são oferecidas à manipulação.
O projeto possui um princípio de base, um axioma que dá conta de possíveis variáveis de todo sistema de relações. Trinta e seis módulos quase iguais são derivados de estrutura cúbica, aberta e incompleta. Através desses artefatos mecânicos repetidos, a artista procede operações mentais precisas, gerando relações espaciais definidas. Joga portanto com a profundidade do pensamento matemático e a exterioridade da experiência, que ocorre no espaço ocupado pelo corpo. Provoca desconcerto.
Entenda-se adequadamente que Carmela propõe espaços definidos, porém abertos, em movimento, sujeitos ao acaso. O que equivale dizer: espaço aberto à especulação, à mobilidade do pensamento – metaforicamente aludida na obra móvel, posta ao alcance da mão do espectador.
Carmela maneja com sutileza a disposição dos componentes mecânicos, articulados, que se desdobram ritmicamente no espaço cúbico da sala. A diposição por simetria é o fundamento que possibilita a apreensão de todos os aspectos de cada uma das peças e, simultaneamente, pelo qual cada peça está sujeita a ser parte da obra completa. As unidades discretas abrem-se para o espaço e voltam-se sobre si mesmas. As dobradiças permitem que componentes móveis venham ser conjugados, lado a lado, dois a dois, em feixes variáveis. Num limite desse campo de virtualidades, as peças dobram-se sobre a extensão mural e a obra desespacilizada revela o teor mais agressivo, pontiagudo, que afronta o espectador. No outro limite, projetam-se para o espaço da sala e, fechando-se sobre si mesmas, configuram, formam. É impossível não nos surpreendermos mais uma vez, fugindo ao estranhamento, procurando o reconhecimento da nova unidade formada, que lembra a estrutura de uma cadeira. Longe da coisa, perto da idéia, surge o teor de cadeiridade dessas dezoito figuras. Por tal artifício, Carmela põe em discussão a própria forma, que desliza entre a representação do mundo e a apresentação das operações mentais. Abrir a unidade assim formada é abrir novamente a obra, construída obsessivamente, em abismo.
Seguem-se metáforas, a medida em que se penetra no espaço físico da instalação e se toma parte na obra. Não basta olhar o objeto como observador ou tocá-lo como espectador. É preciso preencher o mundo de esqueletos, reconhecer o gesto que atua na mecânica repetição das estruturas. A obra só pode ser adentrada pelo pensamento. Dela se participa como testemunha, reatualizando ordem e desordem, propiciadas pelos dilemas do projeto. Destina-se a ser atravessada pelo pensamento especulativo.
Na ocasião em que Carmela exibe pela primeira vez feche a porta , nada mais oportuno do que evidenciar outro momento da sua atividade, sedimentada em trinta anos de trabalho. O projeto para a construção de um céu, elaborado em 1980, evoca assim sua identidade artística, e pretende mostrar que, sob aparente diversidade, Carmela reencontra sempre a si mesma.
Com certeza, a história da arte teria muito a dizer sobre o sentido de olhar para o céu, ver ou imaginar. Já o olhar à distância se confunde com o próprio pensamento abstrato. Impossível olhar o céu sem inventar, sem projetar e é dessa atitude de Carmela que brota o desenho em sua forma mais pura. A série das 33 imagens sobre papel nasce da obstinação para imitar a realidade sensível da esfera celeste do hemisfério sul e propõe o questionamento da representação.
O espaço celeste, puro espaço de projeção, coloca Carmela diante do fenômeno luminoso, sem forma fixa, ilimitado e sublime. Com a suavidade do lápis de cor, versa sobre flutuações, adensando e rarefazendo o registro das massas no papel, cultivando transparências. Ao mesmo tempo, ela indaga sobre cartas celestes. Com o auxílio de convenções gráficas, recodifica suas imagens coloridas do céu, delineando as massas de nuvens em projeções anamórficas.
Trata-se de proposição irônica, que traduz unidade e cisão, características de sua linguagem, seu “fingimento” a propósito da artificial equivalência entre os termos resultantes da visão e da convenção construtiva. Carmela faz alusão ao edifício das artes, aos artifícios, à notação perspectiva do renascimento, que interpretou o espaço do mundo fenomenal, unindo-o por um sistema de coordenadas. É um reconhecimento de que a operação construtiva separou-se do mundo real e, desde o cubismo, veio possibilitar a independência de todo sistema dedutivo ou lógico, com relação ao processo de observação.
