ainda sempre ainda, 2022
Dimensões variáveis
Tinta acrílica sobre parede
Foto Filipe Berndt
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Linha do Tempo
5 x 320 cm
Colagens sobre placa de ACM
Foto Filipe Berndt
Advérbios cortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 (ano de nascimento da artista) são colados em uma superfície de cor neutra, formando uma linha do tempo desgovernada.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Palavra figura de espanto #5, v2022
27 x 189 cm
Capas de livros descascadas e Letraset
Foto Filipe Berndt
Palavra figura de espanto #3, 2022
26 x 196 cm
Capas de livros descascadas e Letraset
Foto Filipe Berndt
Palavra figura de espanto #2, 2022
26 x 191 cm
Capas de livros descascadas e Letraset
Foto Filipe Berndt
Palavra figura de espanto #1, 2022
26,5 x 187 cm
Capas de livros descascadas e Letraset
Foto Filipe Berndt
Modelo para armar, 2022
Dimensões variáveis
Colagem de recortes de revistas sobre fragmentos de caixas de papelão
Foto Filipe Berndt
Na instalação que ocupa a sala principal da galeria, substantivos cortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 (ano de nascimento da artista) são colados sobre fragmentos de caixas de papelão que já não funcionam para remontar as caixas originais.
Os conceitos de narrativas históricas, políticas, afetivas, relacionais e a própria linguagem entram em crise e estão aí como quebra-cabeças a serem remontados, rearranjados, ressignificados pelo observador que, aproximando-se e distanciando-se conecta termos de modo rizomático.
Além disso, a coleção demonstra a importância dada aos termos pela mídia impressa. Dardot conta que certas palavras só foram encontradas em escalas dimunutas como ‘racismo’ e ‘machismo’.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Modelo para armar
Detalhe de Modelo para armar (2022)
Técnica: Colagem de revistas sobre fragmentos de caixasde papelão
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Modelo para armar
Detalhe de Modelo para armar (2022)
Técnica: Colagem de revistas sobre fragmentos de caixasde papelão
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Vista da exposição
Detalhe de Modelo para armar (2022)
Técnica: Colagem de revistas sobre fragmentos de caixasde papelão
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Modelo para armar
Detalhe de Modelo para armar (2022)
Técnica: Colagem de revistas sobre fragmentos de caixasde papelão
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Ações do mundo, 2021
120 x 166 cm. (aprox)
Capas de livros sobre nações do mundo descascadas e páginas de índices
Foto Filipe Berndt
Capas de livros da coleção “Nações do Mundo” são desfeitas, deixando fragmentos de mapas, compondo novas geografias.
Os índices dos mesmos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho: Ações do mundo.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Ações do mundo, 2022
Detalhe da obra Ações do mundoCapas de livros sobre nações do mundo descascadas e páginas de índices
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Ações do mundo
Detalhe da Ações do mundo
Foto Filipe Berndt
Capas de livros sobre nações do mundo descascadas e páginas de índices
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
O Brasil O Brasil, 2022
5x210cm
Colagem de recortes de revistas sobre placa de alumínio composto
Foto Filipe Berndt
Recortes de revistas publicadas no Brasil desde 1973 (ano em que Dardot nasceu) com as palavras “O Brasil” são coladas em superficies de cor neutra. As diferentes cores, tipologias e idades simbolizam tentativas de definir um país em desconstrução.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Domine seu idioma, 2021
120 x 166 cm. (aprox)
Marcador permanente sobre livros
Foto Filipe Berndt
Ao mesmo tempo em que compilam as unidades de uma língua, os dicionários também representam um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios de uma determinada classe ou nação. Em Domine seu idioma, Marilá Dardot utiliza uma coleção de dicionários como base para um jogo léxico com expressões associadas à fala. A ideia de um idioma comum é trocada pela de “seu idioma”, pressupondo diferenças e dissidências, abrindo brechas para novas articulações plurais.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y desastres, 2022
30x298cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y rebeliones, 2022
30x305cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y potencias, 2022
30x286cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y afectos, 2022
30x260cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y transformaciones, 2022
30x418cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y insurrecciones, 2022
369x30cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).
Libros y amores, 2022
30x241cm
Perfil de aço galvanizado e pintura esmalte
Foto Filipe Berndt
A série de LIBROS Y nasce do encontro da artista com um letreiro de rua na Cidade do México que anunciava uma casa editorial: LIBROS Y EDITORIALES. A tipologia e o material daquele letreiro são reproduzidas para criar outra associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como sujeitos catalizadores de sentimentos e ações.
