Marcelo Cidade é um artista que cria ou altera o ambiente ao seu redor, produzindo um outro lugar poeticamente expressivo. Por meio de diferentes operações estéticas reinventa formas de linguagem constituindo, assim, novos e surpreendentes espaços, fazendo aflorar heterotopias – possíveis, principalmente, enquanto experiência que une arte e vida. Esta relação arte-vida potencializa o artista a mover-se num fluxo pendular contínuo entre o âmbito social e o subjetivo, gerando trabalhos que devem ser compreendidos neste movimento de ir e vir do espaço público ao espaço interno.
As obras expostas em “Outro lugar” elucidam esta questão migratória fundamental no seu processo de criação artística. Veja-se a série “Fogo fato” (2005), na qual fotografias que registram as marcas de fogo deixadas nas paredes ou automóveis por manifestantes franceses são misturadas às outras fotos de manchas de spray feitas pelo artista, simulando vestígios das manifestações. Confundem-se a ação real dos sujeitos nas ruas com a ação real do artista. Misturam-se os focos da origem da obra que podem ser localizados tanto na dimensão objetiva quanto na subjetividade: qual presença se impõe, a coletiva ou a individual? Quem é o autor ou qual é o sujeito que se expressa?
Também as duas séries de fotografias (“Realização Impossível ou o Poder como soma de seduções”, “Eu preciso estar seguro de você”, 2006) que registram intervenções sobre um cenário dado, indicam a capacidade do artista atuar no interior de um espaço público. A ação artística aparece então como um ativador de novas situações, dando continuidade à ação anônima. O resultado estético é obtido pela somatória do esforço dos sujeitos indeterminados que agiram sobre o meio-ambiente com o esforço singular do artista. Um tronco de árvore recém -cortado ganha um plano transversal prateado, um toldo descartado passa a brilhar, um recipiente de lixo abandonado é enfaixado com fita silver tape e uma carcaça de carro queimado ressurge com novo colorido.
Ao enfrentar relações e valores estabelecidos socialmente, Marcelo Cidade produz uma “estética de resistência”, criando obras num embate complexo no campo social, trazendo os signos e as situações da rua para o interior dos circuitos das artes. Os trabalhos de Cidade enfatizam um reencontro da arte com a sociedade, sem deixar de privilegiar a expressão poética e a discussão da linguagem, mesmo sob a inspiração política da rebeldia e da transgressão. Ainda que com todo este envolvimento, as obras produzidas por este artista são autônomas esteticamente. E, fato importante, Cidade consegue se alimentar deste paradoxal par arte-política, reconhecendo as suas específicas naturezas, aproximando-as mas, também, sabendo afastá-las em favor da liberdade e da experimentação da linguagem. Trata-se de um projeto artístico, cujo fundamento encontra-se na elaboração da idéia ou do conceito para posterior objetivação do resultado, encontrando o respaldo necessário na pesquisa e na experimentação. É o caso de lembrar da obra “Amor e ódio a Lygia” (2006), um duplo soco inglês na real dimensão, moldado em bronze e que parte da contraditória possibilidade agressão-união para problematizar a interatividade e a participação na arte. Este trabalho é mais um bom exemplo dos entrecruzamentos entre arte e sociedade e, também, da relação entre história da arte e produto, uma vez que a atitude de pesquisador é constante neste artista.
O locus de interesse de Marcelo Cidade é o espaço público, engendrado no fluxo urbano e tecnológico da sociedade de controle. Assim, ele foca um lugar para alcançar um outro lugar, realizando um processo de deslocamento do histórico-geográfico para o poético, mediado por uma subjetividade crítica e atuando no interior do campo delimitado pelo já constituído, pelo sujeito ativo e pelo desejado. De forma semelhante ao jogo cinematográfico de “Matrix”, este artista quer atacar o núcleo dinâmico do funcionamento do sistema e a cidade é o lugar privilegiado dos acontecimentos e é nela que ele vai buscar o seu material de trabalho. Ruas, muros, viadutos, praças e objetos desafiam o seu olhar. Mas, também, policiais, burocratas, galeristas, colecionadores e artistas provocam Marcelo Cidade, incitando-o a confrontos políticos e estéticos. Destes encontros e das desavenças produtivas com agentes e coisas do sistema e do circuito artístico nascem os trabalhos de Marcelo Cidade.
“Intramuros” (2005), apresentado no Paço das Artes, em São Paulo, é composto por centenas de tijolos com cacos de vidros colocados na parte superior das inúmeras paredes que cortavam o espaço expositivo. Assim como este, todos os seus trabalhos esclarecem esta questão da crítica às relações sociais estabelecidas. Neste sentido, vale citar as duas séries de fotografias, realizadas em 2002, “Eu sou ele, assim como você é ele, assim como você sou eu e nós somos todos juntos”. A série produzida em Belo Horizonte reúne passantes anônimos, colocados lado a lado numa calçada do centro da cidade, compartilhando de um ajuntamento social inusitado que interrompeu o andar solitário e despersonalizado destas pessoas. Por sua vez, o trabalho feito em São Paulo repete o mesmo processo, mas incluindo amigos e artistas lado a lado com a população, no Viaduto Santa Efigênia. A camiseta que cada um deles veste (bege em Belo Horizonte, cinza em São Paulo) é um sinal de uma nova possibilidade social e a disposição e entusiasmo dos corpos evidenciam o poder para reorganizar o espaço que as pessoas e o artista possuem. A massa e o anonimato se desfazem para repor o valor coletivo da vizinhança e da descoberta da própria identidade.
