Na vertigem de indecisão que compõe o que chamamos contemporâneo, uma coisa, pelo menos, vem sendo vista com razoável unanimidade: a centralidade do corpo – o nosso corpo, o corpo de cada um – como alvo de todos os interesses.
A pergunta seguinte, que não quero responder aqui, é se o corpo ressurge porque luta numa guerra contra uma “virtualização” de suas propriedades, se é a sua “constância” que encanta ou se, paradoxalmente, tendo sido o recurso para confrontar a comodificação das obras de arte, nos anos 60 e 70, ele seria agora o objeto-fetiche em si mesmo.
O que Lia Chaia está se propondo destacar escapa, na minha opinião, desse fácil esquema de pensamento. Pois não é de hoje que ela se envolve, em seu trabalho, com o que o corpo – o seu corpo – tem potência de sugerir. Em 2001, do aproveitamento do fôlego em “Big Bang” até os atordoantes 51 minutos de “desenho-corpo” - a documentação de uma performance que a consagrou como um novo nome singular no panorama das artes recentes – era possível notar que a carne e a pele, rabiscada de caneta bic, desfocada, em diálogo com a representação humana da terra ou com um sorriso-aplique no rosto, era seu alvo. No ano seguinte, isso ficou nítido na série “Experiências com o corpo” e “com a sorte dos que gozam”. Nesse último, o esqueleto, agora novamente aqui (talvez nunca exilado, então) se masturba sugerindo o humor e a ironia como os outros traços fundamentais de sua obra.
Daí por diante as investigações iniciais se desdobraram em intercâmbios de significação dos quais um bom exemplo é “Rodopio” (o vídeo) que documenta processos que geram a coluna de bambolês em 2009. Se não é tudo necessariamente função do corpo, tudo passa por ele, seja para vesti-lo (como em “Setamanco”) seja para encontrar sua, por assim dizer, “segunda natureza”, a pele dos ossos nos vegetais que constituem a “padronagem” da “Série Esqueleto” (do mesmo ano). Igualmente, este mundo vegetal pode ser engolido/incorporado (“Comendo paisagens”, 2005, “Folíngua” 2003) e aquilo que vem a ser, em São Paulo, seu inverso anulador, a arquitetura, passa a compor a coluna vertebral (“Coluna” 2003 ou “Minhocão” 2006). Poucos artistas traduziram tão bem esse dilema da megalópole em que vivemos (me ocorre um, pelo menos, León Ferrari, nas suas séries feitas com padrões de Letra Set para arquitetura).
Além disso, assim observados, os trabalhos de Lia Chaia, conversam entre si horizontalmente, desfazem a mera sucessão cronológica e demonstram um ir e vir constante aos mesmos temas (a paisagem, o verde, os corpos humanos, os animais, a geografia, os lugares) o que engendra sua voz peculiar, como os castelos na areia, tortos e informes (2002) que dialogam com os jardins que mudam de lugar (“Mudança de Jardim”, 2008) ou os vasos comunicantes, os flui -dos, as seivas e as ramificações que proliferam ao longo desta primeira década do século 21.
Implodido, o esqueleto vegetal se abre à parede como feixe de fragmentos (a chuva, outro dos temas constantes). O corpo que antes se recobrira de formigas (uma citação a Zé do Caixão?) hoje cobre-se de olhos, graças do ver a ser vistas, ou de penas-músculo (força suprema e máxima leveza). Nestes 10 anos, o vocabulário de Lia Chaia rendeu, se expandiu e ganhou a dimensão da espinha dorsal, corpo que se sustenta em pé, sob sua amplificação (a figura de linguagem mais expressiva do épico). Agora que o ínfimo, o fruto dos fluidos e das células, ganha proporção em sua barriga, expande-se, em simultâneo, na sua obra, o desmesurado. O gigantesco toma forma de signo da vida.