A inflexão temporal que se apresenta desde o título da exposição invoca, de imediato, o trabalho da memória. Entre figura e fundo, clareza e opacidade, o gesto de Marilá Dardot é aquele assinalado por Walter Benjamin: “Trata-se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência”. É justamente na força desse ato de artista de reconfigurar o mundo e o tempo que a repetição pode ganhar novos sentidos históricos e poéticos.
O trabalho de Marilá Dardot abriga, desde sempre, uma relação com a cintilância da letra, na relação direta com a literatura ou na força de capturar os jogos semânticos da linguagem. Essa marca agora se dobra, desdobra, duplica, mistura discursos em uma construção labiríntica que concede voz à ambiguidade da palavra e abriga uma irradiação incessante que busca o impronunciável que habita a língua. Há também a sensibilidade que se debruça sobre temáticas apagadas da história, repetições do uso de palavras que ganham direções e significados heteróclitos, como os dois advérbios escolhidos – ainda e sempre. Juntos e fazendo uma espécie de justaposição, eles funcionam como abertura para o enigma e uma maneira de desvio à impostura da língua. “Ainda sempre ainda” é uma exposição que, desde a entrada, se sustenta em um estado de perda, numa relação de crise com a linguagem.
Em “Linha do tempo” outra dobra se configura: advérbios recortados de revistas publicadas no Brasil desde 1973 – ano de nascimento da artista – e colados sobre uma superfície, formam uma linha de tempo em que se projeta a possibilidade de uma outra passagem, que escoa por entre as palavras, uma curva que embaralha passado, presente e futuro. As questões ali abrigadas aprofundam a discussão anunciada por Georges Didi-Huberman em “Diante do tempo”: a dimensão de uma temporalidade complexa e difusa. Para ele, o pensamento de Walter Benjamin, que está na base de seu modelo anacrônico, sugere que qualquer narrativa histórica é feita por uma montagem de elementos heterogêneos. Em termos benjaminianos, há uma atualidade no passado quando este é visto através das imagens. Na linha do tempo criada por Marilá Dardot, o que se coloca em cena é justamente a desmedida desse impossível, uma aposta na pequena revolução que acontece pelo efeito dialético que se dá entre palavra e imagem, sustentando a enunciação como última saída ao massacre imaginário e político.
Em “Palavra figura de espanto” capas descascadas de livros tocam a materialidade evanescente de palavras que, em duplas, nos pontos de estilhaço e poeira promovem encontros e ranhuras que desenham horizontes ora improváveis e de tensão, ora de fluidez e harmonia, mostrando a dimensão ambígua e delirante da palavra. O assombro diante da palavra – ou a própria palavra como “figura de espanto” – se abriga no ato de arrancar a capa dos livros, dando a ver os restos e camadas pictóricas até a sulcagem mesmo da superfície com a escrita: rememoração das paredes de uma caverna que, mais tarde, nos conduzem ao papel. A artista reconhece que nesse trajeto se desenha todo um percurso da grafia, ou mais propriamente da letra: do estilete à pena, da pena à caneta, da letra cursiva à letra de forma, do manuscrito à tipografia e à imprensa. Como gesto de resistência, a escrita sobrevive acolhendo o indizível e o impronunciável, mas não deixando de operar também sua ultrapassagem com um armazém de sinais que celebra o encontro com outras vozes e grafias. Das palavras tantas – entre as cansadas e pálidas, secretas e mágicas, ditas e caladas – forja-se um mundo: da impotência ao impossível, um outro mapa com suas marcas, manchas e litorais.
Em “Modelo para armar”, uma instalação com colagem sobre fragmentos de caixas de papelão abriga substantivos recortados de revistas antigas. As caixas, que já não servem para serem utilizadas, funcionam como abrigo de narrativas históricas, políticas, afetivas e a própria linguagem entra em cena para ser rearranjada e ressignificada como projéteis de uma operação simbólica. O título da obra é uma referência a um livro de Julio Cortazar, em que o escritor faz a narrativa a partir de peças mutáveis, em uma “armação” em que deslocamentos diversos das palavras procuram eliminar qualquer fixidez, abrindo os sentidos para que o leitor faça sua montagem pessoal dos elementos e acabe por escrever a história. A obra de Marilá Dardot também nos convoca como leitores ativos. Seu trabalho não visa à produção de um sentido estanque, não produz nenhum tipo de explicação que fixe o sujeito. Sua obra é uma espécie de ancoragem que também é deriva e convida à produção de novas palavras que possam recriar a existência, na vertigem mesma do estranhamento.