O projeto para a construção de um céu nega a unidade ideal da percepção configuradora e apresenta a dualidade pela qual a forma operacional do pensamento se libera dos imperativos da realidade perceptiva. O pensamento artístico liberado pode explorar a obra, assim como tomar o lugar da realidade visual. Torna-se modelo de representação e atua o critério de julgamento.
Como se pode notar, no projeto para a construção de um céu , Carmela já versa sobre a aparência do pensamento. Expõe diagramas da razão. Tece, de um lado, a dimensão fenomenal do mundo sensível, da pintura, de outro, a construção conceitual e operacional do desenho, a cristalização da convenção gráfica. Carmela nem cogita solucionar tal polaridade, da qual desprende seu discurso. Ora sonha com a profundidade do céu, ora encara a exterioridade da linguagem visual. Outras vezes, a profundidade é do pensar, enquanto o experimentar, a experiência no espaço ocupado pelo corpo, é mera exterioridade – como especula em fecha a porta . Afinal, Carmela é sempre a mesma.
AMARAL, Aracy. Carmela Gross 1993: um olhar em perspectiva. In: GROSS, Carmela. Hélices. Rio de Janeiro: MAM, 1993.
A individual de Carmela Gross em 1990 trouxe-nos de volta a idéia de que não se pode avaliar a contribuição de um artista através de uma única exposição. O artista vale por sua trajetória. O artista interessa pela vitalidade, resistência, garra de trabalho com que atravessa diversos períodos de sua vida, circunstâncias de seu meio cultural e do mundo em que se move. Ao ver essa exposição de Carmela Gross nos veio à mente seu início como artista no contexto de sua geração, e o modo como ela cresceu e desenvolveu seu discurso plástico-poético. Uma individual é um capítulo, não diz do percurso, verdadeiro comunicador da inteireza da validade ou não da obra desse artista.
A atuação de Carmela Gross no meio artístico brasileiro se inicia num período limite, fins dos anos 60 e começos de 70. Momento em que as técnicas tradicionais (pintura, gravura, desenho, escultura) cediam lugar às inovações mais liberadas possíveis, a partir dos exemplos das realizações dos artistas “pop” ingleses e norte-americanos, a partir do surgimento dos “happenings” e performances, da arte conceitual, da desmaterialização do fazer artístico, finalmente. Ou seja, um jovem artista que desponta nesse instante surge motivado pela arte que sempre se fez, como pintura, mas encontra a seu alcance toda a abertura possível de se imaginar no que tange a meios alternativos. Do período “pop” de Carmela conhecemos dois objetos-instalações: as “Nuvens azuis” (1967), hoje na Pinacoteca do Estado, executadas em madeira laqueada, e o “Presunto” (1969), forma mole, em lona, apresentada na II Bienal de Artes Plásticas de Salvador. A década de 70 se constituiria em experimentação contínua para artistas jovens, que nem sequer chegavam a tocar em pincéis ou óleo. É o tempo, no Brasil também, de novos media : vídeo, audiovisuais, super 8, xerox, heliografias, discos com sons concebidos por artistas, etc. É o tempo do “espaço experimental” que o MAM do Rio de Janeiro abriu para esses artistas, e, em São Paulo, da “ExpoProjeção 73”, sob a curadoria de Aracy Amaral, primeiro encontro nacional de artistas trabalhando com novos media, e das JAC – Jovem Arte Contemporânea – no Museu de Arte Contemporânea da USP, sob a direção de Walter Zanini.
Existiu mesmo nesses anos uma espécie de preconceito contra a pintura, ou o trabalho “realizado” pelas mãos do artista, muito embora lembremo-nos de conversa com Mira Schendel, ocasião em que nos dizia que não podia conceber arte não executada pelo artista. Pensar todos pensam. Agora, concretizar dando fisicalidade a esse pensar, cabe ao artista saber fazê-lo. Para Carmela, neste período efervescente de experimentação livre, o exercício era não apenas com imagens multiplicáveis, porém com o que também se convencionou chamar de “arte de processo”. Ou seja, a artista interferindo sobre ilustrações, imagens reproduzidas em livros, ou imagens superpostas em provas heliográficas de dimensão generosa (5m X 5m).