Estamos, pois, diante das questões do século que se inicia e da vida que se renova. Estamos ouvindo a voz forte de uma artista que pergunta constantemente as mesmas coisas: o que há de ser de nós, no meio disso que herdamos? Não é uma pergunta nova, é talvez a grande indagação de todos os artistas. Entretanto é certamente isso que faz deles os intercessores pelos quais entendemos o dilema de cada um anônimo ser que somos.
Lucio Agra - Poeta, ensaista, performer, professor da Graduação em Comunicação das Artes do Corpo da PUC/SP, acaba de publicar MONSTRUTIVISMO - reta e curva das vanguardas (ed. Perspectiva).
Texto criado para a individual Anônomi de Lia Chaia. Galeria Vermelho, Set/2010.
via invertida – lia chaia
Inverter é vir depois de ir, o avesso, o oposto, o complemento de todo itinerário. É a viagem de volta por caminhos conhecidos, freqüentados, mas muitas vezes rejeitados, por identificar anormalidades, ilegalidades, regimes políticos sob desvios e perversidades deformantes. A invertida escancara a intenção de suprimir, esquecer, aprisionar ou banir.
A via invertida explicita a tensa relação entre a arte e a história da arte, o artista e o artesão, o comum e o genial, a arte e a religião, a paixão e o entendimento. A via invertida confirma o inseparável, o desvio, o incômodo, a continuidade da guerra sustentada pelo ideal de paz.
Lia Chaia monta uma generosa via invertida. No seu posicionamento e contra-posicionamento propicia encontrar outros percursos, escapes insurgentes diante do inevitável. A via invertida de Lia Chaia leva ao rompimento com dicotomias e se abre para os desdobramentos de séries.
A via invertida continua experimentações anteriores de Lia Chaia e situa intensas descontinuidades no seu modo de fazer arte. Nesta via invertida nada se exclui: há isto e aquilo e algo mais intenso. Trata-se de um entre isto e aquilo, eu e o outro, o verso e o reverso. Um entre que compõe a situação na qual a artista e o frequentador constituem uma ocasião em que ambos não se dissolvem em uma nova identidade, mas afirmam possibilidades múltiplas pela coexistência. Não havendo uma terceira identidade, mas o estranhamento da vivência entre, desaparece o indivíduo universal, para dar passagem a pessoas únicas, divíduos, multiplicidades em fluxos. A artista não diz, nem estrutura, apenas faz e torna fácil o encontro da pessoa com a arte de existir.
A inversão não se restringe ao esclarecido itinerário refeito e reformado projetado como utopia no futuro. Delimitada, a utopia da inversão é somente a busca do seu outro: o futuro do Homem, o futuro do adolescente, o futuro da criança. Eis um futuro certo e protegido, até um alívio para o padecimento ou um sonho com a perfeição! É assim que se concretiza a hesitação, o instante em que o indivíduo delega ao artista (mas também às vanguardas, aos intelectuais, às elites e aos governantes) a representação do ideal humano, e deixa de querer.
A inversão mostra as possíveis insurgências, os precipitados alinhavos, a mesmice na crença na reforma, no ideal aperfeiçoado no futuro, a projeção adiante, a imagem incomparável que escancara suas limitações, e que sustenta, ao mesmo tempo, a convicção na genialidade do artista e na aura do objeto criado, os desmandos dos revolucionários, os pequenos fascismos do cotidiano contemporâneo...
A via invertida que Lia Chaia mostra, contorna o desejo de se parecer com o outro visto e aceito como superior; a artista e sua experimentação oferecem possibilidades de rompimentos com a hierarquia; e sustentam um modo de fazer que dá vazão a diferentes invenções, com paixão, alegria, delicadezas e perturbações: com cabeça e corpo em movimentos, fluxos que não se materializam num objeto acabado. A artista não é mais um gênio para dar lugar ao como é possível ser artista a qualquer um. Não há mais o objeto de arte acompanhado do mistério de sua criação, apenas a vida inventada como obra de arte.