Em “Ações do mundo”, seu ato de tentar arrancar capas de livros sobre nações do mundo revela a beleza de fragmentos de mapas que compõem novas geografias. Os índices dos livros anunciam capítulos que descrevem países a partir de frases nacionalistas e imperiosas. Uma parte do tecido da capa, dobrada, dá título ao trabalho, subvertendo a ideia de nação para ação: as nações se tornam ações do mundo desestabilizando o mundo familiar pelo manuseio inventivo do idioma, promovendo a mestiçagem de substâncias heterogêneas: palavra e imagem que, pela força do gesto ou de uma dobra, revelam que a experiência de reabitar o corpo e habitar a palavra pode refundar o mundo.
No mesmo diálogo, se recria uma ideia de país em “O Brasil o Brasil”. Invocando a espessura da palavra em sua aparente simplicidade, as palavras “O Brasil” – também recortadas de revistas antigas – são coladas sobre uma superfície de cor neutra, mas diferentes cores e tipologias se apresentam como um ensaio de aguda força política. Como acontece em “Linha do tempo”, uma dimensão é revirada e aqui, como dito por Walter Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”. Marilá Dardot incorpora essa dimensão do tempo em sua própria existência: quase 50 anos depois de seu nascimento e atravessando a história do país, faz de seu trabalho uma verdadeira transmissão da experiência naquilo que o mais singular e pessoal pode dizer ao coletivo.
A série “Libros Y” nasceu de um letreiro de rua de uma casa editorial – Libros y Editoriales – na Cidade do México. A tipologia e o material daquele anúncio foram reproduzidos para criar outras associações, como categorias possíveis de uma biblioteca imaginária em que os livros aparecem como catalisadores de sentimentos e ações. Os eventos que o livro pode gerar, tanto no contexto íntimo quanto no político, encontram um novo mundo a partir da palavra: prazer, rebelião, subversão, desastre, potências, transformações ou insurreições. Seus letreiros sinalizam que, para reescrever as palavras que compõem a história, devemos fazê-lo letra a letra – uma aventura que vai além da comunicação, além do sentido e toca um ponto insondável: o seu “ponto de contato com o desconhecido”. As experiências trazidas nas palavras dos letreiros não visam diretamente o sentido, mas vasculham os traços que são, antes de mais nada, apostas na subversão da língua e de seu poder transfigurador. Essa transfiguração é destacada por Roland Barthes que afirma: “Toda a poesia, todo o inconsciente são uma volta à letra”, uma aventura que se situa à margem das pretensas finalidades da linguagem e, justamente por isso, no centro de sua ação.
“Domine seu idioma”, frase que a artista encontrou em um dicionário, ganha novo sentido. Novamente, a exploração da letra em seu aspecto gráfico, imagético, abre as portas de uma dimensão da linguagem que não se deixa fixar em nenhuma decifração. Um conjunto de dicionários empilhados com intensa força cromática, representando um paradigma em que as palavras perpetuam poderes e privilégios, é retomado em um devir imprevisível. As palavras, por sua vez, não se deixam tomar pacificamente como partes de um discurso. Elas deslizam criando uma ética que aponta para o avesso de uma ordem imperativa.
Nas brechas onde pode-se fazer poesia, Marilá Dardot reinventa a utopia dando-lhe densidade única. Dominar o idioma é saber se movimentar no tempo e para além do sentido: em outras palavras poder tomar a palavra, honrar a palavra, encontrar na ponta da língua mais do que a promessa ou a esperança de um lugar ideal: o tremor que nos faz vivos e recria o tempo. Como alerta Walter Benjamin: “Conhecer o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ainda, sempre, ainda.
Bianca Coutinho Dias
Bianca Coutinho Dias é psicanalista, escritora, ensaísta e crítica de arte, atua no território multidisciplinar da psicanálise, literatura, filosofia, teoria e prática artística. Mestre em Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2017). Especialista em História da Arte pela Faculdade Armando Alvares Penteado - FAAP (2011).