Atacando direta e poeticamente o centro nevrálgico do sistema, Marcelo Cidade realizou “Entre sem bater” (2005), instalação exposta na Base 7, em São Paulo, no qual desnuda o abusivo poder político e econômico que controla e gerencia os corpos e as mentes das pessoas, utilizando-se do recurso de uma grande porta que não se abre e câmeras de vigilância. Antecedendo esta obra, entre 2004 e 2005, o artista produziu “Direito de Imagem”, distribuindo por vários lugares falsas câmeras feitas de papelão, instaladas para captar o olhar desprevenido da população e para indicar a possibilidade de burlar os sistemas de segurança, corriqueiramente implantados em vários locais. Nesta metáfora visual, Cidade alcança cegar o panóptico vigiador. Assim, devolve à circulação símbolos do sistema, de forma crítica, causando um curto-circuito no esquema da recepção.
Da intersecção eu-mundo origina-se uma obra simples e contundente: “Nota de culpa” (2005), exposta no sótão da loja Grapixo, na Galeria do Rock, no centro de São Paulo. Ela é composta por dois documentos emitidos pela polícia, por ocasião da prisão de Marcelo Cidade por estar grafitando um trem da CPTM, em Carapicuíba e reafirma a idéia de resistência estética para se pensar a produção deste artista. O trabalho feito especificamente para este espaço expositivo da loja compõe-se de uma “nota de culpa”, arrolando a prisão em flagrante delito e o “alvará de soltura”, assinado pelo carcereiro e que o artista deve portar constantemente como um documento complementar até a finalização do processo penal. Duas visões antagônicas se manifestam, a da polícia que considera a pichação um crime e a do artista que entende o grafite como uma necessidade artística. Nesta obra, o discurso do poder esvazia-se de sua autoridade, para ressurgir como linguagem e reafirmação da liberdade na arte. Esta é, também, uma obra que clarifica a idéia do conflito que se estabelece entre arte e sociedade capitalista, que vem se desenvolvendo teórica e filosoficamente desde Karl Marx, passando por Arthur Rimbaud, Henry Miller e Octavio Paz, sendo que esses dois últimos inspiraram o termo “tempos de assassinos”, para indicar difíceis tempos aos poetas e artistas. Nestas circunstâncias, amplia-se o significado do artista como um resistente no confronto com a regra.
“Nota de culpa” auxilia, ainda, a perceber o processo artístico de Cidade como algo que procura um resultado além da experiência meramente visual, entendendo a arte como coisa mental, ou melhor dizendo, conceitual, numa vinculação com Marcel Duchamp. O produto estético em Marcelo Cidade é portador da força da idéia, uma vez que a ação do artista e a presença do objeto estão organicamente ligadas ao pensamento. Não há objetivação sem conhecimento, estando por um fio a aproximação com a antiarte.
Talvez, agora, ganhem maior significação dois trabalhos anteriores que reafirmam a crueza da presença do ser no mundo e mostram que a reflexão em Marcelo Cidade possui uma dimensão filosófica. Tratam-se de “Sem título - Mochila” (2001), uma velha mochila totalmente preenchida com cimento e de “Do cinza ao pó, do pó às cinzas (ou o que sobrou de um desenho animado)” (2004), feito de um velho e esgarçado tênis, coberto por um montículo de cinzas de cigarro, contendo ainda bitucas de tabaco e de maconha. Estes dois trabalhos ressaltam o uso do humor, recurso recorrente em diversas obras e apontam para a abordagem de questões do universo juvenil, que faz aumentar a empatia com as obras do artista.
Marcelo Cidade é um resistente por questionar o sistema e a vida agônica que ele produz, realizando obras que apanham as tensões e paradoxos que cruzam os lugares e as estruturas sociais, esparramando-se nas cidades mundiais, igualando São Paulo a Amsterdan, a Paris ou a outra metrópole. Cabe, então, anotar que o artista está lidando com as relações e as coisas no âmbito da desterritorialização, aguçando ainda mais o sentido universal da arte, neste tempo que aprofunda a globalização. Nos interstícios desses lugares, no seu centro ou na periferia, tem origem a micropolítica estética de Marcelo Cidade, restabelecendo conexões escondidas entre o que pensa e o que busca o artista e o que pensa e deseja o passante despercebido ou o agente de segurança do sistema. Ele especula, por meio das suas obras, sobre o sentido das camadas da cidade, sobre o significado das relações e dos lugares, não se satisfazendo com a aparência da polis bem organizada e bem administrada.
Nesse sentido, o artista reorganiza esteticamente o espaço público e interfere poeticamente na rua, imprimindo novos sentidos e procurando fazer aflorar as possibilidades a partir das impossibilidades. No vídeo “... para sua proteção” (2003), registra a sua intervenção à noite numa rua de Amsterdan, na qual cerca um conjunto de bicicletas e motocicletas com fita silver tape, mostrando a ocupação privada do espaço público e alertando para a ambigüidade do uso do discurso do controle para obter o aval da legitimidade, já que o artista justificou o seu ato para os proprietários dos veículos em nome da proteção dos seus bens. Nas fotografias “Eu-horizonte” (2000-01), o lugar do evento é delimitado pelo seu corpo em ação, ao estendê-lo nu nos postes de placas das ruas de São Paulo. Tanto desafia a proibição da nudez quanto iguala o corpo humano na verticalidade à placa de sinalização. Estes dois trabalhos expõem que, pela fundamentação conceitual e presença ativa do artista, Marcelo Cidade cria zonas de indeterminação entre público e privado.