A via invertida de Lia Chaia situa um entre. Remete à história da arte, à vida artista que não se identifica com sua biografia. Surpreende o espectador, o apreciador, o estudioso e o crítico provocando viravoltas. Não pretende que suas inovações se restrinjam à dissertação do especialista impressionando mecenas, compradores e proprietários. O modo de fazer ao abolir os suportes tradicionais da arte se afasta de idéias e ideais sobre o futuro para afirmar o devir. Acontece o deslocamento trazendo o combate com as intermináveis mudanças. Não há mais objeto de arte, o que deve ser visto, o porque. Mas intensidades, como olhar e ouvir sem a pacificação gerenciada pela escuta, a essência, a síntese dialética.
Lia Chaia faz parte dos dadas; os artistas em fluxos, divíduos liberados das artimanhas da arte superior e que enfrentam os conceitos, por não se ajustarem a eles e não temerem Dioniso. Dada é anti. Se a inversão supõe o posicionamento e o contra-posicionamento, também não deixa de proporcionar o reconhecimento da fuga nômade. Então, uma artista pessoa-comum deixa de ser soberana no território da arte para habitar suas bordas, a linha visível e invisível, dilantando fronteiras, não para concretizá-las adiante, mas em constante expansão para serem abolidas em fluxos terrenos ou siderais. A utopia passa a ser uma invenção no presente; deixa de ser utopia para disseminar heterotopias liberadoras. A artista pode arruinar colecionadores, mecenas, conselhos superiores, ministérios, propriedades. Não tem a obrigação de encontrar a verdadeira palavra, a configuração ou a visão do que se cria como ideal. Dissolve o adorado artista genial apartado das pessoas que persistem confinadas ao lugar comum de quem não é artista e tampouco pode ter um objeto de arte como propriedade, ainda que aconteça uma democratização do acesso e da aquisição sob a forma da gravura, fotografia ou simplesmente cópia. O artista heterotópico está atento para disponibilizar modos de fazer. Ele não cria, inventa. Não se posiciona ou contra-posiciona, mas propicia experimentações artísticas inacabadas. Ele/ela resiste e inventa liberdades. Na via invertida não cessam as fugas insurgentes!
A vida como obra de arte, ou como Michel Foucault chamou a estética da existência, é pública e impossível de ser domesticada pelos museus apesar de poder lá ficarem como exemplos mortificados, sob o mando do taxidermista de plantão e de transtornar as galerias atentas e voltadas a ampliar espaços de experimentação de liberdades.
A Vermelho e a Lia Chaia propiciam arte para quem passa obliquamente pela vida, e muitas invertidas à razão (e paixão e instintos baixos mesmos) de cada um. Lia Chaia e a Vermelho desconhecem estes tempos conservadores de multiculturalistas seres politicamente corretos, os arremedos do entendimento e do universalismo já transpostos. Elas favorecem o cara a cara e não pretendem decretar o lugar do novo, apenas fortificam reversões, intensidades e fugas insurgentes. Estamos mesmo numa via invertida que nos dá invertidas, morô?
Trata-se de um convite para fora da região do amor e do ódio, para outros espaços, inventados por pessoas livres apartadas do consumidor voraz de qualquer produto, de alto ou baixo custo; do cidadão que aprecia deveres, pleiteia direitos e é tolerante, dissimulando sua posição superior em mais esta relação assimétrica. A vida como obra de arte, seu modo de fazer público está na Vermelho com Lia Chaia, numa via invertida.
heliponto heterotópico
Pousar num heliponto público instalado na horizontal em relação ao eixo da Terra, sem a aeronave barulhenta que se eleva verticalmente carregando em seu interior milionários, excutivos, repórteres, agentes policiais, controles vindo do espaço aéreo garantido por quem pretende dominar o celestial.
Pousar obliquamente sem tergiversar como pessoas livres dos controles, dos superiores e de seus zunidos é experimentar silêncios, mesmo no meio de uma algaravia. Silêncio não como a simples ausência de ruídos que permanecem, mas ouvir o silêncio.
Entrar na Vermelho pelo heliponto de Lia Chaia é experimentar a sua via invertida, pelo avesso aos corpos, cidades, e dionisos, acompanhando rizomas entusiasmantes que não cessam de se alojar e expandir no ar, pelas paredes.