A característica de disciplina, no ritmo obsessivo de sua grafia surge quando a artista expõe em 1977 (Galeria Mônica Filgueiras/Raquel Arnaud), com desenhos em lápis de cor, formas delimitadas por “máscaras” de papel, racionalidade aliada à concisão, esta já implícita em seu trabalho. A partir de 1978 em sua fase dita dos “carimbos”, o que se observa é mais a multiplicação do gesto gráfico, em ordenação rigorosa. A superfície do papel é coberta por pequenas linhas que se repetem, ou rabiscos, grafismos, manchas ou texturas, numa tipologia única por folha. Claro que o “carimbo” possui uma conotação irônica, peculiar à época da produção múltipla, a confrontar-se com um possível mercado de arte preocupado com a unicidade da obra de arte. E ao mesmo tempo, da imagem do artista como “designer”, projetista de um módulo repetível com a mesma qualidade, em princípio, e distanciado, o criador, do fazer convencional. O mesmo motivo sobre o papel nos traz `a mente este dado sempre presente em Carmela Gross: o repetitivo, o reiterativo, obsessivo de seu gesto. A própria artista se indaga: “Não será esta uma característica do feminino, o repetitivo?” Quem sabe, embora no decorativo esteja implícito também esta qualidade própria do fazer da mulher: no motivo repetido do bordado, do friso, do arranjo diário da mesa, do vaso de flores, da arrumação de uma cama. Em todos estes gestos percebemos, não um fazer isolado, porém como rituais que se repetem continuamente ao longo da vida.
Quando surge em sua obra a sua conhecida série “Projeto para a Construção de um Céu”, vemos Carmela Gross já vivenciando um novo tempo, o desenho insinuando-se no meio artístico como um esboço de retorno à obra que permanece. Mas as pequenas marcações, que conferem estrutura a esses desenhos, nos remetem a certas imagens de seu período de carimbos, em sua ocupação do espaço. Estranha essa série. Essa estrutura aparente parece existir como base para medir o imensurável, a espacialidade da abóboda celeste, que imaginamos infinita. A artista se debruça sobre o papel (1m x 70cm), e em elaborados traços com lápis de cor, constrói com tenacidade seus trinta e três “céus”, número correspondente à divisão por partes feita pela artista do céu do hemisfério sul. Em seu percurso profissional igualmente esse momento assinala outras preocupações. Inserida no corpo docente da Escola de Comunicações e Artes da USP, coloca-se um desafio para a artista. O de realizar um mestrado, que seja fiel, ao mesmo tempo, a suas especulações anteriores, e neste caso, o desenho como projeto. Coube-lhe então buscar um embasamento teórico que, sem violentação na medida do possível, lhe permitisse uma realização. Um trabalho que nos fala muito de seu fazer obsessivo na elaboração de uma série extensa como esta, ao mesmo tempo carregada de poética visual, impregnada de um certo mistério em seus desígnios, que talvez hajam sido verdadeiro desafio para a artista.
A exposição “Quasares” (1983), trazia um nome enigmático, a significar, segundo a artista, “vibrações sonoras captadas por censores de sons”. Pensávamos estar novamente diante das experimentações da década anterior: impressões em off-set registravam imagens fantasmáticas, a nos transportar incorporeidade em sua imprecisão, alusivas, embora por sua própria indefinição, nada nos remetesse às fontes de onde a artista extraia essas formas interferidas pelos processos até a impressão gráfica.
Foi quando nos demos conta da importância do papel no trabalho de Carmela: o carimbo assume vida sobre o papel, as imagens superpostas exploram as possibilidades do papel heliográfico, o desenho para a construção de um céu ocupa vastos espaços sobre papel, e as impressões “Quasares” eram igualmente sobre o mesmo suporte. Na verdade, essa sensibilidade/intimidade com o papel a levaria, a partir de 1987, a pesquisar e trabalhar sobre papel artesanal, produzindo texturas, ao se utilizar do grafite, pigmento e cola, diversificando seus materiais. Mesmo ao ter início sua série de pinturas e relevos pintados, mais recentes, o desenho para Carmela Gross, enfatizando o caráter conceitual de sua produção, parece desempenhar uma função de exercício, diciplina para a criação, às vezes operando junto, por vezes paralelamente, a uma obra “maior”. Mas é nessa segunda metade dos anos 80 que surgem formas fortemente geometrizadas, em contraposição ao gestualismo de factura da pintura.