Estas experiências nas ruas, unidades geográficas do fluxo do sistema, aparecem de várias maneiras nos trabalhos de Cidade. Nesta atual exposição, “Outro lugar”, o artista coloca um conceito de grafite que pode ser visto claramente em algumas obras ou apenas percebido como influência exígua em outras. Desde 1996, Marcelo Cidade vem fazendo uso de um heterônimo e grafitando caligrafias em preto, branco e cinza pelas ruas da cidade e seus arredores. Nesta exposição, o artista apresenta “Corporação” (2006), um desenho na parede utilizando-se de uma camiseta afixada e fazendo uso de spray e diferentes tipos de canetas. Com tais recursos, risca setas de tamanhos variados que saem do colarinho, das mangas e da barra numa explosão gráfica. O trabalho “O homem que constrói a sua própria casa é um homem livre” (2006), escultura feita com placas de madeira, concreto e pá, traz para o interior da galeria o esforço do trabalho manual, a atividade produtiva da rua. A herança do grafite permite ao artista desenvolver uma série de trabalhos, sofisticando o uso desta técnica nas artes visuais, como fez, por exemplo, em “Monocromos cinzas” (2002), um diálogo com o minimalismo utilizando-se da tinta spray e de etiquetas adesivadas para compor um único plano nas variações possibilitadas pela cor cinza em uma dezena de telas. O mesmo processo de relocação de signos da rua para o plano restrito ocorre em “Técnica de elaborar traçado sem qualquer significação” (2004), no qual o símbolo da Fepasa é traçado livremente com jatos de tinta preta em spray sobre uma caixa de luz cega. No plano do acrílico leitoso convivem o poder visual da forma construída pela empresa e o poder da fragmentação, dos gestos e da liberdade dos grafiteiros.
Das ruas, Marcelo Cidade canaliza um fluxo de afetividade que solidifica o seu processo de criação artística, pela aproximação com os sujeitos e os valores que nelas circulam, apagando a fronteira que separa a rua do interior das casas. Atraído pelos acontecimentos das vias públicas e suas reverberações internas, Marcelo Cidade as percorre não como passante mas como invasor, não como voyeur mas como pessoa ativa, não para seguir o fluxo das coisas mas para interrompê-lo. Enfim, ele atua para desestruturar o sentido dado socialmente aos espaços, valores e objetos neles dispostos. No vídeo-performance “Quando não há diálogos” (2005), o artista discute o que é realidade e o que é ficção e relaciona dialeticamente espaço externo e subjetividades, ao registrar o desentendimento e a briga entre pessoas, em torno de uma caçamba de lixo, sem que se compreendam os motivos das ações dos conflitos (questão esta que é retomada, de outra forma, em “Amor e ódio a Lygia”). Pode-se dizer que o fundamento da potência poética de Marcelo Cidade está tanto na individualidade própria do artista como também no encontro deste com a rua, como demonstram o clima kafkiano e a coreografia hobbesiana deste vídeo, cujos personagens insistem numa dança dolorosa de enfrentamento entre seres humanos.
Esta preocupação com a fronteira entre realidade e ficção leva Marcelo Cidade a questionar o real, aproximando documentação e ficção ou problematizando a relação entre registro e memória. Neste caso, o artista apresenta na exposição “Outro lugar”, um trabalho com uma máquina fotográfica colada na parede com silver tape e o observador ao olhar pelo visor acompanha uma seqüência de fotografias de qualquer lugar ou de qualquer pessoa.
Continuando a reflexão sobre a natureza do processo criativo de Cidade, pode-se levantar algumas outras questões. Se Hélio Oiticica da arte ambiental e dos “Parangolés”, da “Homenagem a Cara de Cavalo” e da bandeira “Seja marginal, seja herói”, pode ser lembrado como uma referência assimilada por Cidade, Guy Debord também trouxe embasamentos para a prática do artista. Vale lembrar que Marcelo Cidade não atua somente na periferia do sistema, nem apenas no centro privilegiado, mas avançando as indicações destes artistas pensadores, ele ocupa todos os lugares e interstícios possíveis, reconhecendo a importância da descentralização como possibilidade da prática artística. Todos os campos estão disponíveis, desde Carapicuíba até a avenida 9 de Julho, desde São Paulo até Amsterdan. Neste momento, convém destacar a importância da estratégia situacionista no processo criativo de Marcelo Cidade, ao considerar a pertinência da lógica da arte contra a lógica da sociedade do espetáculo e a exposição visual criada pelo artista contra a auto-exposição do capital. No âmbito deste processo de experimentação, talvez a idéia mais interessante a ser apontada é a da “psicogeografia situacionista”, por meio da qual Debord lança uma visão específica dos espaços urbanos que requerem olhares atentos e ações particulares para alterar as disposições dadas nestes espaços e lançar novas perspectivas humanas e artísticas sobre as cidades. Ganha relevância, ainda, a idéia complementar de “teoria da deriva”, também colocada por Debord, para explicitar um procedimento ou uma técnica de circular ininterruptamente por diferentes espaços urbanos. Vinculando efeitos de natureza psicogeográfica com as possibilidades da deriva, alcançam-se ações lúdicas e construtivas que envolvem a interdisciplinaridade artística e a análise crítica dos ambientes, num movimento próximo ao da viagem e do caminhar.
Marcelo Cidade vem construindo a sua própria linguagem, avançando com liberdade no uso dos recursos estéticos, na permanente experimentação e na apropriação específica do espaço social urbano. Altera as distribuições e dispositivos arquitetônicos do lugar do capital e, com isto, cria novas percepções para as subjetividades. Traduz em poesia a rígida estrutura social do sistema.