Ao se embrenhar na Vermelho (este feminino no masculino), e já deslocada (o) de seu centro, cada qual está diante de vias suspensas no ar, compostas até mesmo pela delicadeza da aragem. Carnaval! Serpentinas de confetes compõem heras da nossa época e de qualquer era: a presença trepadeira de Dioniso e de Lia Chaia saúdam as alegrias na vida e adornam, como guirlandas, a farra de cada um disposto (a) ao inesperado. A arte é o que resiste, à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha, disse, certa vez, o filósofo Gilles Deleuze.
Numa pequena sala inverte-se o tráfego normal pela via oral para devolver, vomitar, expelir. Saturno-Cronos, imenso, devorava pessoas. Lia, miúda, vomita edifícios. Nas mãos de deus as pessoas se debatem ao serem levadas à boca para a deglutição, como registrou Goya com tintas sobre a tela. Enquanto isso edifícios aprumados saem da boca da artista, sem sangue, sem vida: registro em vídeo para a tela em movimento, direto, sem miudear. Cessam as articulações gigantes mordendo músculos e ossos e cérebros para alimento de deus. Apenas uma lenta devolução de frias e esquadrinhadas paredes de pessoas nestes ninhos privados, muitas vezes frios e desamparados clamando por um outro deus a lhe devorar as miudezas. Lia Chaia retoma a mulher com língua de folha que ela já foi, anos atrás, e amplia as suas/nossas relações com plantas que vão da botânica à arquitetura: de cada um de nós entram e saem naturezas dissolvendo a natureza humana. Pelos nossos buracos não devem mais entrar ou avançar as disciplinares sinalizações como Lia Chaia documentou seu corpo deitado sobre o asfalto de Paris e sob a ameaça dos desproporcionais sentidos obrigatórios.
A arte é o que permanece de qualquer cultura. Basta olhar para um sítio arqueológico ou apenas avivar na memória aqueles ainda por vir a público. Cada pessoa daquela cultura podia registrar nas paredes e pedras instantes da vida pessoal e coletiva: arte sem religião, sem magia, somente experimentações de existências. Seus traçados simples e diretos não se disponibilizavam a uma arrogante e civilizada definição de arte rupestre. Lia Chaia olhando para o chão das ruas do México, acionou a máquina fotográfica e registrou anônimas declarações artísticas sobre o cimento fresco das calçadas. Lia, pessoa e artista, não anda de olhos para o chão, conformando seu corpo ereto à curva da obediência. Reverte a docilidade da submissão e afronta o efeito do olhar cabisbaixo para uma nova posição igualitária ao apresentar ao observador um olho no olho com as obras fotografadas distribuídas pelas paredes da Vermelho. Trata-se de uma coleção de imagens de anônimos que alteraram o cimento sem aspereza das calçadas com um leque de garatujas a micro esculturas de lisos, rápidos e instantâneos artistas.
Vem do alto, das entranhas; vem do chão: confetes, edifícios e esculturas ou simplesmente desenhos, como imagens ou palavras deixadas na areia para serem levadas pela maré, coisa de criança, de jovens apaixonados, de padre à virgem, de Lia para si mesma, registrada em fotos e muito vistas pelas cidades. Muita Lia era o que se via, e agora, invertida, intensa Lia!
Andar superior da Vermelho. As trepadeiras agora sobem em direção ao sol e fotografadas sob o efeito avermelhado da estação do ano européia. Sobre elas, tal qual seu inverso, elevam-se as trepadeiras criadas por Lia Chaia (uma Hera Lia, outra deusa, talvez, uma araliácea que a botânica ainda não registrou?). Como no muro lateral da galeria pintado desde o ano passado pela Lia e que está sendo tomado por unhas de gatos. Mas diferente das trepadeiras no andar térreo que descem do espaço celestial. Inversões! Agora, aqui no alto, neste pavimento superior, estamos diante da representação sobre a representação. Sabemos que o muro de trepadeiras também já foi tragado pela sede do museu de nossa era, como ocorreu no recém-inaugurado Quai Branly, em Paris. Enfim, se em cada foto disposta isto não é um muro de trepadeiras, sobre ele também não cresce um muro de heras. Mas serão representações de muros de trepadeiras, lembrando a frase do pintor surrealista e milimetricamente tratada pelo filósofo?