A virada para a pintura seria uma influência da década de 80, quando o retorno às tintas e às cores foi tão unânime no exterior como no Brasil? É possível que sim, posto que o artista não é imune ao que sucede no meio artístico que o circunda. Embora neste caso longe do puro prazer dionisíaco das cores e gestos pictóricos, e na pintura de Carmela sempre prevaleça o conceito, fidelidade geracional. Assim, na exposição de pintura da Galeria Luisa Strina (1986) parecia transpirar algum classicismo, em suas telas cortadas em planos imperando a simetria e a centralização compositiva. Paradoxalmente, comparecia também a pincelada gestual, o curvilíneo dos formatos se contrapondo à ortogonal, ao quadrado dominante como suporte, ao lado da redução cromática como opção.
A artista refere-se a esse estágio como um período de transição (“possível encontro”) entre a pintura e o desenho: “... um desenho que delimita, projeta, arma e se enrijece na geometria rigorosa de encaixes, e uma pintura que busca o expressivo e a fluidez da matéria cromática, em descristalização do simbólico e do clichê” (catálogo MAC - USP, “Pintura / Desenho”, 1987).
A partir dessas pinturas de limites recortados, fora do retângulo pictórico convencional, assim como de planos encaixados ou justapostos, começariam a emergir concepções livres como formato, e temas conceituais embora figurativos, como labaredas, colunas de fumaça, montanhas, cascatas que vertem com violência em todas as direções desafiando a gravidade, assim como as cortinas dentro do palco dentro do quadro, da vazia cena entreaberta, espaço da representação ausente. Neste período se observa em certos trabalhos novamente a repetição de formas igualmente como tema, assim como em certos trabalhos o espaço virtual da pintura tem continuidade sobre o espaço real, o muro, sobre o qual o gesto gráfico da artista começa a complementar a imagem pictórica.
Esse talvez seja o início da presença de uma grande energia, movimento traduzido em pintura pensada, embora com fluidez de execução com transparências e grafismos a nos remeterem à poética imagem da caverna platoniana, onde parecem projetar-se luminosidades e aparências do exterior (Bienal Internacional de S. Paulo, 1989). Seguir-se-iam pinturas em acrílico sobre madeira, em formato diminuto, montadas como uma gigantesca instação pariental. Essa sua produção (1988, Galeria São Paulo) pareceu-nos uma referência, estranha como diante do clima dos trabalhos de Angelo Venosa, como se estivéssemos frente a uma livre ordenação sistemática de elementos e instrumentos de era neolítica por arqueólogos pesquisadores de uma cultura extinta.
Impressão similar ainda nos causariam seus trabalhos expostos na bela exposição da Galeria São Paulo dois anos depois (1990), tanto em “Paisagem”, como em “Trem”, já aqui em alumínio fundido; portanto, presente mais uma vez a especulação por meio de novos materiais que é, por certo, característica da artista. A densidade poética de Carmela Gross alcança um ponto alto, com “Praia”. Aqui quatro placas de alumínio fundido se justapõem, embora essa poética não deixe de remeter-nos, sem qualquer dúvida, ao trabalho do alemão Ulrich Ruckriem (exposto na XX Bienal de São Paulo, 1989), de vigoroso hieratismo, em ampla forma geométrica em pedra, composta igualmente de justaposição de elementos.