A obra em avanço de Marcelo Cidade permite mergulhar numa original sensibilidade estética para, então, descortinar os meandros da contemporaneidade.
P.S.: Por que Marcelo Cidade é um bom exemplo da relação arte – política, sem perder as dimensões criativa e radical da arte?
- porque exerce a liberdade individual do artista;
- porque até nos títulos de seus trabalhos ele procura abrir espaços de manifestação da sua concepção de mundo, produzindo ruídos e informações para se vislumbrar outros lugares;
- porque fratura a linguagem pela capacidade de atravessar os mais diferentes âmbitos e suportes do campo da arte;
- porque, numa postura política, nascida da radicalidade estética, nega a política, aquela que constrói o espaço público do sistema;
- porque, numa postura crítica, indaga e questiona o real;
- porque se desencanta com a sociedade ocidental ao evidenciar a difícil sociabilidade e desta dificuldade propõe novas perspectivas e leituras;
- porque faz uma intromissão, calculadamente poética, no ordenamento do sistema;
- porque inscreve o seu nome, grafitando a sua marca pessoal no muro anódino da polis e também por subverter a hierarquia dos lugares e dos valores;
- porque incorpora a dúvida, o enigma e o incompreensível na expressão estética;
- porque suas ações são experiências que potencializam novos olhares e atuações estéticas;
- porque escreveu duas mil vezes a frase “Resistir = (re) existir”, deixou o bloco de folhas contendo as frases no topo de um edifício ocupado por um movimento dos sem teto, em 2005, no centro de São Paulo e, esta é a decisão relevante, deixou que o vento se encarregasse de distribuí-las por vários lugares;
- e porque, recuperando Jean-Luc Godard (“JLG por JLG”), enfrenta a coerção e contesta o sistema, fazendo da arte a exceção contra a regra.
São Paulo, fevereiro de 2006.
Miguel Chaia - Professor e pesquisador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP.
Fronteiras Móveis
Um horizonte constituído por centenas de habitantes perfilados na paisagem de várias cidades que Marcelo Cidade reúne e fotografa. Em troca, a cada personagem-fragmento de horizonte solicitado a participar da ação, o artista oferece uma camisa na cor que identifica a cidade, que desenha a linha, que funde os corpos à paisagem. Se São Paulo é cinza, Belo Horizonte é bege: como devolver o contínuo daquele infinito, o elo entre os nós?
O horizonte foi, talvez, a fronteira entre a terra e o céu que colocava aquele que olha no centro do mundo que ela limitava. Ficção de um sujeito universal que submeteu os horizontes do mundo a seu olho e sua medida. Que subjugou todos os desvios: os da carne, os do impensado, os do outro obscuro que erra à nossa volta, a um ponto de fuga referendado por seu olhar, na altura exata de sua contemplação. O olho que está na origem do quadro.
Ao mesmo tempo que se agregam e se fragmentam pela fotografia, os horizontes de Marcelo se deslocam e se dispersam. Recusam a paisagem, a arte, a vida submetidas a um olhar centralizado, para apresentá-las como centenas de horizontes que nos olham e que nos dissipam como unidade. Eis o título da obra-processo que expõe nossa frágil e contingente condição neste mundo vasto e impreciso:
Eu sou ele assim como você é ele assim como você sou eu e nós somos todos juntos.
Afinal, este é mundo que se experimenta na fluidez das fronteiras e dos horizontes.
Nessa fluidez, as delimitações geopolíticas desvelam-se nebulosas e contestáveis. As identidades fechadas de estado-nação, de cultura, de povo-e de arte-exibem-se como ficções ideológicas da modernidade, ficções de totalidades sonhadas, estratégias de suas grandes narrativas. Não vivemos mais no tempo linear da história, que se desenrolava em relações de causalidade e finalidade, impondo suas determinações e fundamento aos outros saberes e à vida em geral. A história não mais explica e justifica, enfim, nossa própria existência e nosso estar em comum.
Estamos, como disse Foucault, em um mundo que não mais se ensaia “como uma grande via se desenvolvendo através do tempo”, mas como uma “rede que religa pontos e entrecruza sua trama”: estamos na época do “simultâneo, da justaposição, do disperso”(3). Há uma confluência de relações locais e de longas distâncias, de proximidades e afastamentos que atravessam as várias texturas da vida.Os poderes, que controlam as fronteiras e exilam o estrangeiro, reforçam seu aparato coercitivo na medida em que a fronteira se torno a zona de conflitos, mas também de perigosas, complexas e ricas contaminações. Confrontam-se com movimentos cada vez mais nômades: circulam não só as pessoas e a arte, como ainda o capital global, as imagens do mundo pela mídia, as informações processadas e emitidas pelas novas tecnologias. O presente deixa de ser o momento de transição entre um passado e um futuro que lhe dá sentido, para ser o intervalo dilatado e digressivo da experiência ou o agora sincrônico e eternamente presente das mídias eletrônicas. O espaço dilui suas distâncias físicas e geométricas para ser o infinito das conexões e da ubiqüidade da imagem virtual.
Antigos repertórios que supunham homogeneidades fechadas e excludentes ou dicotomias e polaridades originárias (como o eu e o outro, o indivíduo e a sociedade, o público e o privado), grandes estruturas coerentes de decodificação - velhas coleções desbotadas e erodidas – não dão conta de responder à complexidade de vida contemporânea. Sequer de enunciar a pergunta apta a interrogar nossa perplexidade diante destas épocas de disjunções e descontinuidades no tempo e no espaço.
As utopias históricas, anunciadas pelas grandes narrativas, refluem como uma miragem. Mas com elas, extravia-se também o horizonte de uma sociedade universal e fraterna, como destino comum a ser realizado por todos nós e que nos agruparia. Furta-nos como possibilidade realizável tanto essa espécie de comunidade mais geral prometida, e para qual deveríamos trabalhar em conjunto, a humanidade, como sua esfera específica relativa à arte: a comunidade estética universal, uma comunidade sentimental que supunha o juízo de gosto, inscrito naturalmente em cada sujeito, como horizonte de um consenso sempre esperado. Um juízo, como o conceberia Kant na Terceira Crítica, afetivo e transcendental que permitiria a comunicação intersubjetiva e o compartilhamento entre todos. O sensus com-munis Kantiano era esse pedido de partilha a uma comunidade original ditada pela própria humanidade.
Escapam-nos, sem consolo, as figuras de totalidade, unidade e universalidade, prometidas pela modernidade e que se inter-relacionavam: as categorias artísticas como unidades distintas, bem delimitadas e autônomas entre si e em relação com o mundo; o sujeito como unidade substancial e originária; a esfera pública iluminista e seus cidadãos fraternos; a comunidade universal do gosto e seus espectadores idealizados.
Perda e promessa tramam-se à própria noção de comunidade. Pois a história foi pensada, como disse Jean-Luc Nancy, “sobre o fundo de comunidade perdida –a reencontrar e a reconstituir”. Tanto o esgotamento de uma concepção finalista e unívoca da história, que afirma o uno e o homogêneo, como a insuficiência do pensamento dialético nos obriga, por outro lado, a perceber a emergência de espacialidades estranhas e fronteiriças, temporalidades de diferentes modelos, acontecimentos e narrativas discretas.
Ouvimos com freqüência que as fronteiras migraram dos estados nacionais para o interior das cidades. Murmuramos, assustados, que vivemos em meio a guerras civis, a guerra aos civis. No foco de um mundo fluidamente conectado, estão as cidades globais em rede, âncoras dos fluxos desterritorializados de capital e informação, competindo para atraí-los e concentrá-los.
São simultaneamente desterritorializações, territorialidades excêntricas e fragmentadas, reterritorializações produzidas pelo capital. E se esse redesenho de fronteiras parece dar lugar a estranhas micro-constelações, a movimento tribais que disputam os territórios contemporâneos (das gangues de rua às associações do tráfico de drogas, das comunidades étnicas e religiosas aos atentados terroristas), tal fenômeno não deixa de denunciar o paradoxo em que vivemos: as cidades tornam-se protagonistas do mundo atual, enquanto a noção de civilização única se estilhaça internamente. O terror, a truculência cotidiana das associações do tráfico de drogas ou dos esquadrões de extermínio, em uma cidade como o Rio de Janeiro, exibindo seu poder sobre um outro sem feições eleito aleatoriamente para a morte, são, a um só tempo, os ecos desse estilhaçamento e a preservação perversa dessa visão monolítica que não distingue diferenças e singularidades.
“O estado do mundo não é uma guerra de civilizações”, diz Jean-Luc Nancy. “É uma guerra civil, é a guerra intestina de uma cidade, de uma civilidade, de uma cidadania, se desdobrando até os limites do mundo e até à extremidade de seus próprios conceitos. E na extremidade, um conceito se quebra, uma figura distendida se estala, uma abertura aparece”. Algo se passa nas fronteiras de nossa percepção do mundo, do outro, deste “nós” obscuro e indistinto.
O outro, por sua vez, não pode ser mais emoldurado como o modelo de uma ontologia negativa, reflexo contrário do espelho do qual derivaríamos por contraposição a nossa identidade enquanto o Mesmo. Tampouco, o sujeito é a unidade a partir da qual o mundo se projeta como um lívido reflexo. No deslocamento por várias teias, subjetivações são alteradas e reconstruídas incessantemente nos contatos exteriores ao qual somos expostos. Se atravessamos as fronteiras, elas também nos atravessam. Eis nossa irremediável condição: o eu é sempre outros através e com outros.
Como viver em um mundo em que se vê fracassar seu projeto civilizatório? Que lugar a arte ocupa nas “guerras intestinas” de uma cidade, espaço por tradição da vida em comum? Como endereçar a esse outro, inscrito em contingências e singularidades, o que é tocado por minha sensibilidade? Quem somos nós neste outro?
Creio que são essas inquietações subentendidas nas experimentações artísticas no espaço urbano da jovem produção contemporâneo brasileira, entre as quais se incluem os horizontes de Marcelo Cidade. Operando em rede, atuando em projetos coletivos ou individuais, eles intervêm artisticamente nas ruas de todo o país, na dispersão e na contaminação das fronteiras e territórios, como em suas casas, onde vivem, trabalham, recebem, hospedam outros artistas, onde abrigam exposições de arte. Comunicando-se principalmente pelas redes eletrônicas, interrigam, experimentam, abrem mundos inesperados em mundos.
Eles intervêm, enfim, naquele que foi por tradição, a arena dos conflitos e da convivência de complexas diferenças, a cidade, e na naquele que foi o espaço da intimidade doméstica, abrigo metafórico da interioridade do sujeito e das relações familiares, a casa. Como escreve a curadora Juliana Monachesi, “a potência maior da arte contemporânea está na rua ou está na casa – duas possibilidades não antagônicas de encontro, troca e afeto. (...) do ponto de vista do museu, a rua é a casa também” . Não é gratuita, portanto, nem a multiplicação dos grupos que surgem por todo o país, nem a intensidade com que interferências urbanas têm acontecido, desde o fim dos anos 90. Não é casual que esse fenômeno tenha começado no Rio de Janeiro e se estendido às ruas de cidades do norte ao sul do país . Afinal, essa é a cidade onde logo foram explicitados os dilaceramentos viscerais, nossa histórica violência. As monstruosidades destas cidades-medusa que nos fitam com os olhos da morte.
O sistema de arte no país é precário e rarefeito (tendendo à concentração em São Paulo, uma vez que é ali o centro financeiro) e, certamente, muitas dessas experiências e grupos surgiram para preencher as várias lacunas onde seu circuito é quase inexistente. Por outro lado, apontam para uma dispersão geográfica em que as periferias se colocam em contato e criam circuitos múltiplos e paralelos. E, de modo geral, partilham da tentativa de torná-los mais descentralizado e aberto, menos hierárquico e mais representativo de sua diversidade. Poderíamos traçar suas genealogias e influências: as vanguardas modernas; o fluxo; as práticas situacionistas da arte; o legado brasileira das experimentações neoconcretas de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape; os trabalhos e as inserções nos circuitos ideológico de Cildo Meireles e de António Manuel; as “situações” gerada por Artur Barrio; o Grupo Rex, de Nelson Leirner, entre muitos outros.
A excursão mais expressiva da prática artística para o além-muros dos espaços expositivos tradicionais a partir dos anos 60, rejeitou o cenário de neutralidade exigida no ideal do cubo branco como filtro da recepção estética e guardião da autonomia da obra de arte, renunciou às condições abstratas e ideais de espaço e de tempo que esta reivindicava, dissolveu os limites entre as categorias artísticas. A cidade revelou-se, então, o campo expandido e fecundo de suas experimentações. No entanto, o que ocorre hoje na jovem produção artística brasileira exige uma outra reflexão.
É isso que o crítico Fernando Cocchiarele muito bem coloca ao observar que, sem os objetivos comuns das utopias históricas, os grupos de artistas contemporâneos relacionam-se em rede por conexões instáveis, nômades e provisórias. Pondera Cocchiarele: “se os grupos nos anos 70 se formavam em torno de questões que a todos afetavam (a ditadura, por exemplo), atualmente eles se formam por uma espécie de empatia intersubjetiva (que revela e traz à torna a crise do sujeito no mundo contemporâneo). (...) A cosolidação da democracia no Brasil combinada com as questões essenciais do mundo contemporâneo aponta não mais para objetivos comuns a grandes grupos, antes representado pela utopia socialista, mas para aquilo que Foucault chamou de micropoderes. A luta social passa agora pelas inúmeras esferas constituídas por campos profissionais específicos ou por estamentos e minorias. Essa fragmentação de objetos gera não só uma dispersão na esfera do sujeito como também na do objeto político. (...) Ainda não possuímos um novo repertório ético, político e estético que substitua o velho repertório das grandes utopias coletivas do passado”.
È nesse vácuo que a jovem produção vem atuar. Inscrita em um momento limítrofe de uma mudança radical nas formas de relação social e de construção da realidade, as experiências dos grupos e de artistas dos anos 60 e 70 estavam impregnadas ainda de uma sensibilidade histórica, isto é, comprometidas com seu destino comum.Como um nervo tenso e extremadamente sensível, a produção atual traz à tona, complementando Cocchiarele, uma grave crise no sentido do comum, do viver junto, na qual antigos modelos e dialéticas, como as oposições entre público e privado, perdem sentido e fronteiras evidentes e identificadoras.
È justamente a ilusão de uma essência do comum na asserção de uma Humanidade genérica que desaparece. È essa dimensão do comum, tão enigmática como difícil, tão indisponível como esquiva, em um mundo jamais comum ou familiar, que está radicalmente problematizada. Uma dimensão da qual a arte é indissociável, já que é sempre endereçamento, publicação, pedido de partilha. Não há como não encarar“ o abismo dessa ausência”, como fala Nancy. Não há como não olhar em face desse outro insondável e estranho e colocar-se sob seu olhar. Não há como não enfrentar essa história voltada para o indestinado, para a finalidade sem fim e aberta em suas possibilidades e vertigens. Não é um eu – e ainda que se enunciem “coletivos” ou “grupos” na imprecisão de uma nomeação-, um “nós” complexo e precário.
Os trabalhos recentes investem-se da força questionadora das vanguardas, mas sem teleologias ou a simples preocupação de transpor e ampliar o conceito e as fronteiras tradicionais da arte, própria dos anos 60 e 70, ou mesmo para reivindicar identidades étnicas ou sexuais de comunidades minoritárias, como ocorreria nas décadas seguintes na arte internacional. Tampouco, a ênfase dos trabalhos realizados incide sobre a interferência visual na trama urbana, como se esta fosse apenas um receptáculo especial, mas sim sobre a indefinição de uma existência coletiva na qual as partilhas e os conflitos são engendrados. As cidades revelam-se então estratégicas para se pensar a articulação da diversidade e da diferença com suas alianças enviesadas. A própria utilização das redes eletrônicas, desvirtuando sua mera função de fazer circular a informação para explorar sua potência transformadora de sociabilidades, demonstra uma percepção relacionas, como fluxo e interconectividade.
Por isso, estas são as questões que tais experiências implicitamente colocam: como não se fechar em guetos reservados de pequenos interesses, muito localizados e determinados? Como não se encerrar nas clausuras de comunidades interiorizadas, fundadas nas afinidades identitárias? Como pensar a comunidade, resistindo e conjurando um nós substancial que se anuncia a partir de uma unidade original a ser recuperada ou como “obra” teleológica da vontade de um sujeito coletivo, como percebeu Nancy? Como pensar a utopia (e seu não lugar) não mais definido por um telos? Como escapar da unidade esvaziada do mercado global e da espetacularização da vida social, da conversão em mercadoria da cidade e da arte? Como possibilitar a convivência das diferenças? Como possibilitar, enfim, a vida em comum?
Com poéticas distintas, essa produção tem uma constituição relativa que implica e evidencia a trama de ralações na qual esses trabalhos de inserem, engendram e criticam: uma trama de afetos, sistemas, poderes e fenômenos exteriores ao universo soberano e autônomo da arte moderna. Assumem diversas faces: invadem-se pela alteridade, realizando-se nos encontros fortuitos, nos circuitos condicionados das sinalizações urbanas, questionando a familiaridade do mundo. Provocam situações rápidas e perturbadoras, pequenos ruídos na entropia urbana, interferindo, ainda que momentaneamente, nas práticas e nos hábitos culturais de grupos sóciais distintos que dominam ou se deslocam por um determinado território. Desregulam o funcionamento e o controle dos espaços se dos tempos, para reconfigurar e rearticular os modos e as relações entre o sentir, o agir e o pensar. Interferem nas relações de controle e poder, inclusive nas instituições da arte, relacionando-se nas circunstâncias que agora, oferece, criando e multiplicando as inflexões singulares que escapam os determinismos e exploram as pequenas frestas. Uma estratégia operando, como perceberá Cocchiarele, “de modo semelhante ao de um outro componente hoje inseparável da web, o vírus (...)”, pois “invadem sistemas codificados por normas estabelecidas para colocá-los em pane, para questioná-los em suas entranhas, pô-los em curto-circuito, ainda que por instantes”.
Por pactos constituídos em rede, em combinações prévias pela internet, realizam, por vezes, a mesma ação sincronicamente em várias partes do país e do mundo, atuando em um tempo intervalar e na ubiqüidade do espaço: um fora do lugar, um desvio no tempo. Acionando e abrindo, enfim, vários ângulos de visão, explicitam conflitos dissimulados, buscam partilhas inusitadas .
Se nas casas, uma certa reflexão sobre a hospitalidade que se tece em rede se impõe, tais interferências nas ruas obrigam o agenciamento recorrente de laços e trocas, de pequenos pactos e contratos, acordos provisórios com espectadores/ participantes, os mais diversos. O que é colocado sob suspeita e a responsabilidade de um acordo universal ( como unanimidade comunicativa ou sentimental) e a própria concepção de comunidade sem conflitos ( pragmática, política, ética ou estética), como algo originário ou destinado excludente dos diversos modos do estar junto.
A arte como fronteira é uma superfície de contatos e fricções: um entre-dois, um entre- outros múltiplos. Nessa zona intersticial e flutuante, emergem figuras complexas de alteridade e estranhamento, temporalidades e especialidades plurais, fortuitos e contraditórios. Uma zona que se abre para acolher a diferença e o alheamento em sua fenda, que opera outras subjetivações, que ensaia a reinvenção de outros modos de convivência. O horizonte do em comum é essa estranha fronteira em perpétua renegociação e em imprevisível fuga.Um em comum que talvez não seja mais universal ou eterno, toda via desejado. Pois é a partilha de um “nós” que talvez só possa existir em seu próprio e difícil exercício. Ou, como nos propõe o artista:
Eu sou ele assim como você é ele assim como você sou eu e nós somos todos juntos.
Marcelo Cidade exhibiting Roads not taken means to watch over Rome, describing its urban diversity statute.
Through this solo show, the artist avoids every loss of experience because he rather directly touch the external world, im-mediatly crossing his first intervention field: the city. It follows that becomes necessary a comparison with denial, intuition and digression between the availability of things and the perfect distance from products. Thanks to this project Cidade allegorically takes possession of architectures and open-air volumes, settling a path in reverse, a sort of perceptive reading which only allows a forbidden limit to emerge. His sculptural sense for space comes up to insistently scrape structural origins of every theoretical foundation, transforming the non-presence of Nature in an opportunity to circunscribe new portions of space.
The Brazilian artist, at his first solo show in Italy, has been recording and honing, for almost a decade, the state of the street art, using informal and subversive practices between the realms of Modernism and urban domain.
Cidade celebrates the artistic spontaneous intervention, while contributing, at the same time, to the continuous and immersive transformation of the city - a universe that, according to Cidade's visions, activates and contaminates every contemporary art form. The abundance of anti-authoritarian rituals and the application of signals, properly created to define an exterior world, make installations, interventions and artistic operations dedicated and realistic roads not taken. Not-chosen, but not forsaken, ways where never drifting away from their specific illegal aura and a structural aesthetic of vandalism. Both of this dimensions are deeply anchored to a Modernist sense for space and to its identità, a legacy which Cidade draws upon powerfully.
In Rome, Cidade will work on geometries, codes and dissimulations within the Italian capital, letting changing tracks emerge as a new approach for the actual contemporary art scenarios. His artworks will reflect poetic impressions, marked into city's history and nature. Nothing inside his constructive performance practice is just representation or simple decoration: Cidade is a foremost rebel dissimulator. He measures the sensation of foreign territories just using them, as a kind of reaction, as a white sheet, as a surface subjected to the whole physical reality. A subtext which describes a complex conceptual network composed by effects, actions and reproductions, all ready -at the first need- to overrun the cradle of traffic. Surveillance devices, control mechanisms, defensive tactics and border obstacles, distributed into the Cidade's artwork, bring the gaze upon a peculiar road not taken which often is a critic trace of a distant nature, abroad from the theater of art.