Ao lado destes muros sobrepostos é possível percorrer paredes repletas de abstratos, o outro lado da representação do real, documentado em fotos que compõem uma diária reportagem semestral da autora, quando observou do alto do edifício o terreno em reforma. Indiscernível à primeira vista aos poucos nos remete à imagem do mesmo (espaço) no futuro (restaurado). Desta vez, o encarar se assemelha ao convencional, explicitando que nem toda inversão contém uma fuga insurgente. Conta-se assim, em dois instantes, mais um episódio da história da arte moderna complementados por uma instalação em que automóveis adulterados vivem em choque pelas paredes de um espaço disciplinado: o que era para ser vias, planas e diretas a um ponto determinado se trasnforma numa cela retangular de onde nunca se sai, até acabar literalmente suas pilhas. O panóptico, dentro da prisão não só vigia e pune, mas exerce o direito de deixar morrer. É neste andar superior que Lia Chaia distribui os efeitos da criação.
A vida inventada está embaixo, nos começos mesquinhos de quem faz seu próprio carnaval, desenha na calçada do outro, vomita o insuportável. Ali se faz da via invertida outras vias. Ali há mais do que isto e aquilo (desconcertando quem acha que a vida é isto ou aquilo), pois reside o entre. Entre!
As perturbações e as delicadezas brotam naquela grande sala da verticidade, que funde o superior e o inferior e suprime, definitivamente, a hierarquia na invertida experimentação.
Há uma chuva que cai, e não a representação da chuva. Ponto! Pingos... No chão estão os efeitos do começo meio ou fim da chuva? Estes pingos formam, formaram ou formarão poças para pisar, alagamentos, aquaplanagens, açudes para estancar a sede, ou somente um imenso espelho d’água para se olhar ou me mirar invertido? I’m singing and dancing in the rain. Depois do Toró que Lia lançou sobre nós em 2005, quando se notavam edifícios espelhados nas poças d’água, verticidade lança prédios sobre nós, ou não? É somente a chuva, o toró, outra chuva, um toró. Um delicado temporal. Uma constante perturbação. Um modo de fazer.
edson passetti
professor na puc-sp e edita com o coletivo nu-sol a revista semestral autogestionária verve.
“Castelo da Areia” consiste numa conseqüência de 103 fotografias em que cada imagem de 17 por 25 centímetros está fixada a exatos 3 centímetros da outra. O visitante demandará um certo tempo para percorrê-la, numa experiência semelhante a um filme cujas imagens se sucedem por justaposição. Como elas estão juntas, cada imagem será influenciada pela anterior e daquela que vem logo adiante. A seqüência de fotos apresenta uma jovem ( a artista) que se senta na praia bem junto ao mar, no ponto em que as ondas se desfazem em películas finas e em brilho suave, deixando-se rapidamente absorver pela areia escura dura e escurecida, em pequeniníssimos poros e estreitas aberturas, dessas que deitam bolhas para fora, indicando as pequenas cavernas existentes mais abaixo habitadas por criaturas miúdas. Vestida com uma roupa preta que contrasta com sua pele branca, e com tons de azul que vem do mar e do céu, ela começa a escavar com as mãos torrões de areia escura, para empilhá-los aos poucos, formando uma construção periclitante, um castelo que o mar não cessa de derreter desde a base, com a constância de suas ondas leves que o contornam com rapidez e que vão e que vem. Há algo de infantil nisso tudo e qualquer um reconhecerá nesse enlevo uma manhã distante, porém, como se houvesse chegado ao seu objetivo, a artista interrompe a construção, põe-se de pé para, em seguida, destruir tudo com chutes. Feito isso, ela se desloca para o lado, senta-se, e começa tudo de novo, realiza mais um castelo, mais uma construção arenosa e insegura que igualmente será destrída. A rotina – já se adivinha – irá prosseguir ininterruptamente.