Monocromáticos, seus trabalhos a partir desta exposição (em alumínio ou madeira) parecem trazer à tona a sombra, forma virtual, voluntariamente ou não, sutil elemento constitutivo de cada obra, ao mesmo tempo que o relevo, o abandono da tela, se confirma. O monocromatismo mencionado parece refletir também sua característica acentuada como projetista, que se expressa através do desenho. Por outro lado, a artista parece buscar, a partir de então, formas orgânicas ou formas ordenadas da natureza, quase amorfas, como pertencentes ao reino das coisas aquosas; nesse primitivismo já assinalado anteriormente surgiriam em suas peças relevos a insinuar um movimento espiral circular, relevos sempre monocromáticos, “tumores” rijos prestes a explodir, a surgir do muro, misteriosos em suas formas encerradas ou a sugerir uma tentativa de perfuração central. O movimento que emergira em suas obras em 1984 reaparece agora, sob novo formato, em seus trabalhos mais recentes nas pás, ou moinhos (ou hélices) placas de madeira rústica de pintura sempre monocromática, de movimento induzido pela mão do observador, movimento preguiçoso em embalo/impulso. Nestas peças de grande espacialidade sobre a parede está quase ausente, novamente, no trabalho de Carmela, a mão da artista, projetista/inventora destas máquinas sem função. São formas retiradas da natureza, sem angulosidade ou linhas retas, sem interferência maior por parte da artista. Em seus desenhos da mesma época a aquosidade já referida parece invadi-los também, na inexistência de uma composição racional, agora sobre papéis artesanais, com formas fecundantes como a mover-se no cosmos uterino ou oceânico, mar de elementos como águas-vivas, de transparências colantes, detidas, suspensas em sua gestação interrompida.
O trabalho de Carmela Gross pertence à contemporaneidade da arte. É de nosso tempo, identificável com as correntes conceituais e com as preocupações experimentais das últimas duas décadas. É certo que existe uma enorme similaridade entre pesquisas de artistas de meios urbanos desenvolvidos, e a obra desta artista, neste sentido, não foge à regra. Difícil seria encontrar nela características que para o meio internacional se pudessem assinalar como indo ao encontro de suas expectativas de uma arte brasileira, sul-americana. Ela bem o sabe e tem sido confrontada, ao expor na América Latina: sua arte talvez fale pouco, seja reticente, em relação ao conturbado meio social e físico brasileiro. Mas esse dado, conforme já registramos em relação a outros artistas, talvez seja conseqüencia de nossa própria instabilidade econômica e injustiça social. O artista se encerra então em sua proposta de trabalho, buscando ouvir-se e projetar os ecos dessas circunstâncias, ou a negação delas, em seu fazer artístico. Isto é: há no Brasil uns poucos – e raros – que expressam algo da realidade social, enquanto outros negam, em rejeição eloqüente, um enfrentamento com essa mesma realidade, num país que tem dificuldade em conscientizar-se em todos os níveis da cidadania.
No caso de Carmela Gross, por outro lado, não vemos em sua trajetória a preocupação em firmar-se como presença de artista em lugar da obra, situação peculiar na arte contemporânea, quando vale o grito, o espetaculoso, o instante de projeção, e não o trabalho que permanece. Nesta artista, por trás de suas experimentações, há um trabalho em seqüência, apreciável através dos anos. Não ocorre em sua contribuição a ostensiva realização como a de execução ou mesmo de recorrência tecnológica de uma Jenny Holzer, nem tampouco a distribuição internacional de uma Cindy Sherman. Pode-se ser contemporâneo sem recorrer ao “marketing” de um Jeff Koons ou de um Christo. Paul Valéry já escreveu que “o prazer está se desvanecendo. Fruição é uma arte perdida. Agora a coisa é intensidade, enormidade, velocidade, ação direta sobre os centros nervosos pelo caminho mais curto”. É sobretudo nos eventos internacionais mais badalados que desaparece de maneira mais marcante essa possibilidade de fruição da obra, por chamar a atenção somente o clamor, por desaparecer a atenção pela obra, que não importa muito, a não ser pelo impacto com que pode atingir o visitante que flana pelo espaço, sendo visto, pórem quase sem olhar, freqüentemente sem retorno posto que não há tempo. Claro que há um preço, o do reconhecimento, para o artista que opta por aparecer através de um trabalho ao longo do tempo e não percorrer as arenas do “jet set” das artes. Sobretudo quando se vive num país desamparado culturalmente como é o Brasil de hoje. Mas o fundamental, a nosso ver, é se pertencer a um lugar num determinado momento. O triste é viverem os artistas num país surdo à cultura e suas manifestações, como o Brasil nas últimas décadas. Escreveu Giulio Carlo Argan, que na civilização ocidental-cristã “a arte certamente teve um desenvolvimento histórico correspondente à estrutura historicista dessa civilização. Fez-se a arte com a intenção e a consciência de fazer arte e com a certeza de concorrer, fazendo arte, para fazer a civilização ou a história. A intencionalidade e a consciência da função histórica da arte são, indubitavelmente, os principais fatores da relação que se estabelece entre os fatos artísticos de um mesmo período, entre os períodos sucessivos, entre a atividade artística em geral e as demais atividades do mesmo sistema cultural” (G. C. Argan, “História da Arte como História da Cidade”, Martins Fontes, São Paulo, p.19). Essa inserção natural da arte na história das sociedades é ignorada no Brasil, onde assistimos estarrecidos a um processo de deculturação galopante, com o meio intelectual e artístico impotente em motivar os cuidados do Estado. E nessa circunstância nos sentimos todos marginais, como batalhando em área sem significação, quando deveria ocorrer uma intensa campanha de valorização da criação artística, a fim de se conferir dignidade ao vilipendiado ser brasileiro. A relação da arte com a sociedade nem se coloca no estágio em que vivemos, pois não parece que haja preocupações com a arte do passado, o que seria fundamental para assentar, criar e divulgar nossa memória, e, portanto, muito menos com o presente. Talvez a ausência de valores espirituais e artíticos no Brasil seja de tal monta que o surgimento dos meios de comunicação de massa parecem se impor como os únicos válidos, inclusive a nível político, acima das equipes governamentais, subservientes à poderosa mole televisiva. Estas considerações parecem-nos uma necessária reflexão, no momento em que abordamos o percurso da arte de Carmela Gross. Mas ela terá por certo, em dias melhores, por seu espaço conquistado, uma obra inscrita dentro do panorama da arte brasileira desta segunda metade de nosso século.
LAGNADO, Lisette. Carmela Gross Pesquisa os Limites da Pintura. Folha de São Paulo, São Paulo, p.E 4,
14 agosto 1990.
Aquela definição de que a pintura é um plano retangular estendido sobre uma parede está perdendo o sentido. Há quase meio século que as produções estéticas caminham para uma mistura deliberada de técnicas, suportes e estilos. A artista paulista Carmela Gross, 44, inaugura hoje na galeria São Paulo, uma exposição de “pinturas/objetos” em que as fronteiras entre cada território se tornam cada vez mais tênues.
“Estou chamando essa última fase de meu trabalho de ‘pintura/objeto’ para poder manter as duas definições. É o tempo inteiro um jogo entre os limites” diz Carmela. A questão foi registrada pela primeira vez nas pinturas em relevo de Frank Stella. Com esse caráter tridimensional, a obra parecia saltar para fora da parede, num claro desejo de espacialidade.
O artista Donald Judd, nascido em 1928, elaborou toda a conceituação da arte minimalista, baseado na constatação de que mais da metade dos melhores trabalhos novos não se definiam nem como pinturas nem como esculturas. A observação ainda vale para a produção atual. Nas últimas feiras internacionais de arte, galeristas de várias cidades procuravam desesperadamente pintores – uma categoria de artista em extinção.
As peças de Carmela são constituídas de fragmentos justapostos, em que a composição das partes resulta num todo. “Estou mais interessada na virtualidade da pintura que na concretude do objeto”, diz. Os recortes na parede são desenhos no espaço – um recurso que rompe frontalmente com aquela pintura tradicional em que a forma já vinha determinada por um retângulo alinhado no olho do espectador.
Na última Bienal de São Paulo, a produção de Carmela apontava para esse tratamento da superfície da pintura. Desde então, seus objetos de parede preservam uma atmosfera de “instalação”, aliás uma questão muito cara à tendência minimalista. Nas peças “Trem” e “Peixe”, a artista explora o movimento interno da obra através da repetição de elementos em alumínio fundido.
Carmela Gross leciona há 20 anos no departamento de Artes Plásticas da USP. Sua obra transita, com tranquilidade, entre o recinto teórico da universidade e o ateliê em que se tomam decisões mais intuitivas e estétic