Fantasia de rainha da bateria pega fogo no desfile em SP… A estudante Carina Zanqueta, de 14 anos, ficou ferida quando seu celular começou a pegar fogo no bolso da calça. O fato aconteceu na cidade de Araras… Sempre gostei da cidade. Por que um bando de estudantes franceses pode pôr fogo em tudo devido a um… Dirigente do Jihad nega cessar-fogo… Grupo islâmico intensifica ataques com foguetes contra Israel a partir da Faixa de Gaza… Beira-Mar planejava explodir três hotéis no Rio… Espectro dos incêndios nos subúrbios continua pairando sobre a França e sobre as sociedade pós-imigratórias européias… De fato, são nessas manifestações que os moradores dos territórios e da cidade dramatizam sua polaridade, em um enfrentamento que não raro provoca mortes… Estudantes colocam fogo em boneco de Bejani, queimam pneus e invadem a Câmara… enquanto a cidade ficava parada por mais de uma hora… Caixas com produtos dinamarqueses e noruegueses são incendiadas por grupos de religiosos sunitas… Bomba na rua 25 de Março é classificada por ato terrorista pelo prefeito de São Paulo… O artefato foi produzido com um extintor de incêndio e pregos, foi detonado por volta das 16h e destruiu a lixeira… Marcelo Cidade apresenta uma série de trabalhos que apontam para o … Em “Fogo Fato” o artista registra marcas de fogo deixadas por…
A pesquisa em site de busca da Internet a partir da combinação das palavras fogo, fato e cidade desenha o panorama dos conflitos dos últimos meses em todo o mundo. O que conecta virtualmente todos esses eventos é o espectro do incêndio e da destruição. Mas a origem da pesquisa é a série “Fogo-fato”, de Marcelo Cidade, que esteve em exposição este mês na galeria Vermelho. O trabalho registra em fotografias marcas de fogo deixadas por manifestantes e mendigos nos muros das cidades e marcas de spray criadas pelo próprio artista. Foi feita entre as cidades de Paris e São Paulo, em novembro de 2005, época em que eclodiram as revoltas nas comunidades imigrantes habitantes dos subúrbios parisienses.
Cidade evoca, portanto, o fogo da violência urbana que aproxima a todos. Das facções do tráfico nas favelas cariocas à terceira geração de imigrantes árabes e africanos segregados nas periferias européias: sempre revoltas alimentadas pela intolerância, pelo racismo e a desigualdade. O desentendimento, situação recorrente em seu trabalho, também está no video “Quando não há diálogo” (2005).
Como indica o cientista social Miguel Chaia no texto da exposicão, o artista lida com “as relações e as coisas no âmbito da desterritorialização, aguçando ainda mais o sentido universal da arte, neste tempo que aprofunda a globalização”. Efetivamente, as marcas de tinta, carvão ou pólvora, detectadas por Cidade, igualam Paris a São Paulo e a Bagdá. Seus fogos são, portanto, factíveis, referem-se a acontecimentos existentes e reais, registrados todos os dias nos jornais e na Internet.
Mas os fogos de Cidade são também indiciais. Fogos passados, que referem-se ao acontecimento que se deu num dado lugar, num dado momento, e que já se extingiu, deixando só uma marca para contar a história. A ausência do acontecimento (e do sujeito responsável pela ação) na imagem fotográfica, aponta para a situação de opacidade social em que esses agentes estão imersos. Os “Fogos-fatos” são também fogos-fátuos, de inflamação espontânea e brilho efêmero. Como as políticas de integração social que ocasionalmente ocupam os discursos políticos.
Onde há fumaça, há fogo
No dia seguinte à explosão de uma bomba caseira na rua 25 de Março, véspera de Natal, o movimento comercial frustrou as expectativas. O momento da explosão não foi registrado. O que ficou para contar a história foi a imagem de uma rua esvaziada pelo susto e a suspeita de que a explosão tenha sido efetuada pela máfia do contrabando em retaliação às operações de combate à prática que a PF promoveu em diferentes centros populares de compras na cidade.
Pouco – talvez duas ou três semanas - antes desse evento, uma outra explosão no mesmo local não chamou a atenção da mídia. Ao contrário da bomba classificada de terrorista pelo então prefeito José Serra, esta teve autoria definida e foi devidamente documentada. A ação faz parte da série de fotografias “Rescue Smoke”, que a artista paulistana Camila Sposati desenvolve há três anos. De fato, trata-se mais precisamente de um “efeito” de explosão ou incêndio, produzido pelo acionamento de uma nuvem de fumaça colorida em local público. Em “Rescue Smoke – Purple”, de 2003, a fumaça de cor violeta criava um anteparo ficcional à realidade banal de uma rua qualquer da cidade. Em “Rescue Smoke – Green”, de dezembro de 2005, a fumaça verde invadiu um dos maiores centros de comércio informal da cidade de São Paulo, em plena época de compras de natal.
A fotografia de Camila Sposati registra um ato que poderia ser classificado pelo prefeito de São Paulo como “terrorismo artístico-ficcional em batalha contra o real”? Eventualmente. O fato é que na invasão verde ao centro comercial, Sposati subverte as convicções de quem seja a vítima e o agressor.
A mesma questão é levantada pela artista na obra “Armas de Fogo”, em exposição na galeria Leme a partir de 20 de abril. Trata-se aqui do registro fotográfico de uma batalha a ferro e fogo entre dois bonecos de platicina. Os poderes conciliatório e segregador do fogo são iluminados tanto pelas marcas de Cidade quanto pelos artifícios de Sposati.