Quer pela idade ou pelo fato de haver saído em dezembro último do Curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, Lia Chaia é uma jovem artista. O que torna ainda mais surpreendente a clareza de suas proposições, que esta seqüência fotográfica é exemplar. O trabalho evoca desencanto, algo de insatisfação, de gestos cujos produtos são incessantemente negados, impressão reforçada pelo ritmo e indiferença da beira mar. Mas não é exatamente isso: a contemplação dos outros trabalhos leva à conclusão que o que há é o exame atento, crítico, das possibilidades do corpo. Considerando-se o valor que a sociedade dá ao gesto do artista, consagrando-o como reduto do virtuosismo, o autor de gestos capazes de fundar mundos, o conjunto de trabalhos apresentados – a seqüência fotográfica, mais 4 vídeos – desmonta criteriosamente essa noção. E o curioso é que, à exemplo daquela que já foi comentada, toma seu próprio corpo como território de investigação. O que faz com que os trabalhos sejam, a um só tempo, os registros de performances realizadas pela artista.
“Big Bang” é um vídeo de curta duração. Uma bexiga vai sendo paulatinamente enchida pela artista até o ponto em que se julga próxima a estourar, em que a película plástica distende-se e já quase não suporta o esforço do ar soprado para dentro dela. Aí então ela é totalmente esvaziada, e o processo, tal como em “Castelo de Areia”, recomeça. Do gesto de um ao sopro do outro, a artista varia de uma dimensão tangível para outra quase intangível. A respiração, convém lembrar, é motor de tudo. E o ar que se expulsou pela boca é o mesmo que entrou pelas narinas, apenas que alterado pela passagem e acomodação nos alvéolos pulmonares. E é esse dado, o ar que expelimos como substância modificada e a favor da vida, que a bexiga inflada tornou visível.
“Desenho-corpo” tem a duração exata da performance. Durante 51 minutos a artista desenha sobre seu próprio corpo com uma caneta esferográfica de cor vermelha, o tempo que a caneta pressionada sobre a textura da pele demora a acabar. Aqui o próprio corpo transforma-se em alvo da expressão, o suporte a ser obsessivamente velado, encoberto por uma rede capilar de linhas vermelhas, como o sangue que velozmente percorre as veias, linhas ocas por onde flui o impulso vital. Voltando-se sobre si, num movimento de introjeção, a expressão da artista reflui para dentro, da ponta dos dedos para a superfície do corpo.
Durante longos 60 minutos, “Desorientações” vai minando a estabilidade do corpo do espectador. O filme consiste na simples projeção da imagem de uma linha de horizonte marítimo; uma linha oscilante cuja contemplação continuada termina por colocar em risco a verticalidade do corpo de quem assiste. A artista sabe da reciprocidade entre aquele que vê e aquilo que é visto. A contemplação do mundo oferece-nos escoras, balizas que nos amparam em nossa circulação. A estabilidade física não está em nós mas nas coisas à nossa volta, razão pela qual é freqüente sertirmo-nos em movimento quando é o carro que está ao lado, e não o nosso, que arranca para frente.
Depois de proceder a uma análise da relação do corpo com o entorno, colocando-o em relação com uma linha horizontal distante e instável, “Um.bigo” brinca com a noção do umbigo como centro do mundo, trazendo o próprio mundo para junto do centro do corpo. É de fato uma versão miniaturizada do globo terrestre que está preso num colar batendo no umbigo da artista enquanto ela dança. Dotada de um agudo senso crítico sobre o ego geral dos artistas, durante uma hora a dança prosseguirá juntando sensual e divertidamente o artista do mundo. Uma receita irônica para todos aqueles, artistas ou não, que narcisicamente querem saciar sua ânsia de reconhecimento pelo mundo.
Agnaldo Farias
março de 2002
para a exposição “Experiências com o corpo” no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo